… Mas o melhor de tudo é crer em Cristo! Luís Vaz de Camões (c. 1524 — 1580)

domingo, 25 de agosto de 2013

A glória de Cristo,

por John Owen
Tradução da obra "Meditations on the Glory of Crist" de John Owen, numa versão abreviada 
 intitulada "The Glory of Crist". 


OBRA COMPLETA INÉDITA EM PORTUGUÊS



CAPÍTULO 1

“Para que vejam a Minha Glória.” (Jo 17:24 ARC1995)

O sumo sacerdote sob o Antigo Testamento, fazendo os sacrifícios requeridos no dia da propiciação, entrou no lugar santíssimo com as suas mãos cheias de incenso de um doce aroma, o qual pôs no fogo diante do Senhor. Assim, o grande sumo sacerdote da Igreja, nosso Senhor Jesus Cristo, havendo-Se oferecido pelos nossos pecados, entrou no Céu com o doce aroma das Suas orações a favor do Seu povo. O Seu desejo eterno pela salvação do Seu povo é manifesto no versículo citado no princípio: “Pai... quero... que vejam a Minha Glória” (Jo 17:24). José pediu aos Seus irmãos que contassem a seu pai acerca da sua Glória no Egito: “Fareis, pois, saber a meu pai toda a minha Glória no Egito...” (Gn 45:13). Isto fê-lo José, não para vangloriar-se, mas para dar a seu pai o gozo de saber acerca da sua elevada posição no Egito. Assim Cristo desejava que os discípulos vissem a Sua Glória, para que estivessem satisfeitos e desfrutassem da plenitude desta bênção para sempre. Havendo conhecido o Seu amor, o coração do crente estará sempre inquieto até que veja a Glória de Cristo. O ponto culminante de todas as petições que Cristo faz a favor dos Seus discípulos (neste capítulo 17) é que vejam a Sua Glória. Então, eu afirmo que um dos maiores benefícios para o crente, neste mundo e no vindouro, é a consideração da Glória de Cristo.

Desde começo do Cristianismo, nunca houve tanta oposição direta para a natureza (tanto a divina como a humana) e para a Glória de Cristo como a que existe atualmente. É dever de todos aqueles que amam o Senhor Jesus dar testemunho (segundo a sua capacidade) da Sua natureza única e da Sua Glória. Portanto, queria fortalecer a fé dos verdadeiros crentes demonstrando que o ver a Glória de Cristo é uma das experiências e um dos maiores privilégios possíveis neste mundo e no vindouro. Agora, nesta vida ao contemplarmos a Glória de Cristo, somos transformados na Sua semelhança (Veja-se-se 2Co 3:18). Na vida vindoura, seremos semelhantes a Ele porque O veremos tal como Ele é (Veja-se-se 1Jo 3:2). Este conhecimento de Cristo é em forma contínua, a vida e a recompensa para as nossas almas. Aquele que tem visto a Cristo, tem visto o Pai; a luz do conhecimento da Glória de Deus é vista somente na face de Jesus Cristo (Veja-se-se Jo 14:9 e 2Co 4:6).

Há duas maneiras para se ver a Glória de Cristo: Agora, neste mundo, por meio da fé, e no Céu pela vista, durante toda a eternidade. É à segunda maneira que Cristo Se refere na sua oração (a oração registada em João 17). Cristo pede que os Seus discípulos estejam com Ele (no Céu) e que vejam a Sua Glória. Mas uma visão da Sua Glória neste mundo por meio da fé também está implícita, e exponho as seguintes razões pelas quais enfatizo isto:

1. Na vida vindoura, nenhum homem verá a Glória de Cristo, a menos que a tenha visto pela fé nesta vida. É necessário que sejamos preparados para a Glória por meio da graça, e que por meio da fé sejamos preparados para ver Cristo com a nossa vista. Algumas pessoas que não têm a fé verdadeira imaginam que verão a Glória de Cristo no Céu, mas estão enganando-se a si mesmos. Os Apóstolos viram esta Glória, “Glória como a do unigénito do Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1:14). Esta não foi uma Glória mundana como a que possuem os reis ou o papa. Ainda que Cristo tenha criado todas as coisas, Cristo não teve onde reclinar a Sua cabeça. Não havia nenhuma Glória inusitada ou formosura na Sua aparência como homem. O Seu rosto e a Sua aparência foram desfiguradas mais do que a dos filhos dos homens (Is 52:14 e 53:2). Tão-pouco se podia ver neste mundo a plena manifestação da Glória da Sua natureza divina. Então, como puderam os Apóstolos ver a Sua Glória? Viram-na por meio do entendimento espiritual da fé. Ao vê-Lo como cheio de graça e de verdade, e ao ver o que fez e o que falou, “Receberam-No e creram em Seu nome” (Jo 1:12). Aqueles que não possuíam esta fé não viram nenhuma Glória em Cristo.

2. A Glória de Cristo está muito mais para lá do alcance do nosso presente entendimento humano. Não podemos olhar diretamente para o Sol sem ficarmos cegos e não podemos com os nossos olhos naturais ter qualquer visão verdadeira de Cristo no Céu; essa Glória só pode ser conhecida por meio da fé. Aqueles que falam ou escrevem acerca da imortalidade da alma mas que não têm nenhum conhecimento da vida de fé, em realidade não sabem do que estão falando. Há aqueles também que usam imagens, crucifixos, ídolos e música, num vão intento por adorar algo que eles imaginam que é como a Glória de Deus. Isto é devido a que não têm nenhum entendimento espiritual da verdadeira Glória de Cristo. Somente o entendimento que nos vem por meio da fé, nos dará uma ideia verdadeira da Glória de Cristo e criará em nós o desejo por desfrutá-la plenamente no Céu.

3. Portanto, se quisermos ter uma fé mais ativa e um amor maior por Cristo (o qual daria descanso e satisfação às nossas almas), deveríamos buscar ter um desejo maior por ver a Glória de Cristo nesta vida. Isto resultará em que as coisas deste mundo se tornem cada vez menos atrativas, até que cheguem a ser coisas mortas e indesejáveis. Não deveríamos esperar ter uma experiência distinta no Céu do que havemos estado buscando neste mundo; quer dizer, não podemos esperar ver a Glória de Cristo no Céu se isso não tem sido o nosso afã na Terra. Se estivéssemos mais persuadidos disto, pensaríamos mais nas coisas celestiais do que normalmente o fazemos.

Antes de proceder com um desígnio de guiar os crentes numa experiência mais profunda de fé, amor e meditação espiritual, desejo mencionar algumas das vantagens que surgem do contínuo pensar na Glória de Cristo:

1. Ao pensar na Glória de Cristo, seremos feitos mais aptos para o Céu. Muitos consideram-se como já suficientemente preparados para a Glória, se somente pudessem alcançá-la. Mas nem sequer sabem o que essa Glória é. Não há nenhum prazer na música para aqueles que são surdos, nem as cores mais belas dão qualquer prazer aos cegos. Do mesmo modo, o Céu não daria qualquer prazer às pessoas que não foram preparadas para ele nesta vida, pelo Espírito. O Apóstolo dá: “graças ao Pai que nos fez aptos para participar da herança dos santos na luz” (Cl 1:12). A vontade de Deus é que conheçamos o começo da Glória agora e no futuro a sua plenitude. Somos, porém, capacitados para receber o conhecimento desta Glória por meio da atividade espiritual da nossa fé. O nosso conhecimento presente da Glória é a nossa preparação para a Glória futura.

2. Um conhecimento da Glória verdadeira de Cristo, tem poder para nos transformar até que sejamos semelhantes a Cristo (Veja-se-se 2Co 3:18).

3. Uma meditação habitual na Glória de Cristo, trará descanso e satisfação às nossas almas. Trará paz às nossas mentes, que tão frequentemente se enchem de temor e de preocupações. “Mas a inclinação do Espírito é vida e paz.” (Rm 8:6) As coisas desta vida, em comparação com o grande valor e a formosura de Cristo, são menos que nada, como Paulo disse: “E, na verdade, tenho também por perda todas as coisas, pela excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor” (Fl 3:8).

4. O conhecimento da Glória de Cristo, é a fonte da bem-aventurança eterna. Ao vê-lO como Ele é, seremos feitos semelhantes a Ele. (1Ts 4:17; Jo 17:24; 1Jo 3:2)

Deus é tão grande, que não O podemos ver com os nossos olhos naturais e ainda no Céu não poderemos entender tudo acerca Dele porque Ele é infinito. A bem-aventurada visão de Deus que lá teremos será sempre “na face de Jesus Cristo “ (2Co 4:6) e isto será suficiente para nos encher de paz, descanso e Glória.

Ainda nesta vida, os verdadeiros crentes experimentam algo do prazer que resulta de conhecer Cristo. Por meio das Escrituras e do Espírito Santo, os crentes recebem um conhecimento da Glória de Deus que resplandece em Cristo, de tal maneira que um gozo inefável e paz enchem as suas almas. Tais experiências não são frequentes, mas isto é devido à nossa frouxidão e à nossa falta de luz espiritual. A Glória amanheceria mais frequentemente em nossas almas, se fôssemos mais diligentes no nosso dever de meditar na Glória de Cristo.

Nos seguintes capítulos (2 ao 11), procurarei responder à pergunta: Qual é a Glória de Cristo que podemos ver por meio da fé, e como podemos vê-la? E nos restantes (12 aos 14) explicarei como este conhecimento de fé é distinto da visão direta de Cristo que teremos no Céu.

CAPÍTULO 2

A Glória de Cristo como a única manifestação de Deus para os crentes

A Glória de Deus surge desde a Sua natureza santa e das coisas excelentes que Ele faz.

Mas só podemos ver esta Glória por meio de olhar para Cristo Jesus (2Co 4:6) Cristo é “O resplendor da Sua Glória” e “Ele é a imagem do Deus invisível” (Hb 1:3; Cl 1:15). Ele mostra-nos a natureza gloriosa de Deus e revela-nos a Sua vontade para nós. Sem Cristo nunca poderíamos ver Deus nem agora, nem no futuro (Veja-se Jo 1:18). Cristo e o Pai são um. Quando Cristo Se fez homem, manifestou a Glória de Seu Pai. Somente Cristo dá a conhecer aos homens e aos anjos a Glória do Deus invisível. Esta revelação é o fundamento sobre o qual a Igreja se edifica e a base de todas as nossas esperanças de salvação e de vida eterna. Aqueles que pela fé não podem ver esta Glória de Cristo, não conhecem Deus. São como aqueles judeus e gentios incrédulos do tempo antigo. “Porque os judeus pedem sinal, e os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para os gregos. Mas, para os que são chamados, tanto judeus como gregos, lhes pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus.” (1Co 1:22-24).

Desde que a pregação do Evangelho começou, o grande propósito do Diabo foi cegar os olhos dos homens para que não vejam a Glória de Cristo. “Mas, se ainda o nosso Evangelho está encoberto, para os que se perdem está encoberto, nos quais o deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que não lhes resplandeça a luz do Evangelho da Glória de Cristo, que é a imagem de Deus.” (2Co 4:3-4) Esta cegueira e trevas são tiradas naqueles que crêem no poder omnipotente de Deus. “Porque Deus, que disse que das trevas resplandecesse a luz, é quem resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da Glória de Deus, na face de Jesus Cristo.” (2Co 4:6)

Uma grande parte da miséria e do castigo contra a humanidade, por causa da queda de Adão, foram as densas trevas e a ignorância com as quais a mente humana foi coberta desde esse tempo. Os homens e as mulheres têm-se jactado de ser sábios, mas a sua sabedoria não os conduziu para Deus (Veja-se-se 1Co 1:21 e Rm 1:21). Os raciocínios dos “filósofos” e dos “entendidos” acerca das coisas invisíveis que estão para lá do entendimento humano não têm salvo a humanidade da idolatria e da prática de toda a espécie de pecados. Satanás é o príncipe das trevas e tem imposto o seu reino de trevas na mente dos homens, mantendo-os na ignorância de Deus. Toda a iniquidade e confusão entre os seres humanos procede destas trevas e da ignorância de Deus. Deus poderia ter-nos deixado perecer na cegueira e na ignorância dos nossos antepassados, mas trouxe-nos das trevas para a sua maravilhosa luz” (1Pe 2:9). A Glória especial e os privilégios de Israel consistiram em possuir a revelação de Deus (A Palavra de Deus). “Mostra a Sua palavra a Jacob, os Seus estatutos e os Seus juízos, a Israel. Não fez assim a nenhuma outra nação.” (Sl 147:19-20) Não obstante, Deus falou-lhes desde as densas nuvens, porque não podiam compreender a Glória que posteriormente tinha de ser conhecida por meio Cristo. (Ex 20:21; Dt 5:22) Quando Cristo veio, foi manifesto que “Deus é luz, e não há nele treva nenhuma” (1Jo 1:5). Quando o Filho de Deus apareceu em carne humana, Deus manifestou que a natureza divina era uma natureza gloriosa de três Pessoas numa (uma Trindade). A luz deste conhecimento resplandeceu no meio das trevas do mundo de tal maneira que ninguém poderia continuar sendo ignorante acerca de Deus exceto aqueles que não queriam ver. (Veja-se Jo 1:5, 14, e 17-18; 2Co 4:3-4). A Glória de Cristo é que Ele revela a verdade acerca da natureza invisível de Deus.

Quando cremos pela primeira vez, vemos Deus, o Pai, em Cristo. Não temos que fazer a petição que Filipe fez. “Disse-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai, o que nos basta” porque havendo visto Cristo pela fé, já temos visto o Pai também (Jo 14:8-9). David anelava esta visão: “Ó Deus, tu és o meu Deus; de madrugada Te buscarei; a minha alma tem sede de Ti; a minha carne Te deseja muito ... para ver a Tua fortaleza e a Tua Glória, como Te vi no santuário.” (Sl 63:1-2). No tabernáculo havia só uma representação obscura da Glória de Deus. Quanto mais deveríamos nós valorizar a visão que temos dela, ainda que seja “como um espelho”! (2Co 3:18). Moisés havia visto muitas obra maravilhosas de Deus, mas ele sabia que a satisfação verdadeira consistia em ver a Glória de Deus. Por isso orava: “Rogo-te que me mostres a tua Glória” (Ex 33:18). É somente em Cristo que podemos ter uma visão clara e distinta da Glória de Deus e das suas excelências.

A sabedoria infinita é uma parte da natureza divina e a fonte de todas as obras gloriosas de Deus. “Mas onde se achará esta sabedoria?” (Job 28:12) Podemos ver esta sabedoria através dos seus resultados e do seu maior efeito; quer dizer, a salvação da Igreja. O Apóstolo Paulo foi chamado a “demonstrar a todos qual seja a dispensação do mistério, que, desde os séculos, esteve oculto em Deus, que tudo criou; para que, agora, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e potestades nos Céus” (Ef 3:9-10). A sabedoria divina manifestada no mundo físico, ainda que seja muito grande, é pequena comparada com a sabedoria de Deus dada a conhecer em Cristo Jesus. Mas somente os crentes vêem esta sabedoria de Deus em Cristo; os incrédulos não a podem ver (Veja-se-se 1Co 1:22-24). Se formos suficientemente sábios para ver esta sabedoria claramente, teremos “gozo inefável e glorioso” (1Pe 1:8).

Devemos considerar também o amor de Deus como parte desta natureza divina, “porque Deus é amor” (1Jo 4:8). As melhores ideias humanas acerca de Deus são imperfeitas e afetadas pelo pecado. Eles pensam que Deus é “todo bondade” e que é parecido aos homens (Veja-se Sl 50:21). Aqueles que não conhecem Cristo não se precatam de que, ainda que Deus é amor, a Sua ira “do Céu se manifesta a ira de Deus sobre toda impiedade e injustiça dos homens” (Rm 1:18). Então, como poderemos conhecer o amor de Deus e ver a Sua Glória no dito amor? O Apóstolo diz-nos: “Nisto se manifestou a caridade de Deus para connosco: que Deus enviou o Seu Filho unigénito ao mundo, para que por Ele vivamos.” (1Jo 4:9). Esta é a única evidência a nós revelada de que Deus é amor. Estaríamos ainda em completa escuridão se o Filho de Deus não tivesse vindo para nos manifestar a verdadeira natureza e atividade do amor divino. Agora podemos ver quão formoso, glorioso e desejável é Cristo, como Aquele que nos ensina que Deus é amor.

Vendo esta Glória que é a única maneira como podemos obter santidade, consolo e preparação para a Glória eterna. Portanto, considere o que Deus deu a conhecer acerca de Si mesmo em Seu Filho, especialmente a Sua sabedoria, amor, bondade, graça e misericórdia. A vida das nossas almas depende destas coisas. Posto que o Senhor Jesus Cristo é o único caminho revelado para receber estas bênçãos, quão extremamente glorioso deveria ser Ele perante os olhos dos crentes!

Há alguns que vêem Cristo só como um grande professor, mas não como a única manifestação do Deus invisível. Mas se tu tens um desejo para com as coisas celestiais, pergunto-te: Por que amas Cristo e confias nEle? Por que O honras e desejas estar com Ele no Céu? Podes tu dar uma razão de por que fazes estas coisas? Uma das razões é o facto de que tu vejas a Glória de Deus no plano da salvação, (Glória que de outro modo te haveria estado oculta eternamente)? Há uma profecia de que nos tempos do Novo Testamento os nossos “olhos verão o Rei na Sua formosura” (Is 33:17). Qual é a formosura de Cristo? Consiste que Ele é Deus e que Ele é a grande representação da Glória de Deus para nós. Quem pode descrever a Glória deste privilégio? Que nós que nascemos na escuridão e na ignorância e que merecíamos ser lançados às trevas exteriores, tenhamos sido atraídos à maravilhosa “luz do conhecimento da Glória de Deus na face de Jesus Cristo “! (2Co 4:6)

A incredulidade cega os olhos do entendimento de muitas pessoas. Ainda que entre os que dizem ter conhecimento de Cristo, há muito poucos que entendem a Sua Glória e que são transformados à Sua semelhança. Nosso Senhor Jesus Cristo disse aos fariseus que, não obstante a sua jactância de possuir o conhecimento de Deus, “vós nunca ouvistes a Sua voz, nem vistes o Seu parecer.” (Jo 5:37) Quer dizer, que não O conheciam realmente e que não tinham uma visão espiritual da Sua Glória. Ninguém jamais chegará a ser semelhante a Cristo simplesmente imitando as Suas obras e ações ou possuindo um conhecimento intelectual dEle. Somente uma experiência da Glória de Cristo tem poder para fazer um crente semelhante a Ele. A verdade é que os melhores de entre os crentes são muito negligentes para dedicar muito tempo à meditação deste assunto. Os pensamentos acerca da Glória de Cristo são muito altos e muito difíceis para nós. Não podemos deleitar-nos neles por muito tempo sem nos sentirmos cansados e obstaculizados neste trabalho; e não obstante, ver a Glória de Cristo é o que faremos no Céu por toda a eternidade sem qualquer cansaço. O que agora nos obstaculiza é a nossa falta de espiritualidade e o facto de que os nossos desejos e pensamentos se ocupam de outras coisas. Se nos animássemos mais para contemplarmos “as coisas que os anjos desejam bem atentar” (1Pe 11:12), o nosso entendimento e força espiritual se incrementariam em cada dia. Então, manifestaríamos mais da Glória de Cristo pela nossa maneira de viver, e ainda a própria morte seria bem-vinda!

Há pessoas que dizem que não entendem estas coisas. Além disso, dizem que tal entendimento da Glória de Cristo não é necessário para viver a vida cristã prática. A minha resposta a esta objeção é a seguinte:

1. Não há nada mais plena e claramente revelado no Evangelho do que o facto de que Jesus Cristo é a manifestação do Deus invisível, e que ao vê-lO a Ele, também vemos o Pai. Esta é a verdade e o mistério fundamental do Evangelho. Se esta verdade essencial não é recebida e crida, todas as demais verdades bíblicas são inúteis para as nossas almas. Se aceitarmos a Cristo só como um grande professor, mas não aceitamos a verdade do seu caráter único e divino, então todo o Evangelho se converte numa fábula.

2. A razão principal pela qual a fé nos foi dada é a fim de que vejamos a Glória de Deus em Cristo e meditando nela sejamos afetados. Se não possuímos este entendimento (o qual é dado pelo poder de Deus a todos aqueles que crêem), não conheceremos coisa alguma do mistério do Evangelho. (Veja-se-se Ef 1:17-19; 2Co 4:3-6)

3. Cristo é imensamente glorioso e muito acima de toda a criação. É somente através dEle que a Glória do Deus invisível é mais plenamente conhecida por nós, e é só por Ele que a imagem de Deus é renovada em nós.

4. A fé em Cristo como Aquele que nos revela a Glória de Deus é a raiz da qual cresce toda a prática cristã. Qualquer que não tem esta espécie de fé, não pode ser um Cristão verdadeiro.

Aqueles a quem este ensino pareça algo novo mas que não são inimigos da verdade da Glória de Cristo, dar-lhes-ei os seguintes conselhos:

1. O maior privilégio nesta vida é o de ver a Glória do Pai em toda a Sua santidade manifestada em Cristo. Porque esta é a vida eterna: “Que conheçam a Ti só por único Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17:3). A menos que você valore isto como um grande privilégio, nunca poderá desfrutá-lo.

2. O conhecimento de Cristo é um grande mistério, o qual requer muita sabedoria espiritual para entender e obter o seu valor prático. A sabedoria humana não nos ajudará totalmente; é necessário que sejamos ensinados por Deus mesmo (Veja-se Jo 1:12-13; Mt 16:16-17). Como o artesão tem de capacitar-se nas técnicas do seu ofício, também nós devemos usar os meios ensinados por Deus com o propósito de nos tornamos crentes hábeis para esta tarefa. A oração fervente é o principal destes meios. Ore como Moisés, para que Deus lhe mostre a Sua Glória. Ore como Paulo: “Para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da Glória, vos dê em seu conhecimento o espírito de sabedoria e de revelação” (Ef 1:17). As almas frouxas nunca podem obter uma experiência desta Glória, mas, para os diligentes, buscá-la é o seu prazer.

3. Aprenda dos ímpios. Quão zelosos são em perseguir os seus desejos pecaminosos e em deleitar-se nas suas concupiscências! Seremos preguiçosos para meditar naquela Glória, a qual esperamos ver algum dia mais plenamente?

4. Os Céus  declaram a Glória de Deus mas deles aprendemos pouco da Glória divina em comparação com o conhecimento que nos é dado em Cristo Jesus. A gente mais ardilosa e os maiores filósofos estão cegos em comparação com aqueles que são os mais pequenos no reino de Deus mas que conhecem a Glória de Cristo.

Então, o que realmente deveríamos desejar é conhecer o poder desta verdade nos nossos corações. Realmente desejamos ter o mesmo gozo, descanso, deleite e a indescritível satisfação dos santos que já estão no Céu? O nosso presente conhecimento da Glória de Cristo é o princípio destas bênçãos e quanto mais conheçamos esta Glória, mais experimentaremos o seu poder transformador em nossas almas. As coisas espirituais são cada vez mais preciosas para aqueles que meditam nelas e para aqueles que se deleitam de andar nas veredas do amor e da fé.

Três pontos finais surgem do que consideramos:

1. Sabemos que a sabedoria, a bondade, o amor, a graça, a misericórdia e o poder de Deus, são atributos imensamente gloriosos tal como existem nEle. Mas só podem ser realmente entendidos por nós quando tivermos uma visão satisfatória e estimulante destes atributos obrando em favor da redenção da Igreja. Então, os raios da sua Glória resplandecem para nós refrescando-nos com um gozo indescritível. Como o Apóstolo Paulo exclamou: “Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! ... Porque dEle, e por Ele, e para Ele são todas as coisas; Glória, pois, a Ele eternamente. Ámen!” (Rm 11:33-36)

2. É por meio de Cristo que cremos em Deus (1Pe 1:21). Então o próprio Deus nas perfeições infinitas da Sua natureza divina é o objeto final da nossa fé. Mas vemos esta Glória através de Cristo o qual é próprio Deus e o único caminho designado para revelar a Glória de Deus.

3. Cristo é o único caminho para podermos obter o conhecimento salvador de Deus. Os grandes pensadores religiosos do mundo andam às apalpadelas na escuridão do limitado entendimento humano. Como um raio de luz na escuridão da noite cega os olhos em lugar de nos iluminar o caminho, assim a luz do conhecimento de Deus em Cristo resplandece sobre os incrédulos na sua escuridão, e apesar disso não podem ver o caminho por causa da sua incredulidade. “Onde está o sábio? Onde está o escriba? Onde está o inquiridor deste século? Porventura, não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação. Porque os judeus pedem sinal, e os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para os gregos. Mas, para os que são chamados, tanto judeus como gregos, lhes pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus.” (1Co 1:20-24).

CAPÍTULO 3

A Glória de Cristo manifestada pelo mistério das Suas duas naturezas

A Glória da dupla natureza de Cristo numa só pessoa é tão grande que o mundo incrédulo não pode ver a luz e a formosura que dela brilham. Hoje em dia, muitos negam a verdade de que Jesus Cristo é tanto Filho de Deus como Filho de homem. Mas esta é a Glória, a qual os anjos “desejam olhar” (1Pe 1:12). Satanás no seu orgulho levantou-se contra o Deus do Céu e então, tratou de destruir os seres humanos na Terra que foram criados à imagem de Deus. Na Sua grande sabedoria, Deus uniu ambas as naturezas (a humana e a divina) contra as quais Satanás tinha pecado. Cristo, o Deus homem, triunfou sobre Satanás mediante a Sua morte na cruz. Aqui está o fundamento da Igreja. Na criação, Deus “suspende a Terra sobre o nada.” (Job 26:7). Mas, Ele fundou a Sua Igreja sobre a rocha imóvel: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.” (Mt 16:16) Este glorioso acto é referido por Isaías: “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; e o principado está sobre os seus ombros; e o seu nome será Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz.” (Is 9:6)

Como o fogo ardia na sarça que Moisés viu, assim a plenitude da divindade morava no corpo de Cristo o qual foi feito carne e habitou entre nós. (Veja-se Ex.3:2, Cl 2:9 e Jo 1:14) O fogo eterno da natureza divina estava na sarça da frágil natureza humana; não obstante, a natureza humana não foi consumida. Então, podemos ver “a graça daquele que habitou no arbusto” para connosco, os pecadores (Dt 33:16). Como foi dito a Moisés que tirasse os seus pés, assim também nós devemos pôr de lado todas as imaginações e desejos que provêm da nossa natureza caída a fim de que por meio da fé cheguemos a ver a Glória de Cristo Jesus.

Não é meu propósito dar uma explicação ou confirmação da verdade gloriosa das duas naturezas (divina e humana) unidas na pessoa de Cristo. O meu desejo agora é o de estimular as mentes dos crentes a uma contemplação da Glória de Cristo no santo mistério da constituição da Sua pessoa, quer dizer, como Deus e homem num. Espero que o que é dito a seguir nos anime a procurar de Deus, o espírito de sabedoria e de revelação para abrir os olhos do nosso entendimento.

1. Devemos estar absolutamente seguros de que esta Glória de Cristo na Sua natureza humana e divina é o melhor, o mais nobre e o mais útil dos temas em que podemos pensar. O Apóstolo Paulo diz que todas as demais coisas são como perda, e em comparação com esta verdade, como o esterco (Veja-se Fl 3:8-10). As Escrituras falam da necedade das pessoas que gastam “o dinheiro naquilo que não é pão; e o produto do vosso trabalho naquilo que não pode satisfazer” (Is 55:2). Eles fixam os seus pensamentos nos seus prazeres pecaminosos e recusam ver a Glória de Cristo. Algumas pessoas são capazes de alcançar pensamentos muito elevados acerca da criação e da providência divinas. Mas não há nenhuma Glória nestas coisas comparadas com a Glória da dupla natureza de Cristo. No Salmo 8 David está meditando na grandeza das obras de Deus. Isto fá-lo pensar na pobre e débil natureza humana, a qual parece como nada em comparação com a obra de Deus. Mas então, David começa a admirar a sabedoria, a bondade e o amor divino por exaltar a nossa natureza humana (na pessoa de Cristo) muito por cima das obras da criação. O Apóstolo explica isto em Hb 2:5-6; veja também o Salmo 8. Quão prazenteiras e desejáveis são as coisas deste mundo: esposa, filhos, amigos, posses, poder e honra, etc,... Mas a pessoa que tem todas estas coisas e também um conhecimento da Glória de Cristo dirá: “A quem tenho eu no Céu senão a Ti? E na Terra não há quem eu deseje além de Ti.” (Sl 73:25) Porque “Pois quem no Céu se pode igualar ao SENHOR? Quem é semelhante ao SENHOR entre os filhos dos poderosos?” (Sl 89:6)

Apenas um olhar à formosura gloriosa de Cristo é suficiente para conquistar e capturar os nossos corações. Se não estamos olhando para Ele frequentemente e pensando na Sua Glória é porque as nossas mentes estão muito ocupadas nas coisas terrestres. Então, não estamos aferrando-nos à promessa de que os nossos olhos verão o Rei na Sua formosura.

2. Uma das atividades da fé consiste em esquadrinhar as Escrituras porque elas declaram a verdade acerca de Cristo. Ele mesmo nos exortou a fazê-lo: “Examinais as Escrituras... e são elas que de Mim testificam” (Jo 5:39). Vemos a Glória de Cristo nas Escrituras de três maneiras:

a) Pelas descrições diretas da Sua encarnação e do Seu caráter como o Deus homem. Veja-se Gn 3:15; Sl 2:7-9; 45:2-6; 78:17-18; 110; Is 6: 1-4, 9:6; Zc 3:8; Jo 1: 1-3; Fl 2:6-8; Hb 1: 1-3, 2:4-16 e Ap 1:7 e 18.

b) Por incontáveis profecias, promessas e outras expressões que nos conduzem a considerar a Sua Glória.

c) Pelas instituições sagradas de adoração divina que Deus estabeleceu sob o Antigo Testamento, e pelo testemunho direto dado acerca dEle no Novo Testamento. Isaías disse: “Eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono; e o seu séquito enchia o templo.” (Is 6:1) Esta visão do Cristo divino foi tão gloriosa que os serafins cobriam os seus rostos (Veja-se Is 6:1-3 e Jo 12:41). Quanto maior foi a Glória revelada abertamente nos dias dos Evangelhos! Pedro diz-nos que ele e os outros Apóstolos foram testemunhas da majestade de nosso Senhor Jesus Cristo: “Porque não vos fizemos saber a virtude e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, seguindo fábulas artificialmente compostas, mas nós mesmos vimos a Sua majestade, porquanto Ele recebeu de Deus Pai honra e Glória, quando da magnífica Glória Lhe foi dirigida a seguinte voz: Este é o Meu Filho amado, em quem Me tenho comprazido.” (2Pe 1:16-17) Deveríamos ser como aquele mercador que buscava toda a espécie de pérolas. Quando encontrou aquela pérola de grande preço vendeu tudo o que tinha e comprou-a (Mt 13:45-46). Cada verdade sagrada da Escritura é uma pérola que nos enriquece espiritualmente. Mas quando nos encontramos frente à Glória de Cristo, encontramos tanto gozo que jamais nos separaremos desta pérola preciosa. A Glória da Bíblia é que ela agora é o único meio que nos ensina a Glória de Cristo.

3. Devemos meditar frequentemente no conhecimento da Glória de Cristo que recebemos da Bíblia. As nossas mentes deveriam ser espirituais e santas, livres das preocupações e dos afetos terrestres. A pessoa que não medita agora com deleite sobre a Glória de Cristo nas Escrituras, não terá nenhum desejo real de ver essa Glória no Céu. Que espécie de fé e de amor têm as pessoas que têm tempo para meditar em muitas coisas, mas não têm tempo para meditar sobre este assunto glorioso?

4. Os nossos pensamentos deveriam voltar-se para Cristo cada vez que tenhamos oportunidade em qualquer momento do dia. Se formos crentes verdadeiros e se a Palavra de Deus mora em nossos pensamentos, então Cristo sempre estará perto de nós (Veja-se Rm 10:8). Descobriremos que Ele está disposto a falar connosco e a ter comunhão connosco. Cristo diz: “Eis que estou à porta e bato.” (Ap 3:20) É certo, que algumas ocasiões parece que Cristo Se afasta de nós e não podemos escutar a Sua voz. Mas quando isto ocorre, não devemos contentar-nos, antes devemos atuar como a noiva nos Cantares de Salomão e buscá-lO com diligência: “De noite busquei em minha cama aquele a quem ama a minha alma; busquei-o e não o achei. Levantar-me-ei, pois, e rodearei a cidade; pelas ruas e pelas praças buscarei aquele a quem ama a minha alma; busquei-o e não o achei. Acharam-me os guardas, que rondavam pela cidade; eu perguntei-lhes: Vistes aquele a quem ama a minha alma? Apartando-me eu um pouco deles, logo achei aquele a quem ama a minha alma; detive-o...” (Ct 3:1-4). A experiência da vida espiritual num Cristão será forte em proporção com os seus pensamentos e o seu deleite em Cristo o Qual vive nele. (Veja-se Gl 2:20) Às vezes diz-se acerca de duas pessoas que uma vive na outra. Mas isto só pode acontecer quando os seus corações estão tão unidos que ambos de dia e de noite vivem nos pensamentos um do outro. Assim deveria ser entre Cristo e os crentes. Cristo mora neles pela fé, mas os crentes experimentam o poder da Sua presença somente quando os seus pensamentos estão cheios dEle. Portanto, se queremos ver a Glória de Cristo devemos encher-nos de pensamentos acerca dEle e da Sua Glória em todo tempo. E quando Cristo estiver ausente dos nossos pensamentos por um tempo, então devemos repreender-nos e pôr-nos a buscá-lO na oração, na meditação, na leitura da Palavra, etc.

5. Todos os nossos pensamentos acerca de Cristo e da Glória deveriam ser acompanhados por admiração, adoração e ação de graças. É nos mandado amar o Senhor com toda a nossa alma, mente e forças (Veja-se Mc 12:30). Se somos crentes verdadeiros, a graça de Deus obrará em nossas mentes e almas para nos ajudar a fazer isso. Na vinda de Cristo como o Juiz no dia final, os crentes serão cheios de um sentido angustiado de admiração perante a Sua aparência gloriosa, “Quando vier para ser glorificado nos Seus santos e para Se fazer admirável, naquele Dia, em todos os que crêem” (2Ts 1:10). Esta admiração se converterá em adoração e ação graças como o exemplo que nos dá em Apocalipse 5:9-13 onde a Igreja dos redimidos canta um novo cântico: “E cantavam um novo cântico, dizendo: Digno és de tomar o livro e de abrir os seus selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus homens de toda tribo, e língua, e povo, e nação; e para o nosso Deus os fizeste reis e sacerdotes; e eles reinarão sobre a Terra. E olhei e ouvi a voz de muitos anjos ao redor do trono, e dos animais, e dos anciãos; e era o número deles milhões de milhões e milhares de milhares, que com grande voz diziam: Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber o poder, e riquezas, e sabedoria, e força, e honra, e Glória, e ações de graças. E ouvi a toda criatura que está no Céu, e na Terra, e debaixo da Terra, e que está no mar, e a todas as coisas que neles há, dizer: Ao que está assentado sobre o trono e ao Cordeiro sejam dadas ações de graças, e honra, e Glória, e poder para todo o sempre.”

Há algumas pessoas que esperam ser salvos por Cristo e ver a Sua Glória no mundo próximo, mas não se preocupam com meditar acerca desta Glória neste mundo. São como Marta que se preocupava de muitos quefazeres e não como Maria quem escolheu a boa parte, sentando-se aos pés de Cristo (Veja-se Lc 10:38-42). Tais pessoas deveriam tomar cuidado para não descuidar o dever de meditar na Glória de Cristo e também de não menosprezar este dever.

Alguns dizem que têm o desejo de olhar a Glória de Cristo pela fé mas quando começam a fazê-lo, encontram que lhes é demasiado elevado e difícil. Sentem-se abrumados como os discípulos no monte da transfiguração. Reconheço que a debilidade das nossas mentes e a nossa incapacidade para entender muito acerca da Glória eterna de Cristo nos impede de mantermos os nossos pensamentos firmes e fixos por muito tempo na meditação. Aqueles que não estão acostumados na arte da meditação santa não estarão habilitados para meditar neste mistério em particular. Mas ainda assim, quando a nossa fé já não pode concentrar os olhos do nosso entendimento para pensar no Sol da justiça brilhando na Sua formosura, pelo menos podemos, por meio da fé, descansar na santa admiração e no amor.

CAPÍTULO 4

A Glória de Cristo como Mediador: I. A Sua humilhação

O pecado de Adão colocou um abismo tão grande entre a raça humana e Deus que toda a raça teria sido completamente arruinada a menos que se encontrasse uma pessoa idónea para fazer a paz entre Deus e nós, quer dizer, para atuar como mediador. Deus não atuaria como esse mediador, nem tão-pouco havia alguém na Terra que pudesse fazê-lo. “Não há entre nós árbitro (esta palavra no hebraico equivale a “mediador”) que ponha a mão sobre nós ambos” (Jb 9:33). Não obstante, uma paz justa entre Deus e o homem tinha de ser realizada ou nunca existiria nenhuma paz. Então, o Senhor Cristo como o Filho de Deus disse: “Sacrifício e oferta não quiseste, mas corpo Me preparaste... Eis aqui venho, para fazer, ó Deus, a Tua vontade.” (Hb 10:5-7). Como o Apóstolo Paulo nos diz: “Porque há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem.” (1Tm 2:5) Cristo despojou-Se a Si mesmo e humilhou-Se quando “tomando a forma de servo, fazendo-Se semelhante aos homens” (Fl 2:7). Isto fá-lO glorioso perante os olhos dos crentes. Vejamos agora três coisas:

1. A grandeza desta humilhação: “Deus... habita nas alturas... e humilha-Se para ver o que está nos Céus e na Terra” (Sl 113:5-6). “Todas as nações são como nada perante Ele; Ele considera-as menos do que nada e como uma coisa vã” (Is 40:17). Existe uma distância infinita entre Deus e as Suas criaturas, e para Ele é um ato de pura graça fixar-Se nas coisas terrestres. Cristo, como Deus, é completamente auto-suficiente em Sua própria bem-aventurança eterna. Quão grande é então a Glória da Sua auto humilhação, ao tomar a nossa natureza com o fim de levar-nos a Deus! Esta humilhação não foi pela força, mas Ele escolheu-a voluntariamente, humilhou-Se para ser o nosso mediador. Que coração pode conceber a Glória da condescendência de Cristo? Que língua pode expressar a graça que O trouxe da Glória infinita a tomar a nossa natureza em união Consigo mesmo para interceder a nosso favor?

2. A natureza especial desta humilhação: O Filho de Deus não deixou de ser igual a Deus quando veio a ser homem. “Sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus” (Fl 2:6). Os judeus buscavam matá-lO porque Ele dizia que: “Deus era Seu próprio Pai, fazendo-Se igual a Deus” (Jo 5:18). Quando Ele tomou sobre Si a forma de um servo na nossa natureza, Ele veio a ser o que jamais tinha sido antes, mas Ele nunca deixou de ser o que Ele sempre tinha sido na Sua natureza divina. Ele, que é Deus, nunca pôde deixar de ser Deus. A Glória da Sua natureza divina estava encoberta, assim que todos aqueles que O viram não creram que Ele era Deus. As suas mentes não podiam entender algo que nunca antes tinha acontecido, isto é, que uma e a mesma pessoa fosse tanto Deus como homem. Não obstante, aqueles que crêem, sabem que Ele que é Deus, humilhou-Se a Si mesmo para tomar a nossa natureza para a salvação da Igreja. É certo que o nosso Senhor Jesus Cristo é uma pedra de tropeço e uma rocha de queda para muitos hoje em dia, para os que como os muçulmanos e os judeus pensam que Ele é somente um profeta. Mas se tirarmos o facto de que Ele é tanto Deus como homem, então também tiramos toda a Glória, toda a verdade e todo o poder do Cristianismo. Os seguintes pontos ajudar-nos-ão a entender a natureza especial desta humilhação:

a. Cristo não deixou de lado a Sua natureza divina. “Sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus” (Fl 2:6). Cristo em autoridade, dignidade, poder e majestade era igual a Deus[1].

b. Cristo não converteu a Sua natureza divina numa natureza humana. Isto é o que os antigos arianos ensinavam, que em Cristo a substância da natureza divina se converteu em carne, tal como o milagre onde a água foi convertida em vinho. Segundo eles, por um ato do poder divino, deixou de ser água e veio a ser somente vinho, não água misturada com vinho. Assim os arianos supunham que houve uma mudança substancial de uma natureza na outra; quer dizer, que a natureza divina se converteu numa natureza humana da mesma maneira como os católicos imaginam que o pão e o vinho (pela transubstanciação) se convertem verdadeiramente no corpo e no sangue de Cristo.

Mas esta doutrina destrói ambas as naturezas de Cristo e deixa-O como uma pessoa que já não pode ser nosso mediador. Segundo este ensino, na encarnação Cristo deixou de ser Deus.

c. Na Sua humilhação para chegar a ser o nosso mediador, Cristo não trocou, nem alterou a Sua natureza divina. Eutiques (378-454 D. C.) e os seus seguidores ensinavam que as duas naturezas de Cristo, a divina e a humana, foram misturadas e compostas numa só. Mas isto não podia acontecer sem que a natureza divina Se alterasse, algo que não é possível que aconteça. Posto que na natureza divina não há “mudança, nem sombra de variação” (Tg 1:17) permaneceu a mesma nEle (Cristo) em todas as suas qualidades essenciais e na sua bem-aventurança, tal como foi desde a eternidade. O Senhor Jesus Cristo fez e sofreu muitas coisas na Sua vida e na Sua morte como um ser humano. Mas tudo o que Ele fez e sofreu como um ser humano foi feito e sofrido pela Sua personalidade completa, ainda que o que Ele fez e sofreu como um ser humano não foi realmente feito pela Sua natureza divina. (Por exemplo: Jesus Cristo morreu, mas só na Sua natureza humana posto que Deus não pode morrer.) Mas, já que a Sua natureza humana foi parte da Sua personalidade completa, poder-se-ia dizer que foi feito por Ele mesmo como Deus. Por exemplo At 20:28 diz que Deus resgatou a Igreja com o Seu próprio sangue.

d. O que fez Cristo, o Senhor, quando Se humilhou a Si mesmo para chegar a ser homem?

I. Cristo, O Eterno Filho de Deus, por um ato inexprimível do Seu amor e poder divinos, tomou sobre Si a nossa natureza humana e a fez Sua, tal como a natureza divina é também Sua. A natureza humana é comum a todos nós, mas chega a ser especialmente nossa como indivíduos quando nascemos; e assim é que somos indivíduos, diferentes dos outros. Assim Cristo, o Senhor, tomou a natureza humana a qual é comum a todos nós e a fez especialmente Sua, e veio a ser “o homem, Cristo Jesus”.

II. Devido a que Se encontrava na Terra, vivendo e sofrendo na nossa natureza, a Glória da Sua personalidade divina (como a Segunda Pessoa da Trindade) estava encoberta.

III. Se bem que Cristo tomou a nossa natureza para fazê-la Sua, não a converteu em algo divino antes a preservou como inteiramente humana. Ele realmente atuou, sofreu, foi provado, tentado e desamparado, do mesmo modo como qualquer outro homem (mas sem pecado).

3. A Glória de Cristo na Sua humilhação: Ainda se fôssemos anjos, não poderíamos descrever a Glória manifesta na sabedoria divina do Pai e o amor do Filho ao humilhar-Se para chegar a ser homem. Isto é um mistério, porque Deus é grande e os Seus caminhos estão para lá do entendimento das Suas criaturas. Não obstante, é a Glória da religião cristã que Aquele que é verdadeiramente Deus, Se despojou a Si mesmo de tal maneira que em comparação com outros Ele disse, “Eu sou verme, e não homem” (Sl 22:6).

Estamos carregados com uma consciência do nosso pecado? Estamos perplexos com as tentações? Então, um olhar para esta Glória de Cristo dar-nos-á apoio e alívio. “Ele vos será santuário” (Is 8:14). Aquele que Se despojou e Se humilhou a Si mesmo para nosso benefício, não obstante, não perdeu nada do Seu poder como o Deus eterno. Ele mesmo nos salvará de todas as nossas angústias. Se não vemos nisto nenhuma Glória, é porque não há em nós nenhum conhecimento espiritual nem fé. A Glória de Cristo como mediador é “Este é o descanso, dai descanso ao cansado; e este é o refrigério” (Is 28:12).

Portanto, rogo-te que medites pela fé na natureza dupla e única de Cristo. Isto tem um propósito firme e prático. Como crentes deveríamos praticar a auto negação e estar dispostos a tomar a nossa cruz. Mas não podemos fazer isto numa consideração correta da auto negação do Filho de Deus (Veja-se Fl 2:5-8). O que são as coisas deste mundo, ainda até os nossos seres queridos e as nossas próprias vidas (as quais logo terminarão) em comparação com a Glória de Cristo, quando Ele Se despojou a Si mesmo para vir a este mundo? Quando começamos a pensar nestas coisas, logo chegamos ao ponto em que o nosso raciocínio humano fica atrás e só podemos adorar pela fé e maravilhar-nos do mistério da encarnação. Gostaria de ser levado a este ponto em cada dia. Quando acharmos que o objeto no qual a nossa fé se fixa, é muito grande e glorioso para a nossa compreensão, então seremos cheios de admiração santa, adoração humilde e de um agradecimento gozoso.

CAPÍTULO 5

A Glória de Cristo como Mediador: II. O Seu Amor

Há muitas Escrituras que se referem ao amor de Cristo. Por exemplo, “o Filho de Deus, o qual me amou e Se entregou a Si mesmo por mim” (Gl 2:20); “Conhecemos a caridade nisto: que Ele deu a Sua vida por nós, ...” (1Jo 3:16); “Àquele que nos ama, e em Seu sangue nos lavou dos nossos pecados” (Ap 1:5). A parte mais brilhante da Glória divina é o seu amor. No amor não há temor, mas tudo é atrativo e consolador.

Cristo veio a ser um mediador devido ao amor do Pai que escolheu salvar a um incontável número de pessoas através do sangue derramado de Cristo e a santificação pelo Espírito (Veja-se 2Ts 2:13-16; Ef 1:4-9 e 1Pe 1:2). A eleição revela a Glória da natureza divina, a qual é amor. Porque Deus é amor, qualquer comunicação que Ele faz ao Seu povo tem de ser em amor (1Jo 4:8-9,16). O amor de Deus é o fundamento da nossa redenção e salvação. A eleição é um ato eterno da vontade de Deus e portanto, não pode estar apoiada em nada alheia a Ele mesmo. Não havia nada nos escolhidos que motivasse Deus a amá-los. Nós não fizemos nada para persuadir a Deus para que nos escolhesse. Qualquer bondade na criatura é o efeito do amor de Deus (Veja-se Ef 1:4). O amor divino é a fonte eterna da qual a Igreja recebe a sua vida mediante Cristo.

É por meio de muitos atos de amor que a eleição é levada ao seu propósito fazendo uma realidade a salvação de todos aqueles que Deus escolheu salvar. Foi devido a que Deus escolheu salvar a um povo desta raça pecaminosa, que o ofício de Cristo como mediador foi necessário. Também foi devido a que o Filho de Deus nos amava que esteve disposto a ser nosso mediador e realizar todo o propósito do amor do Pai.

Para entendermos melhor o amor de Cristo pelos escolhidos, devemos notar os seguintes pontos:

1. O número total dos escolhidos eram criaturas feitas à imagem de Deus.

2. Desta condição, caíram em pecado e num estado de inimizade contra Deus. Isto trouxe sobre eles toda a miséria e tristeza que o pecado ocasiona, não só nesta vida mas também na vindoura.

3. Mas, apesar desta terrível catástrofe, existia a possibilidade de restaurar a nossa natureza ao seu estado original, a um estado de comunhão com Deus.

4. Então, o primeiro ato de amor de Cristo para com os escolhidos foi de compaixão e de misericórdia. Uma criatura feita à imagem de Deus mas caída em miséria, e, não obstante, capaz de ser restaurada, é verdadeiramente um objeto da compaixão e da misericórdia divinas. Mas, não pode haver nenhuma compaixão e misericórdia para aqueles que nunca podem ser restaurados. Então, o Senhor Jesus Cristo não teve compaixão nem misericórdia dos anjos caídos porque a sua natureza não podia ser restaurada (Veja-se Hb 2:14-16).

5. O segundo ato do amor de Cristo para com os escolhidos foi deleitar-Se neles e na possibilidade da sua salvação. Cristo deleitava-Se em fazer-Se responsável pela salvação deles e em trazer a Glória a Deus por esta salvação.

6. Mas, alguém poderia perguntar, por que é que Cristo, que é bendito eternamente e suficiente em Si mesmo Se preocupou tanto pela nossa condição perdida e desamparada? O que foi que O motivou a ter compaixão e misericórdia de nós? Não foi porque visse algo bom em nós, mas simples e justamente pelo amor infinito e à bondade da Sua própria natureza (Tg3:5).

7. A Sua vontade disposta em ser o nosso mediador e o Seu deleite em nos salvar não foram diminuídos pelo conhecimento das grandes dificuldades que teria que enfrentar. A salvação dos escolhidos O envolveria em grandes dificuldades e provas. Para a natureza divina não há nada difícil nem gravoso, mas Cristo teria de enfrentar estas dificuldades numa natureza humana. Para nos salvar, Cristo teria de perseverar até que a Sua alma fosse entristecida até à morte. Para nos salvar da ira e da justiça de um Deus santo, teria de sofrer Ele mesmo esta ira e justiça divinas. Mas, muito longe de desanimar-Se, o Seu amor crescia como as águas de um rio que saltam todo o obstáculo. Como Ele diz no Salmo 40:7-8, “Eis aqui venho... Deleito-me em fazer a Tua vontade, ó Deus Meu.”

8. Então um corpo Lhe foi preparado (Hb 10:5-7). Neste corpo ou natureza humana, Cristo realizaria a nossa redenção. A Sua natureza humana foi cheia de graça e de amor fervoroso pela a humanidade, e assim Cristo foi feito apto para realizar o propósito do Seu amor eterno.

9. Está claro que o glorioso amor de Cristo não foi somente divino mas também humano. O amor do Pai revelado no propósito eterno de comunicar graça e Glória aos escolhidos, foi um amor divino. Mas o amor de Cristo foi também humano. Este amor que procede das suas duas naturezas distintas é entretanto o amor de uma só pessoa, Cristo Jesus. Foi um ato inexprimível de amor quando Cristo tomou a nossa natureza humana, mas foi um ato que procedeu só da Sua natureza divina (posto que nesse momento a Sua natureza humana não existia). A Sua morte em prol de nós foi também um ato inefável. Não obstante, a Sua morte foi só um ato da natureza humana na qual Se ofereceu a Si mesmo e morreu posto que Deus não pode morrer. Mas ambos os atos de amor foram atos da Sua única pessoa humana e divina como lemos em 1 João 3:16, “Conhecemos a caridade nisto: que Ele deu a sua vida por nós.”

Não devemos contentar-nos com ideias vagas sobre o amor de Cristo. Rogo-vos que prepareis as vossas mentes para pensardes nas coisas celestiais e meditar com seriedade na Glória do amor de Cristo. Isto não o poderemos fazer se as nossas mentes sempre se encontram cheias de pensamentos terrestres. A fim de ter ideias claras e distintas do amor de Cristo, pensaremos nos seguintes pontos:

1. Devemos considerar que amor é este: É o amor do Filho de Deus que é também o Filho de homem. Como Ele é único, também o seu amor é único.

2. Pense na sabedoria, na bondade e na graça manifestadas nos atos eternos da Sua natureza divina; e na misericórdia e no amor da Sua natureza humana, manifestas em tudo o que Ele fez e sofreu por nós (Veja-se Ef 3:19, Hb 2:14-15 e Ap 1:5).

3. Merecíamos o amor de Cristo? Não; merecíamos a Sua ira, mas “ Nisto está a caridade: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou Seu Filho para propiciação pelos nossos pecados.” (1Jo 4:10). O amor de Cristo não se diminuiu pelo facto de que nós não fôssemos dignos de ser amados.

4. O que procurou o amor divino para nós? Procurou a nossa salvação eterna e o nosso desfrute de Deus para sempre.

Devemos meditar nos ensinos das Escrituras, as quais contêm a doçura do amor de Cristo. Não devemos contentar-nos com o facto de termos ideias corretas nas nossas mentes sobre o amor de Cristo, mas devemos saborear este amor nos nossos corações (Veja-se Ct 2:2-5). Cristo é o alimento das nossas almas. Não há um nutriente espiritual mais elevado do que o Seu amor para connoco, o qual sempre deveríamos desejar.

CAPÍTULO 6

A Glória de Cristo como Mediador: III. A Sua Obediência

Houve uma Glória invisível em tudo o que Cristo fez e sofreu na Terra. Se as pessoas a tivessem visto, não teriam crucificado o Senhor de Glória. Não obstante, essa Glória foi revelada a alguns: os discípulos “viram a Sua Glória, como a Glória do unigénito do Pai, cheio de graça e verdade” (Jo 1:14). Mas os outros “não viram nem formosura nem atrativo nEle” (Is 53:2) e assim é até ao dia de hoje. Agora consideraremos a Glória da obediência de Cristo:

1. Cristo escolheu obedecer. Cristo disse: “Eis aqui venho para fazer a Tua vontade” (Hb 10:7), mas Cristo não estava sob nenhuma obrigação de fazer isto. Nós, como criaturas estamos sujeitos à Lei de Deus, queiramo-lo ou não. Mas Cristo não é como nós, posto que na Sua natureza divina Ele era o autor da Lei, estava por cima da Lei e em nenhum sentido sujeito às suas reclamações ou à sua maldição.

Na vontade disposta de Cristo a obedecer consiste a Glória da Sua obediência. Por exemplo, João, o Batista, sabia que Jesus não tinha nenhuma necessidade de batizar-Se porque era impecável, mas Cristo disse: “Deixa agora, porque assim convém que cumpramos toda a justiça” (Mt 3:15). Ao ser batizado, Cristo identificou-Se voluntariamente com os pecadores.

2. A obediência de Cristo não foi para Ele mesmo mas para nós, que estávamos obrigados a obedecer mas não podíamos. Cristo não estava obrigado a obedecer, mas por um ato livre da Sua própria vontade fê-lo. Deus deu-Lhe esta honra para que Ele obedecesse em lugar de toda a Igreja, a fim de que “pela obediência de um, muitos serão feitos justos.” (Rm 5:19). A obediência de Cristo seria aceite em lugar da nossa quanto à nossa justificação.

3. A obediência de Cristo a cada parte da Lei foi perfeita. A Lei foi gloriosa quando os Dez Mandamentos foram escritos pelo dedo de Deus. A Lei aparece ainda mais gloriosa quando é obedecida “de coração” pelos crentes. Mas é somente pela obediência absoluta e perfeita de Cristo que a santidade da Lei de Deus é vista em toda a sua Glória. O Senhor de tudo, que tudo fez, viveu na obediência estrita a toda a Lei de Deus. Porque Ele era uma Pessoa Única, a Sua obediência possui uma Glória única.

4. Cristo foi perfeitamente obediente apesar de muitas dificuldades e oposição. Ainda que não existisse nEle pecado que Lhe impedisse a Sua obediência (como acontece connosco), de qualquer forma, externamente teve de enfrentar-Se com muitas coisas que poderiam tê-Lo desviado do caminho da obediência. Toda a espécie de tentações, sofrimentos, acusações e contradições foram contra Ele, “Ainda que era Filho, aprendeu a obediência, por aquilo que padeceu” (Hb 5:8).

5. A Glória desta obediência consiste principalmente da pessoa por quem foi rendida a Deus. Ela foi nem mais nem menos do que o Filho de Deus feito homem. Ele, que fez o Céu, o Senhor de tudo, viveu no mundo não tendo nenhuma reputação nem Glória terrestre, mas obrigou-Se a obedecer perfeitamente a toda a Lei de Deus. Ele, a Quem a oração é oferecida, orava Ele mesmo de dia e de noite. Ele, que é o objeto da adoração de todos os anjos do Céu e de todas as criaturas, cumpriu com todos os deveres que a adoração de Deus exige. Ele, que foi o Senhor e Dono de toda a casa, chegou a ser o servo mais humilde da Sua casa, cumpriu com todos os deveres mais humilhantes que isto implicou. Ele, que fez todos os homens e em Cujas mãos eles estão como a massa nas mãos do oleiro, observou entre eles as regras mais estritas da justiça dando a cada um o que lhe correspondia, e em amor deu boas dádivas a quem nada merecia. Isto é o que faz a obediência de Cristo tão misteriosa e gloriosa.

Agora, considerai a Glória da obediência de Cristo manifestada nos Seus sofrimentos. Ninguém jamais pôde sondar as profundidades dos sofrimentos de Cristo. Devemos olhá-Lo como sob o peso da ira de Deus e também sob a maldição da Lei, tomando sobre si todo o castigo que Deus ameaçava contra o pecado e contra os pecadores. Vejamo-Lo na Sua agonia suando grandes gotas de sangue, no Seu clamor e lágrimas quando a tristeza da morte O encheu de horror ante a vista de todas as coisas que se aproximavam. Vejamo-Lo lutando com os poderes das trevas e com a ira e a loucura dos homens. Vejamo-Lo sofrendo na Sua alma, no Seu corpo, no Seu nome, na Sua reputação e na Sua vida. Alguns destes sofrimentos foram-Lhe diretamente impostos por Deus. Outros vieram dos demónios e dos homens malvados que atuaram segundo o determinado conselho e desígnio de Deus. Vejamo-Lo orando, chorando, clamando, sangrando, morrendo e fazendo da Sua alma uma oferenda pelo pecado (Veja-se Is 53:8).

“Oh profundidade das riquezas da sabedoria e da ciência de Deus! Quão insondáveis são os Seus julgamentos, e inescrutáveis os Seus caminhos!” (Rm 11:33) Que por nós o eterno Filho de Deus Se submetesse a tudo o que os nossos pecados mereciam para que fôssemos redimidos! Quão glorioso deve ser então Cristo ante os olhos dos crentes redimidos!

Porque Adão pecou, ele e todos seus descendentes estão diante de Deus preparados para perecer sob a desaprovação divina. Perante esta circunstância, o Senhor Jesus vem aos pecadores com um convite: “Pobres criaturas, que triste é a vossa condição! O que aconteceu à formosura e beleza da imagem divina na qual fostes criados? Agora levais a imagem deformada de Satanás e ainda pior, a miséria eterna está esperando-vos. Porém, uma vez mais elevai os vossos olhos e olhai para Mim! Eu Me colocarei no vosso lugar. Levarei a carga de culpa e de castigo que vos afundaria no Inferno para sempre. Serei maldito temporariamente por vós, a fim de que vós possais ter a bem-aventurança eterna.”

Olhemos para Glória de Cristo manifestada no Evangelho: Jesus Cristo é crucificado perante os nossos olhos (Veja-se Gl 3:1). Entenderemos as Escrituras só até ao ponto em que vejamos nelas o sofrimento e a Glória de Cristo. A sabedoria do mundo não pode ver nisto mais do que loucura. Mas é nestes sofrimentos que podemos contemplar a Glória de Cristo como nosso mediador. “Mas, se ainda o nosso Evangelho está encoberto, para os que se perdem está encoberto, nos quais o deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que não lhes resplandeça a luz do Evangelho da Glória de Cristo, que é a imagem de Deus.” (2Co 4:3-4).

CAPÍTULO 7

A Glória de Cristo como Mediador: IV. A Sua exaltação

Veremos agora a Glória de Cristo a qual se seguiu aos seus sofrimentos. Esta é a mesma Glória que Ele teve com o Pai antes da fundação do mundo. Cristo orava para que os Seus discípulos estivessem com Ele e vissem a Sua Glória (Jo 17:5, 24). Enquanto que Ele esteve neste mundo na forma de um servo, esta Glória estava velada. Quando há um eclipse de Sol, a sua beleza, luz e Glória deixam de ver-se por um tempo, e assim, a plena formosura, luz e Glória de Cristo foram temporalmente eclipsadas enquanto Ele esteve na Terra. Não obstante, a Sua Glória será vista com gozo inefável e maravilhoso por aqueles que estarão com Ele no Céu.

A “Glória de Cristo” na Sua exaltação, não é a Glória essencial da Sua natureza divina, mas a revelação dessa Glória depois de que ela havia estado oculta neste mundo sob a “forma de um servo”. A Glória divina em si mesma não pertence à exaltação de Cristo, mas a revelação desta Glória é a que pertence a esta exaltação. Esta Glória tão-pouco consiste simplesmente da glorificação da Sua natureza humana, ainda que isto está incluído na Sua exaltação.

A mesma natureza que Cristo tomou na Sua encarnação é agora exaltada em Glória. É obvio que não podemos compreender com plenitude, a verdadeira natureza da glorificação da humanidade de Cristo, como tão-pouco compreendemos plenamente o que seremos nós no Céu (1Jo 3:2). Mas o facto de que é a mesma natureza humana que Ele teve na Terra e o mesmo corpo em que Ele nasceu, viveu, morreu e ressuscitou, é uma crença fundamental da fé cristã.

Esta natureza do homem Cristo Jesus está cheia com todas as graças divinas e perfeições das quais a limitada natureza humana é capaz de encher-se. Mas não está misturada com a Sua natureza divina, nem tão-pouco foi deificada. A Sua natureza humana não tem nenhuma propriedade essencial da deidade que lhe tenha sido comunicada a ela. A Sua natureza humana não foi feita omnisciente, omnipresente nem omnipotente, mas foi exaltada muito por cima da Glória dos anjos e dos homens. Está mais perto de Deus; goza de mais comunhão com Deus, de mais gloriosa luz, amor e poder divinos que do qualquer anjo ou homem. Sem embargo, Ele é humano.

Os crentes também terão uma natureza humana glorificada no Céu: “Seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é” (1Jo 3:2). Mas, a nossa natureza humana glorificada não será tão gloriosa como a dEle. “Uma é a Glória do Sol, outra a Glória da Lua, e outra a Glória das estrelas, pois uma estrela é diferente de outra em Glória” (1Co 15:41).

Existe uma diferença de Glória entre as estrelas, uma diferença ainda maior existe entre o Sol e as estrelas. Tal será a diferença entre a natureza humana glorificada de Cristo e a natureza humana glorificada dos crentes na eternidade.

Em que consiste a Glória de Cristo na Sua exaltação? Consiste do seguinte:

1. A exaltação da Sua natureza humana em união com a natureza divina muito por cima de toda a criação em poder, dignidade, autoridade e senhorio. Isto é o que faz a pessoa de Cristo gloriosa.

2. Deus o Pai deu-Lhe a maior Glória e a maior dignidade que podem ser dadas a uma criatura quando O fez sentar à Sua dextra na majestade nas alturas. Deus fez isto por causa do Seu infinito amor para com Cristo e o Seu deleite no que Cristo tem feito como mediador entre Deus e os homens.

3. A isto se acrescenta a plena manifestação da Sua própria sabedoria, o Seu amor e a Sua graça divinas na obra de mediador e redentor da Igreja. Isto pode ser visto aqui na Terra somente por meio da fé, mas no Céu brilha em todo o Seu fulgor para o gozo eterno daqueles que O contemplam. Esta é aquela Glória que Cristo pedia na Sua oração que os crentes desfrutassem. A Glória que Cristo possui no Céu atualmente pode ser entendida somente pela fé. Pessoas néscias, usando as suas próprias imaginações humanas têm procurado representar esta Glória por meio de imagens, de pinturas e de esculturas. Esta é a maneira pela qual a Igreja Católica apresenta a Glória de Cristo à mente e aos corações não espirituais, de pessoas supersticiosas. Mas equivocam-se, não conhecendo as Escrituras, nem a Glória eterna do Filho de Deus. Não devemos tratar de imaginar a imagem de uma pessoa gloriosa no Céu, mas, sim, devemos usar a fé para meditar na descrição da Glória de Cristo que temos nas Escrituras.

Não devemos pôr o pretexto de que teremos tempo suficiente para considerar esta Glória quando chegarmos ao Céu. Se não temos algum conhecimento pela fé desta Glória de Cristo aqui e agora, então quer dizer que não temos nenhum desejo real para vê-la no Céu. Todos nós somos muito egoístas e nos contentamos com o facto de que os nossos pecados foram perdoados e de que fomos salvos por Cristo. Mas a nossa fé e o nosso amor deveriam estimularmos a pôr a Cristo e os Seus interesses por cima de todo o resto.

Quem é agora rodeado com Glória e poder à dextra da majestade nas alturas? É Aquele que foi pobre, menosprezado, perseguido e morto para a nossa salvação. É o mesmo Jesus que nos amou e Se deu a Si mesmo por nós e nos redimiu com o Seu próprio sangue. Se realmente valorizamos o Seu amor e participamos dos benefícios que surgem daquilo que Ele fez e sofreu, então somente nos resta regozijarmo-nos no Seu presente estado de Glória.

Bendito Jesus! Nada Te podemos acrescentar, nem à Tua Glória. Mas é o gozo de nossos corações que Tu sejas exaltado tão gloriosamente à dextra do Pai. Anelamos ver essa Glória mais plena e claramente como Tu oraste e promete que a veríamos.

CAPÍTULO 8

A Glória de Cristo ilustrada no Antigo Testamento

Sabemos que o Antigo Testamento trata acerca do Senhor Jesus Cristo. Moisés e os profetas e todas as Escrituras atestam acerca de Cristo e da Sua Glória. Os judeus não viram Cristo nem a Sua Glória nas Escrituras, porque tinham o véu posto sobre o seu entendimento. Este véu só pode ser tirado pelo Espírito de Deus (2Co 3:14-16). Em seguida mostrarei algumas maneiras nas quais a Glória de Cristo foi apresentada aos crentes sob o Antigo Testamento.

1. A Glória de Cristo foi revelada por meio da adoração prescrita sob a Lei. Deus deu por meio de Moisés uma bela ordem de adoração. Houve um tabernáculo (e mais tarde o templo) com o lugar santíssimo, a arca, o propiciatório, o sumo-sacerdote, os sacrifícios e o derramamento de sangue. Mas estas coisas eram simplesmente sombras que apontavam para Cristo (que é o único sacrifício pelo pecado) e para a Sua contínua atividade como nosso sumo-sacerdote. Tudo o que Moisés fez na edificação do tabernáculo e a sua adoração teve a intenção de testificar da pessoa e da obra de Cristo, as quais seriam reveladas posteriormente. Também o Espírito de Cristo esteve nos profetas “indicava, anteriormente testificando os sofrimentos que a Cristo haviam de vir e a Glória que se lhes havia de seguir.” (1Pe 1:11).

2. A Glória de Cristo foi representada sob o Antigo Testamento na narração mística da Sua comunhão com a Sua Igreja em amor e graça. Esta narração está escrita no livro de Cantares de Salomão. Esta narração é um registo do amor divino e da graça de Cristo para com a Sua Igreja com expressões do Seu amor para com Ele e do Seu deleite nEle. Este livro tem sido grandemente descuidado e mal entendido.

Uns poucos de dias ou umas quantas horas ocupados no desfrute da comunhão amorosa com Cristo, conduzir-nos-iam a termos um melhor apreço por este livro. A comunhão com Cristo descrita nas suas páginas é uma bênção maior do que todos os tesouros da Terra. Mas devido a que estas coisas são entendidas por muito poucos, que este livro é descuidado se não que é até menosprezado. Mas, se nós que fomos favorecidos com a revelação neo-testamentária acerca de Cristo entendemos menos da Sua Glória do que os crentes veterotestamentários, então seremos julgados como não dignos de termos recebido o Novo Testamento.

3. A Glória de Cristo foi representada e manifestada sob o Antigo Testamento pelas Suas aparições na forma de um homem. Nestas aparições, Cristo assumiu a forma de um homem para anunciar o que algum dia chegaria a ser na Sua encarnação. Nesta forma Cristo apareceu a Abraão, a Jacob, a Moisés, a Josué e a outros. Sob o Antigo Testamento Cristo continuamente assumiu sentimentos e emoções humanas que davam a entender que viria um tempo quando Ele tomaria uma natureza humana. Portanto, o Antigo Testamento refere-se a Ele como estando zangado, como estando agradecido, como estando arrependido, e como exibindo todas as demais emoções humanas. Isto apontava para diante quando realmente Ele viria a ser o homem Cristo Jesus.

4. A Glória de Cristo sob o Antigo Testamento foi representada também por visões proféticas. O Apóstolo João diz-nos que a visão que Isaías teve acerca da Glória do Senhor (Jeová), foi, na verdade, uma visão da Glória de Cristo (veja Is 6:1-7 e Jo 12:41). Quando Isaías viu a Glória de Deus encheu-se de terror até que o seu pecado foi tirado por meio de uma brasa acesa tirada do altar. Isto foi uma ilustração do poder purificador do sacrifício de Cristo.

5. A doutrina da encarnação de Cristo foi revelada sob o Antigo Testamento, mas não tão claramente como foi revelada no Evangelho. Um exemplo só basta para demonstrar este ponto: “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; e o principado está sobre os seus ombros; e o seu nome será Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz” (Is 9:6). Só este testemunho é suficiente para confundir os judeus e a todos os inimigos da Glória de Cristo. Se bem que os profetas profetizaram a Glória vindoura de Cristo, não entenderam completamente o que escreveram. Mas agora, quando cada palavra desta revelação foi esclarecida para nós no Evangelho, seria cegueira negarmo-nos a recebê-lo. Não é mais que o orgulho diabólico dos corações humanos o que os cega para não verem a verdade da Glória de Cristo manifestada no Antigo Testamento.

CAPÍTULO 9

A Glória de Cristo na Sua união com a Igreja

A nossa união com Cristo é tão real que perante os olhos de Deus é como se nós tivéssemos feito e sofrido o que Cristo fez e sofreu para redimir a Igreja. Cristo atuou gloriosamente quando “levou os nossos pecados no Seu corpo sobre o madeiro” e quando “padeceu uma só vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para nos levar a Deus” (1Pe 2:24; 3:18). O propósito do nosso santo e justo Deus foi salvar a Sua Igreja, mas não poderia passar por cima do seu pecado sem o castigar. Portanto, foi necessário que o castigo desse pecado fosse transferido daqueles que o mereciam mas não podiam suportá-lo, para Outro que não o merecia, mas que era capaz de o suportar. Este é o fundamento da fé cristã e de toda a revelação divina contida na Escritura. Consideremos um pouco mais de perto esta verdade e fixemo-nos de quão cheia é da Glória de Cristo.

1. Não está contra a justiça divina que alguém sofra o castigo pelos pecados de outros. Por agora confirmarei esta declaração dizendo que Deus que não pode ser injusto porquanto atuou assim muitas vezes. Por exemplo, quando David pecou, setenta mil homens foram destruídos pelo anjo de Jeová. “E David disse a Jeová quando viu o anjo que destruía o povo: Eu pequei, eu fiz a maldade; que fizeram estas ovelhas?” (2Sm 24:15-17). Quando os filhos de Judá foram levados cativos (Cativeiro Babilónico), Deus castigou-os pelos pecados dos seus antepassados, especialmente aqueles pecados cometidos nos dias de Manassés (veja-se 2Rs 23:26-27). Os sete filhos de Saúl foram mortos por causa dos pecados de seu pai (2Sm.21:9-14). Assim foi também com os filhos e os infantes que pereceram na destruição de Sodoma e de Gomorra. Na destruição final da nação judaica, Deus castigou-os por terem derramado o sangue de todos os profetas desde o começo do mundo (Lc 11: 50-51). Não há injustiça em Deus ao transferir os pecados de uns para outros e castigá-los. A justiça divina não castiga arbitrariamente a alguns pelos pecados de outros.

2. Existe sempre uma relação especial entre os que pecam e aqueles que são castigados. Por exemplo, há uma relação entre o pai e os seus filhos, entre o rei e os seus súbditos. Há também um sentido em que compartilham o castigo. Aos filhos de Israel foi dito: “E vossos filhos pastorearão neste deserto quarenta anos e levarão sobre si as vossas infidelidades, até que o vosso cadáver se consuma neste deserto.” (Nm 14:33). O castigo devido aos seus pecados foi transferido em parte para os seus filhos. Mas uma parte do seu próprio castigo foi também o conhecimento do que ocorreria aos seus filhos.

3. Existe uma união maior e uma relação mais próxima entre Cristo e a Igreja do que a que existe em qualquer outra união no mundo. Isto pode ser visto de três maneiras:

I. Há um vínculo natural entre Cristo e a Sua Igreja. Deus tem feito todas as nações de um mesmo sangue (veja-se At 17:26). Cada homem é irmão e próximo de cada outro homem (veja Lc 10:36). Esta mesma relação existe entre Cristo e a Igreja. “E, visto como os filhos participam da carne e do sangue, também Ele participou das mesmas coisas... Porque, assim O que santifica como os que são santificados, são todos de um...” (Hb 2: 11, 14). Sem embargo, em dois aspetos há uma diferença entre a união de Cristo com a Sua Igreja, e a irmandade comum de toda a raça humana. Primeiro, Ele tomou a nossa natureza por um ato livre da Sua própria vontade, mas nós não tivemos nenhuma opção de escolher o relacionar-nos uns com os outros pelo nascimento. Segundo, Ele veio a unir-Se connosco com um só propósito, a saber, que na nossa natureza redimisse a Igreja: “Para que, pela morte, aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo, e livrasse todos os que, com medo da morte, estavam por toda a vida sujeitos à servidão.” (Hb 2:14-15).

II. Há uma união moral e espiritual entre Cristo e a Igreja. Isto é como a relação entre a cabeça e os membros do corpo, ou entre a videira e os ramos (Veja Ef 1:22-23 e Jo 15: 5). Também é parecido à união que existe entre o marido e a esposa. “Maridos amai as vossas mulheres, assim como Cristo amou a Igreja e Se entregou a Si mesmo por ela” (Ef 5:25). Assim como Ele foi a cabeça e o esposo da Igreja (a qual só poderia ser salva e santificada pelo Seu sangue e pelos Seus sofrimentos), então foi apropriado que Ele sofresse, e que os benefícios do Seu sofrimento pertencessem àqueles por quem Ele sofreu. Poderia surgir a objeção de que “Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5:8) e que não havia nenhuma união entre Ele e a Igreja nesse momento. Somos unidos com Cristo por meio da fé. Portanto, antes da nossa regeneração, não estávamos unidos com Ele. Mas, então, como poderia sofrer justamente em nosso favor? Respondo que foi o propósito de Deus, antes de que Cristo sofresse, que a Igreja dos escolhidos fosse Sua esposa a fim de que Ele a amasse e sofresse por ela. Jacob amou Raquel antes de que ela tivesse sido sua esposa. “Israel serviu por uma mulher e por uma mulher guardou o gado” (Os 12:12). Raquel é chamada a esposa de Jacob devido ao amor dele por ela e porque ela estava destinada a ser sua esposa antes de que ele se casasse com ela. Assim Deus, o Pai, deu todos os escolhidos a Cristo, encomendando-os a Ele, para serem salvos e santificados. Cristo mesmo diz ao Pai: “Manifestei o Teu nome aos homens que do mundo me deste; eram Teus, e Tu mos deste... Eu rogo por eles; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que Me deste, porque são Teus” (Jo 17:6,9)

III. A terceira maneira como Cristo está unido com a Igreja é por meio do novo pacto do qual Ele mesmo é o fiador e a fiança. “De tanto melhor concerto Jesus foi feito fiador” (Hb 7:22). Aqui temos o coração do mistério da maneira sábia como Deus salva a Igreja. A transferência dos pecados dos pecadores para Cristo (Aquele que é em todo o sentido inocente, puro e justo em Si mesmo) é a vida e a alma de todo o ensino bíblico. O que Cristo tem feito por nós é o que O faz glorioso para nós. Consideremos a justiça de Deus em perdoar os nossos pecados. Todos os escolhidos de Deus são pecadores. Como pode Deus permanecer como justo Se permitir que os Seus escolhidos não sejam castigados posto que não perdoou aos anjos que pecaram e tampouco a Adão quando pecou no princípio? A resposta está na união entre Cristo e a Igreja. Porque Cristo representa a Igreja perante os olhos de Deus, Deus castiga-O justamente a Ele pelos pecados dela, e assim eles são livres e gratuitamente perdoados (veja-se Rm 3:24-26). Na cruz, a santidade e a justiça divinas encontram-se com a Sua graça e a Sua misericórdia. Esta é a Glória com a qual se deleitam e se satisfazem as almas de todos aqueles que crêem. Quão maravilhoso é para eles ver Deus regozijando-Se na Sua justiça e ao mesmo tempo, mostrando misericórdia ao dar-lhes a salvação eterna! No desfrute desta gloriosa verdade quero viver e quero morrer.

Também Cristo é glorioso na Sua obediência à Lei, a qual Ele cumpriu perfeitamente. Foi absolutamente necessário que a Lei fosse cumprida, mas nós nunca teríamos podido fazê-lo. Não obstante, mediante a união de Cristo e da Igreja, a Lei foi cumprida por Ele a nosso favor. “Porquanto, o que era impossível à Lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o Seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne, para que a justiça da Lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito” (Rm 8:3-4). Um entendimento pela fé desta Glória de Cristo acabará com todos os temores e tirará todas as dúvidas das pobres almas tentadas. Tal conhecimento será uma âncora para mantê-las firmes em todas as tormentas e provas desta vida e na hora da morte.

CAPÍTULO 10

A Glória de Cristo mostrada em dar-Se a Si mesmo aos crentes

O Apóstolo Paulo descreve Cristo como dando-Se a Si mesmo à Igreja e à união entre eles como um grande mistério (veja-se Ef 5:32). Não obstante, embora seja um mistério, podemos pensar desta relação, acerca da qual, cada crente pode dizer: “O meu amado é meu, e eu sou dEle” (Ct 2:16). Devemos entender que Cristo não Se entregou a Si mesmo a nós, por estar obrigado. Tampouco Ele chega a pertencer-nos por algum sonho ou experiência mística. Tampouco Ele chega a ser nosso por meio de comermos o pão da Ceia do Senhor, como o imaginam os Católicos. Cristo dá-Se a Si mesmo aos crentes duma forma especial como a seguir explicarei. Precisamos aprender a maneira como Ele Se comunica (isto é, Se dá) a Si mesmo a nós; como é que Ele chega a ser nosso, para morar em nós e nos repartir todas as bênçãos da Sua obra salvadora. Primeiro, vamos comparar como Deus Se deu a Si mesmo à raça humana na antiga criação, e, depois, como Cristo Se dá a Si mesmo na nova criação.

1. Toda a vida, poder, bondade e sabedoria existiam originalmente em Deus num grau infinito. Nestas e noutras perfeições da Sua natureza, consistia a essência da Sua Glória (os Seus atributos).

2. Na antiga criação Deus comunicou a Glória da Sua bondade, poder e sabedoria numa forma notável (veja-se Sl 19:1 e Rm 1:20) causando uma dependência mútua entre todas as coisas da criação. As criaturas vivas dependem da Terra; a Terra depende do Sol e da chuva; há uma ordem de muitas coisas que subsistem em harmonia.

3. Ao mesmo tempo, todas as coisas dependem de Deus pela contínua comunicação da Sua bondade e poder para com elas (veja-se At 14:15-17 e 17:24-29).

4. A raça humana, por meio da razão pode ver a Glória de Deus nesta obra de criação e pode, também, aprender do Seu eterno poder e deidade (veja-se Rm 1:20).

5. A Glória de Deus vista na criação é a Glória do Deus trino. Pelo Seu poder e bondade, o Pai como a fonte da trindade fez o mundo; o Filho levou a cabo o plano da criação; e o Espírito de Deus continua preservando todas as espécies de vida sobre a Terra (Veja-se Jo 1:1-3; Cl 1:16; Hb 1:2 e Gn 1:2). “Todos esperam de Ti que lhes dês o seu sustento em tempo oportuno. Dando-lho Tu, eles o recolhem; abres a Tua mão, e enchem-se de bens. Escondes o Teu rosto, e ficam perturbados; se lhes tiras a respiração, morrem e voltam ao próprio pó. Envias o Teu Espírito, e são criados, e assim renovas a face da Terra.” (Sl 104:27-30)

A menos que Deus tivesse manifestado a Sua Glória visível na criação natural, ninguém teria sabido que Deus teria tal Glória. Agora, olharemos à nova criação, a Igreja, a qual é de uma ordem mais alta do que a criação física (embora, as evidências externas desta Glória de Deus não possam ser vistas agora tão claramente).

1. A bondade, graça, vida, luz, misericórdia e poder nos quais está a origem da nova criação são todos em Deus. (Quer dizer, a nova criação tem a sua origem nos atributos de Deus, alguns dos quais não foram abertamente manifestados na criação antiga). O propósito completo da nova criação (quer dizer, a Igreja) é para mostrar a Glória de Deus nas maneiras em que Ele Se manifesta à Igreja e mediante a Igreja a outros. Pela Igreja, o verdadeiro e glorioso caráter de Deus seria visto e conhecido.

2. Em primeiro lugar, agradou a Deus que a plenitude da natureza divina estivesse em Cristo como cabeça da Igreja (veja-se Cl 1:17-19). A bondade, graça, vida, luz, poder e misericórdia, as quais foram necessárias para a criação e preservação da Igreja estariam em Cristo; então, seriam comunicadas de Cristo à Igreja. Por meio do Seu ofício de mediador e como profeta, sacerdote e rei, estas coisas seriam comunicadas à Igreja.

3. Se bem que a natureza humana foi assumida numa união pessoal com o Filho de Deus, toda a plenitude de Deus estava ainda nEle (veja-se Cl 2:9). Ele recebeu o Espírito Santo em toda a plenitude e todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento foram escondidos nEle (Cl 2:3).

4. Na criação do mundo, primeiro Deus criou a matéria da qual a Terra foi feita e então pelo poder do Espírito Santo deu diferentes formas de vida às distintas partes da criação inteira. Assim, na obra da nova criação, ainda antes do começo do mundo, Deus escolheu apartar para Si aquela parte da raça humana com a qual formaria a Sua Igreja. Então, a obra do Espírito Santo foi fazer crentes e formá-los no corpo glorioso da Igreja de Cristo. O que foi dito sobre o corpo natural é a verdade acerca do verdadeiro corpo de Cristo, a Igreja: “Os Meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui formado e entretecido como nas profundezas da terra. Os Teus olhos viram o Meu corpo ainda informe (embrião, substância), e no Teu livro todas estas coisas foram escritas, as quais iam sendo dia a dia formadas, quando nem ainda uma delas havia.” (Sl 139:15-16). A substância da Igreja estava sob o olhar de Deus quando Ele escolheu os seus membros. Mas, eles não foram, contudo, formados individualmente nessa ocasião, nem tampouco foram incorporados no corpo ainda que os seus nomes foram escritos no livro da vida. A seu tempo, o Espírito Santo moldou-os conforme ao desenho do corpo proposto por Deus desde o começo.

5. A gloriosa existência de Deus como uma Trindade é manifestada na ordem divina pela qual a vida é dada à Igreja. O decreto da eleição surgiu da infinita e eterna fonte de sabedoria, graça, bondade e amor no Pai. Aqueles que Deus escolheu de entre a raça humana caída para formar a nova criação foram encomendados a Cristo. Ele foi designado como seu Salvador para os resgatar da antiga criação que foi maldita, e levá-los para a nova. Pelo poder do Espírito Santo, Deus planeou aplicar todas as bênçãos da salvação realizada por Cristo e assim comunicar vida, luz, poder, graça e misericórdia a todos os escolhidos. Ao fazer isto, Deus glorifica tanto as propriedades essenciais da Sua natureza (Os Seus atributos tais como a Sua sabedoria, poder, bondade, graça e soberania) e, como também, a Sua gloriosa existência em três Pessoas. Assim, a gloriosa verdade da trindade chega a ser preciosa para os crentes e é o fundamento da sua fé e esperança.

Segundo esta ordem divina, pelo poder do Espírito Santo os escolhidos são levados à vida espiritual. Não são chamados pela casualidade, mas a seu tempo o Espírito Santo comunica a vida e desta maneira glorifica a Deus.

Da mesma maneira, toda a nova criação, a Igreja, é preservada em cada dia. A cada momento é comunicado a todos os crentes no mundo, poder, força, misericórdia e graça de Deus, o Pai, do Filho e do Espírito Santo. O Apóstolo Paulo declara que toda a Igreja está organizada para promover estas comunicações divinas a todos os seus membros (veja-se Ef 4:13-15). Esta comunicação invisível está para lá do entendimento dos incrédulos e a maioria deles não podem ver a Glória desta comunicação. Não obstante, nós devemos rogar como o Apóstolo Paulo: “Para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê em seu conhecimento o espírito de sabedoria e de revelação, tendo iluminados os olhos do vosso entendimento, para que saibais qual seja a esperança da sua vocação e quais as riquezas da glória da sua herança nos santos e qual a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos, segundo a operação da força do seu poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dos mortos e pondo-o à sua direita nos céus, acima de todo principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo nome que se nomeia, não só neste século, mas também no vindouro. (Ef 1:17-21 ARC1995)

Agora, considerarei de forma mais pormenorizada a maneira como Cristo Se comunica a Si mesmo e às Suas bênçãos a todos os que crêem. Nós recebemo-Lo por meio da fé. “Mas a todos quantos O receberam deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus: aos que crêem no Seu nome.” (Jo 1:12) Para que O possamos receber é necessário primeiro que Ele nos seja dado. O Pai no-Lo deu livremente. Este foi o Seu propósito eterno. Também o Pai deu todos os escolhidos a Cristo como Ele disse: “Manifestei o Teu nome aos homens que do mundo Me deste; eram Teus, e Tu Mos deste...” (Jo 17:6). No Evangelho, o Pai prometeu a todos os crentes o dom de Cristo. Pelo Seu poder omnipotente, cria fé nas almas dos escolhidos capacitando-os para receberem a Cristo (veja-se Ef 1:19-20; 2:5-8).

Aqui, estamos pensando, principalmente, acerca da maneira como Cristo Se comunica a Si mesmo a nós de forma pessoal:

1. Dá-nos o Seu Espírito Santo (veja-se Rm 8:9; 1Co 6:17). Quando Cristo veio ao mundo, tomou a nossa natureza em união com a Sua. Quando nascemos de novo, Ele introduz-nos numa união espiritual Consigo mesmo. Ele deve ser nosso e nós dEle. Isto é algo inexpressivamente glorioso. Não há nada como isto em toda a criação. O próprio Espírito está em Cristo, (a cabeça) e na Igreja, dando vida e direção a todo o corpo. Veja a glória, a honra e a segurança da Igreja! O privilégio de entender como a Igreja manifesta a glória de Deus, é maior do que possuir toda a sabedoria do mundo ímpio.

2. Cristo comunica-Se a nós, criando em nós uma natureza nova, a qual é a própria natureza de Cristo formada em nós. Somos participantes da natureza divina em medidas diferentes, mediante as promessas preciosas do Evangelho. Esta natureza divina nos crentes é chamada: “O novo homem”, “uma criatura nova”, “o nascido do Espírito”, “sendo transformado na imagem de Cristo”, “feitura sua”, etc. (Veja-se Jo 3:6; Rm 6:3-8; 2Co 3:18 e 5:17; Ef 2:10 e 4:20-24; 2Pe 1:4). Ao dar-Se desta maneira a Si mesmo a nós, Cristo é-nos feito sabedoria e santificação. Cristo diz respeito à Sua Igreja: “Ela é agora osso dos Meus ossos e carne da Minha carne. Vejo-me a Mim mesmo e à Minha própria natureza nela, e resulta-Me atrativa e desejável. Assim, por fim, Ele a apresentará “a Si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível ...” (Ef 5:27).

3. Dois efeitos resultam do facto de sermos unidos com Cristo pela fé. O primeiro é um fornecimento contínuo de vida espiritual, graça e fortaleza. Os membros da Sua Igreja vivem, porém já não vivem eles, antes Cristo vive neles, e a vida que agora vivem na carne, vivem-na na fé do Filho de Deus (veja Gl 2:20). O segundo efeito da união com Cristo é que a Sua justiça nos é imputada como se fosse nossa, e recebemos todos os benefícios que procedem dEle como nosso mediador (veja-se Rm 4:5). Poderíamos pensar também noutras maneiras nas quais Cristo nos é comunicado a nós. Por exemplo, o Seu amor é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo e o nosso amor regressa para Ele pelo poder omnipotente do mesmo Espírito. Não obstante, espero que já tenhamos pensado o suficiente acerca da Glória da maneira como Cristo Se dá a Si mesmo à Igreja para que os nossos corações estejam cheios de admiração e de agradecimento maravilhoso.

CAPÍTULO 11

A Glória de Cristo manifestada em reunir todas as coisas em Si mesmo

“... As riquezas da Sua graça, que Ele tornou abundante para connosco em toda a sabedoria e prudência, descobrindo-nos o mistério da Sua vontade, segundo o Seu beneplácito, que propusera em Si mesmo, de tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos Céus como as que estão na Terra.” (Ef 1:7-10).

Para procurar entender estas palavras, devemos considerar o estado original de todas as coisas no Céu e na Terra, a desordem produzida pelo pecado e a Glória da restauração de todas as coisas por Cristo.

1. Deus identifica-Se a Si mesmo como “EU SOU” (Ex 3:14). Ele é eternamente auto existente e a fonte de tudo o que existe. Tudo o que existe é dEle (Rm 11:36). Da mesma forma, Deus é a fonte de toda a bondade.

2. Aonde exista um Ser de tal bondade infinita, aí também existe a bem-aventurança infinita e a felicidade às quais nada pode ser acrescentado. A bem-aventurança e a auto-satisfação de Deus eram as mesmas antes de que Ele as criasse como elas são agora. Esta bem-aventurança consiste no amor eterno e mútuo das três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo, num só Deus.

3. Deus fez todas as coisas conforme a Sua vontade e de acordo com o Seu beneplácito, atuando em sabedoria infinita, poder e bondade. Deus deu às coisas criadas uma existência dependente, limitada e bondosa. Ele disse: “Seja feito”, e tudo chegou a existir. “E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom” (Gn 1:31). A primeira forma como Deus mostra a Glória da Sua própria natureza é pela existência e pela bondade da criação física. A continuidade de toda a criação também depende de Deus.

4. Então, “No princípio criou Deus os Céus e a Terra” (Gn 1:1). Deus preparou a Terra para ser a morada dos homens e também preparou o Céu para que fosse o lar dos anjos. Estes lugares (o Céu e a Terra) de acordo com as suas distintas naturezas levaram Glória e louvor a Deus. Toda a ordem das coisas criadas foi sobremaneira formosa. Não existia nenhum rompimento na comunhão entre Deus e as coisas que Ele tinha criado. Deus comunicava-Se diretamente com elas e elas obedeciam-Lhe em tudo.

5. Mas esta formosa ordem foi quebrantada e destruída pela entrada do pecado. Uma parte da família dos anjos no Céu e a totalidade da raça humana sobre a Terra caíram da sua dependência de Deus e só o ódio e a confusão reinaram entre eles. Devido a que a Terra tinha sido posta em sujeição sob a raça humana, (a qual agora está caída) Deus amaldiçoou a Terra. Sem embargo, Ele não amaldiçoou o Céu devido a muitos dos anjos permaneceram no seu estado original (sem queda). Os anjos que pecaram foram completamente rejeitados para sempre (quer dizer, sem a possibilidade de serem salvos). E se bem que toda a raça humana tinha caído no pecado, Deus determinou salvar uma parte dela pela Sua graça.

6. Então, o plano de Deus foi agora o de reunir as duas famílias, os anjos e os homens, juntos sob uma cabeça nova; a família dos anjos bons que foram preservados do pecado e a de todos os crentes que foram livres dos seus pecados. Este é o significado das palavras: “De tornar a congregar em Cristo todas as coisas, ... tanto as que estão nos Céus como as que estão na Terra” (Ef 1:10); e de “reconciliar Consigo mesmo todas as coisas, assim as que estão na Terra como as que estão nos Céus” (Cl 1:20). Jesus Cristo, o Filho de Deus é a nova cabeça em quem Deus reuniu todas as coisas numa só no Céu e na Terra. Como um corpo e uma família eles agora dependem dEle, por Quem vivem e por Quem têm a sua existência. Deus, o Pai, “sujeitou todas as coisas a Seus pés (de Cristo) e, sobre todas as coisas, O constituiu como cabeça da igreja, que é o Seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todos” (Ef 1:22-23). “E Ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por Ele. E Ele é a cabeça do corpo da igreja; é o princípio e o primogénito dentre os mortos, para que em tudo tenha a preeminência, porque foi do agrado do Pai que toda a plenitude nEle habitasse.” (Cl 1:17-19)

7. Deus deu todo poder no Céu e na Terra à Cabeça desta nova e piedosa família. Agora, todos devem vir a Cristo para obter poder espiritual, graça e bondade. Quer sejam anjos ou homens, ambos dependem agora completamente dEle. Os anjos que não caíram não necessitaram da redenção e da graça, e no seu estado original foram capazes de continuar existindo na Glória do Céu. Mas foi necessário para nós que Cristo tomasse a nossa natureza e que Se unisse a nós pelo Seu Espírito. Assim, os crentes são redimidos para viver num Céu glorioso como uma família com os anjos.

Alguns pensamentos adicionais ajudar-nos-ão a meditar sobre este tema de reunir todas as coisas em Cristo, a verdadeira Glória, a qual está além do nosso entendimento.

1. Somente Cristo poderia carregar o peso desta Glória. O Espírito Santo descreve-O como: “O qual, sendo o resplendor da Sua Glória (do Pai), e a expressa imagem da Sua pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do Seu poder...” (Hb 1:3). “O qual é imagem do Deus invisível, o primogénito de toda a criação; porque nEle foram criadas todas as coisas que há nos Céus e na Terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam potestades; tudo foi criado por Ele e para Ele. E Ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por Ele.” (Cl 1:15-17)

2. Foi o eterno e maravilhoso propósito de Deus o glorificar-Se a Si mesmo por meio da encarnação de Cristo. Este propósito foi que toda a criação, especialmente a Igreja, a qual seria bendita eternamente, tivesse uma nova cabeça. A ordem de toda a família no Céu e na Terra, anjos e homens, dependeriam de Cristo. Nada deveria encher mais os corações dos crentes com gozo e deleite, do que contemplar pela fé a formosura divina de reunir todas as coisas em Cristo.

3. O problema do pecado que destruiu toda a beleza e a ordem da criação foi resolvido. Todas as coisas no princípio da criação foram formosas pela maneira como tudo era dependente de Deus e mostravam assim a Sua sabedoria e a Sua formosura. A entrada do pecado arruinou esta cena de formosura. Mas agora, ao reunir todas as coisas em Cristo Jesus, todas as coisas são restauradas outra vez a um estado de comunhão com Deus. Efetivamente, toda a maravilhosa estrutura da criação divina foi tornada mais bela do que antes foi e tudo isto surge da sua nova relação com o Filho de Deus.

4. Deus sempre é sábio em tudo o que faz. A Sua sabedoria e poder infinitos foram manifestos na primeira criação. “Quão inumeráveis são as Tuas obras, oh Jeová! Fizeste todas elas com sabedoria...” (Sl 104:24). Mas quando os efeitos desta sabedoria divina foram arruinados, uma sabedoria maior se requeria para restaurar a criação. Ao reunir todas as coisas em Cristo, Deus manifestou a Sua sabedoria inescrutável aos anjos, os quais nada tinham conhecido antes acerca de quais eram os Seus propósitos. “Para que a multiforme sabedoria de Deus seja agora dada a conhecer por meio da igreja aos principados e às potestades nos lugares celestiais.” (Ef 3:10) “Em Cristo estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento.” (Cl 2:3)

5. Na primeira criação, gloriosa como foi, tudo dependia diretamente de Deus e da lei de obediência a Ele. Esta foi uma frágil unidade que dependia de uma vontade disposta das criaturas para obedecer ao seu Criador. Mas tudo na nova criação, até cada crente foi unido a Cristo, a cabeça. Esta é uma unidade inquebrável. Aqueles que dependem inteiramente de Cristo para a sua eterna segurança não podem cair da salvação que agora desfrutam nEle.

CAPÍTULO 12

A diferença entre a contemplação presente pela fé da Glória de Cristo e o que veremos no Céu.

“Andamos por fé, não por vista.” (2Co 5:7) Nesta vida, caminhamos pela fé; na vida vindoura andaremos pela vista.

A visão que temos da Glória de Cristo pela fé neste mundo é escura e imprecisa. Como o Apóstolo Paulo diz na primeira Epistola aos Coríntios, “agora vemos por espelho, obscuramente” (1Co 13:12). Num espelho não vemos a pessoa mesmo, mas só uma imagem imperfeita dela. O nosso conhecimento não é direto mas é como um reflexo imperfeito da realidade. O Evangelho, sem o qual não poderíamos descobrir nada acerca de Cristo, está ainda muito longe de manifestar plenamente a grandeza da Sua Glória. O Evangelho mesmo não é obscuro, nem impreciso. O Evangelho é claro e direto, e manifesta abertamente a Cristo crucificado, exaltado e glorificado. O Evangelho é obscuro para nós porque não o entendemos perfeitamente. A fé é o instrumento pelo qual entendemos o Evangelho, mas a nossa fé é débil e imperfeita. Não há nenhuma parte da sua Glória que possamos entender plenamente. No nosso presente estado terrestre há algo como uma parede entre nós e Cristo. Mas às vezes vemo-Lo através das “janelas”, “O meu amado é semelhante ao gamo ou ao filho do corço; eis que está detrás da nossa parede, olhando pelas janelas, reluzindo pelas grades” (Ct 2:9). Estas “janelas” são as oportunidades que temos de escutar e receber as promessas do Evangelho através dos meios da graça e do ministério da Palavra. Tais oportunidades refrescam as almas daqueles que crêem. Mas esta visão da Sua beleza e Glória não é permanente. Então clamamos, “Como o cervo brama pelas correntes das águas, assim suspira a minha alma por Ti, ó Deus! A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando entrarei e me apresentarei ante a face de Deus? (Sl 42: 1-2).

Quando voltarei a vê-Lo outra vez, ainda que seja somente através da “janela”?

Às vezes, como Job, não O podemos ver porque esconde o Seu rosto detrás de uma nuvem (veja-se Job 23:8-9). Em outras ocasiões manifesta-Se a Si mesmo como o Sol em toda a Sua força e não podemos suportar o Seu esplendor.

Agora, vamos comparar como veremos a própria Glória de Cristo quando estivermos no Céu. A nossa vista será segura, direta e imediata.

1. Cristo mesmo, em toda a Sua Glória estará contínua e realmente connosco. Já não teremos de nos contentarmos simplesmente com uma descrição dEle, como a que temos nos Evangelhos. Vê-Lo-emos cara a cara (1Co 13:12) e tal como Ele é (1Jo 3:2). Vê-Lo-emos com os nossos olhos físicos porque Job diz: “E depois de consumida a minha pele, ainda em minha carne verei a Deus. Vê-lo-ei por mim mesmo, e os meus olhos, e não outros, O verão...” (Job 19:25-27). Os nossos sentidos corporais serão restaurados e glorificados duma maneira que não podemos compreender agora, a fim de que sejamos capazes de contemplar a Cristo e à Sua Glória, para sempre. Não veremos só a Sua natureza humana, mas, também contemplaremos a Sua divindade na Sua infinita sabedoria, amor e poder. Esta Glória será mil vezes maior do que algo que podemos imaginar. Esta visão de Cristo é a que todos os santos de Deus desejamos. Este é o nosso desejo “de partir e estar com Cristo, porque isto é ainda muito melhor; deixar este corpo, para habitar com o Senhor” (Fl 1:23; 2Co 5:8). Aqueles que não têm com frequência este desejo são gente mundana e não espiritual.

2. Ninguém nesta vida tem o poder, nem espiritual nem corporalmente para ver a Glória de Cristo como realmente ela é. Quando alguns reflexos desta Glória divina foram vistos no monte da transfiguração, os discípulos foram confundidos e atemorizados. Se o Senhor Jesus viesse a nós agora em toda a Sua majestade e Glória, seríamos incapazes de receber algum benefício ou consolo desta aparição. Até o Apóstolo João, que foi muito amado, caiu aos Seus pés como morto, quando Cristo lhe apareceu na Sua Glória (Ap 1:17). Paulo e todos aqueles que o acompanhavam caíram em terra quando a brilhantez da Sua Glória resplandeceu sobre eles no caminho para Damasco (At 26:13-14). Quanto insulta a Deus quando a gente néscia faz quadros ou imagens do Senhor Cristo Jesus na Sua Glória! A única maneira na qual O podemos conhecer agora é por meio da fé. Ainda quando Cristo Ele estava na Terra, a Sua verdadeira Glória estava oculta pela Sua humanidade. Não podemos conhecê-Lo agora tal como Ele é verdadeiramente, cheio de Glória indescritível. Por natureza devido à nossa pecaminosidade, as nossas mentes estavam completamente cheias de maldade e de escuridão e éramos incapazes de ver as coisas espirituais corretamente. Agora, os crentes têm sido restaurados em parte e chegamos a “ser luz no Senhor” (Ef 5:8). Mas, as nossas mentes ainda estão limitadas pelos nossos corpos e por muitas debilidades e imperfeições que permanecem em nós. Estes obstáculos serão tirados para sempre no Céu (veja-se Ef 5:27). Depois da ressurreição, as nossas mentes e corpos serão livradas de tudo aquilo que agora nos impede de desfrutarmos de uma plena visão da Glória de Cristo. Então, um só ato de olhar claramente para a Glória de Cristo com o nosso entendimento glorificado nos dará mais satisfação e felicidade do que jamais poderíamos ter aqui por meio das nossas atividades religiosas. Temos um poder natural para entender e julgar as coisas desta presente vida terrestre. Mas esta capacidade natural não nos pode ajudar a ver e a entender as coisas espirituais. Isto é o que o Apóstolo Paulo nos ensina em 1Co 2:11-14: “Porque qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o espírito do homem, que nele está? Assim também ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus... Ora, o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.”

Então, Deus dá-nos a capacidade sobrenatural da fé e da graça. Ainda temos o nosso entendimento natural, mas é só pela capacidade espiritual que podemos ver as coisas espirituais. No Céu, teremos uma capacidade nova para ver a Glória de Cristo.

1. Como a regeneração não destrói antes incrementa a nossa capacidade natural; assim a luz que desfrutaremos na Glória não destruirá, nem anulará o poder da fé e da graça, mas antes as aperfeiçoará absolutamente.

2. Por natureza não podemos compreender completamente a essência da graça. Tampouco por meio da graça podemos compreender inteiramente a natureza da Glória. Não entenderemos perfeitamente a Glória até que sejamos transformados e nos encontremos no Céu.

3. A melhor ideia que podemos ter agora da natureza da Glória consiste em considerar que no momento da nossa transformação, seremos mudados na semelhança perfeita de Cristo.

Há uma progressão da natureza para Glória. A graça renova a nossa natureza; a Glória aperfeiçoa a graça, e assim a alma é completamente transformada e levada ao seu descanso em Deus. Temos uma ilustração disto na cura que Cristo realizou num homem cego (veja-se Mc 8:22-25). Este homem era completamente cego. Então os seus olhos foram abertos, mas não podia ver claramente. Via os homens como árvores que caminhavam. Mas logo, Cristo lhe tocou novamente e imediatamente ele pôde ver tudo claramente. Assim são as nossas mentes por natureza. A graça dá-nos uma visão parcial das coisas espirituais, mas a luz da Glória dar-nos-á uma visão perfeita e completo entendimento. Esta é a diferença entre a visão que temos agora e a visão que teremos na Glória.

Mas, havendo considerado a mudança realizada na nossa mente, pensemos agora nos nossos corpos glorificados. Quando o nosso corpo for ressuscitado do sepulcro, veremos o nosso Redentor. Estêvão realmente viu “a Glória de Deus, e a Jesus que estava à mão direita de Deus” (At 7:55). Quem não desejaria ter tido o privilégio dos discípulos, os quais viram fisicamente a Cristo quando Ele estava na Terra? Cristo disse-lhes que: “Muitos profetas e justos desejaram ver o que vós vedes, e não o viram” (Mt 13:17). Se isto foi um privilégio tão grande, quão glorioso será, quando com os nossos olhos purificados e fortalecidos, vejamos Cristo na plenitude da Sua Glória! Não podemos imaginar como será, mas sabemos que Cristo orava ao Pai para que estivéssemos com Ele e que víssemos a grandeza e a beleza da Sua Glória (veja-se Jo 17:24).

Enquanto estamos neste mundo “gememos dentro de nós mesmos, esperando a adoção, a redenção do nosso corpo” (Rm 8:23). Como Paulo, clamamos “Miserável de mim! Quem me liberará deste corpo de morte?” (Rm 7:24). Quanto mais perto alguém está do Céu, mais fervorosamente aí deseja estar, porquanto Cristo está aí. Os nossos pensamentos sobre Cristo são tão confusos e imperfeitos que conduzem a um desejo profundo de O conhecer melhor. Mas este é o melhor estado de ânimo em que podemos encontrar-nos. Peço a Deus para que não me seja tirado este desejo e para que o Senhor incremente estes anelos cada vez mais em todos os crentes.

O coração de um crente afetado pela Glória de Cristo é como uma agulha atraída por um ímã. Já não pode estar em paz nem satisfeito longe de Cristo, apesar de que se acerque com movimentos débeis e trementes. Empurra-se continuamente para Cristo e não pode encontrar descanso neste mundo. Mas lá no Céu com Cristo continuamente diante de nós, poderemos olhar sem cessar a Sua Glória. Esta visão constante trará um refrigério eterno e gozo às nossas almas. Se bem que não podemos entender agora como será esta visão final de Deus, sabemos que os puros de coração verão a Deus (Mt 5:8). Ainda na eternidade, Cristo será o único meio de comunicação entre Deus e a Sua Igreja.

Consideremos por um momento os crentes do Antigo Testamento. Eles viram algo da Glória de Cristo, mas só na forma de símbolos velados. Eles anelavam o tempo quando o véu seria tirado e os símbolos dessem lugar à realidade. Olhavam para o cumprimento das promessas divinas e para a vinda do Filho de Deus ao mundo. Em muitos casos existia mais do poder da verdadeira fé e amor nos seus corações do que podemos ver na maioria dos crentes de hoje. Quando Jesus veio, o ancião Simeão tomou o menino Jesus em seus braços e disse: “Agora, Senhor, podes despedir em paz o Teu servo, segundo a Tua palavra, pois já os meus olhos viram a Tua salvação” (Lc 2:28-29).

Nós temos uma revelação mais clara da natureza única do Senhor e da Sua obra que aqueles crentes veterotestamentários. E a visão que teremos da glória de Cristo no Céu será muito mais clara e brilhante do que a revelação que temos agora. Se aqueles crentes oravam para que o véu e os símbolos fossem tirados, e desejavam muito fervorosamente ver a Glória de Cristo, quanto mais fervorosamente deveríamos nós orar para vermos a Sua Glória?

Já pensámos acerca da Glória de Cristo como manifestada em três graus. Primeiro, os crentes do Antigo Testamento viram-na através da Lei e dos símbolos. Segundo, no Evangelho temos uma semelhança perfeita desta Glória. Mas temos de esperar até que cheguemos à Glória onde Cristo está para podermos desfrutar da sua realidade.

Examinemo-nos a nós mesmos para ver se nos estamos apressando continuamente para uma visão perfeita da Glória de Cristo no Céu. Se não é assim, é uma evidência de que a nossa fé não é real. Se Cristo está em nós, Ele é “a esperança de Glória” (Cl 1:27). Muitos estão muito apaixonados pelo mundo para desejarem sair dele e irem para o lugar onde podem ver a Glória de Cristo. Estão interessados nas suas possessões, nos seus negócios ou nas suas famílias. Tais pessoas vêem a beleza deste mundo no espelho do amor próprio e as suas mentes são mudados na sua própria imagem egoísta. Por outro lado, os crentes verdadeiros deleitam-se ao verem a Glória de Cristo nos Evangelhos e também são transformados nessa mesma imagem.

O nosso Senhor Jesus Cristo é o único que entende perfeitamente a bem-aventurança eterna, a qual será desfrutada por aqueles que crêem nEle. Cristo ora para que “onde Eu estou, também eles estejam Comigo, para que vejam a Minha Glória” (Jo 17:24). Se presentemente podemos entender somente um pouco do que esta Glória significa, pelo menos devemos confiar na sabedoria e no amor de Cristo de que esta Glória será imensamente melhor do que algo que possamos desfrutar agora. Não deveríamos desejar continuamente ser incluídos na Sua oração?

CAPÍTULO 13

Outra diferença entre a contemplação presente pela fé da Glória de Cristo e o que veremos no Céu

Quando estamos vendo algo de uma distância longínqua, isso desaparece da nossa vista se alguma coisa se colocar no meio. Assim é às vezes com a nossa fé. Temos muito pouca ou nenhuma visão do todo da Glória de Cristo. Enquanto estamos nesta vida, o Senhor Jesus, na Sua soberana sabedoria, esconde-Se em algumas ocasiões de nós. Job queixava-se de que não podia ver a Deus nem à sua esquerda nem à sua direita (veja-se Job 23:8-9). Isaías escreveu: “Verdadeiramente Tu és Deus que Te encobres...” (Is 45:15). O salmista clamou: “Até quando, oh Jeová? Te Esconderás para sempre?” (Sl 89:46).

Amiúde, ao escutar a pregação da Palavra, a visão da Glória de Cristo é escondida a alguns, enquanto que, ao mesmo tempo, outros são iluminados e edificados (veja-se Jo 14:22). Agora vou procurar responder a duas perguntas:

1. Por que é que em algumas ocasiões o Senhor Se esconde e oculta a Sua Glória dos crentes? Há muitas razões, mas só mencionarei uma. Ele fá-lo para nos impulsionar para O buscarmos com todo o nosso coração. Frequentemente, a negligência e a preguiça fazem-nos descuidar a nossa meditação nas coisas celestiais. Porém Cristo é paciente connosco. Ele sabe que aqueles que viram algo da Sua Glória, embora não O tenham valorizado como deveriam, não podem suportar muito tempo a Sua ausência. Ele diz: “Irei e voltarei para o Meu lugar, até que se reconheçam culpados e busquem a Minha face; estando eles angustiados, de madrugada Me buscarão” (Os 5:15). Então, deveríamos reagir como a noiva que buscava o seu amado mas que ao princípio não podia encontrá-lo. Ela disse: “Levantar-me-ei, agora... Buscarei aquele a quem ama a minha alma.” E quando o encontrou disse: “logo o achei e não o deixei.” (veja-se Ct 3: 1-5)

Frequentemente somos semelhantes ao homem descrito pelo profeta ao rei Acab: “Enquanto o teu servo estava ocupado numa e noutra coisa, o homem desapareceu.” (veja-se 1Rs 20:40) Cristo compromete-Se connosco e não deveríamos deixá-Lo ir-Se embora. Mas, enquanto estamos ocupados numa e noutra coisa, as nossas mentes enchem-se muito com as coisas terrestres, e, então, Ele vai-Se e não O podemos encontrar.

2. Como podemos saber quando Cristo retira a Sua presença de nós, a fim de que não possamos ver a Sua Glória? Estou-me dirigindo só àqueles, cuja preocupação principal é manter o seu amor e a sua fé fortes para com Cristo. O efeito da Sua presença é que nos faz procurar imitá-Lo e amá-Lo mais. É só quando estamos conscientes de viver pela fé que temos este grande desejo de viver como Cristo. Crescer na imagem de Cristo significa crescer em graça, santidade e obediência. Quando nos parece que este crescimento se deteve, sabemos que Cristo não está connosco. (Nota do tradutor: O autor não se refere a que Cristo nos deixe realmente, mas, sim, a que o crente perde a consciência da presença de Cristo. Tal como Se Ele ocultasse o Seu rosto e escondesse o Seu sorriso de nós.)

Há aqueles cujas mentes naturais chegam a ser muito afetadas por olhar às imagens e aos crucifixos. Mas o efeito que é produzido por uma imagem é somente um efeito natural. Um Cristo imaginário não terá um efeito espiritual sobre a mente destas pessoas. É só através do conhecimento espiritual da Glória de Cristo pela fé que é dado pode a graça fazer com que a alma esteja disposta a ser mudada na Sua semelhança. Se os nossos corações se tornarem frios e indiferentes nos nossos deveres espirituais, é certo que o Senhor nos ocultou o Seu rosto temporariamente. É igualmente certo que quando estamos olhando para a Glória de Cristo no Evangelho (continuando em pensamentos santos e na meditação), experimentaremos a Sua presença e a Sua graça obrando em nós. Provemos isto e veremos que o nosso amor para com Ele cresce. É pela atividade da nossa fé em Cristo que o Espírito Santo renova as nossas almas pelo Seu poder transformador.

Vamos a Cristo ao princípio para termos vida. Mas também vamos a Ele como crentes a fim de termos uma vida mais abundante (veja-se Jo 10:10). Como Ele reprova aqueles que não vêm a Ele para que tenham vida, assim poderia Ele justamente reprovar-nos a nós por não virmos a Ele mais repetidas vezes a fim de que tenhamos uma vida mais abundante.

Há muitos que dizem ser crentes que vivem uma vida descuidada sem nenhuma preocupação real pelas bênçãos espirituais. Eles não conhecem o santo e espiritual refrigério que o Senhor traz para nós por meio do Seu Espírito Consolador. Tais bênçãos incluem a paz espiritual, o consolo animador, o gozo inefável e a segurança bendita da nossa salvação. Sem alguma experiência destas coisas, o nosso Cristianismo carece de vida, de coração e é inútil. Como podemos dizer que cremos nas promessas acerca das Glórias eternas do Céu, se não cremos nas promessas de desfrutar destas bênçãos espirituais aqui e agora?

Cristo diz a todos os que O amam: “Eu o amarei e Me manifestarei a ele... E meu Pai o amará, e viremos a ele, e faremos morada com ele.” (Jo 14:21-23) Quando Ele vem e Se manifesta a nós, sempre nos traz a paz, o consolo, o gozo e a segurança. E temos comunhão com Ele por meio deste refrigério espiritual (veja-se Ap 3:20). Se perguntarmos, como recebemos tais bênçãos? A resposta é: Olhando para a Glória de Cristo por meio da fé (veja-se 1Pe 1:9-10). Meditemos sobre a Glória da natureza única de Cristo, meditemos na Sua humilhação ao vir a este mundo, meditemos na Sua presente posição de exaltação no Céu, meditemos no Seu amor e na Sua graça. Então os nossos corações serão afetados em grande medida por uma consciência do Seu amor, o qual é a fonte de todo o nosso consolo espiritual (veja-se Jo 4:14 e Rm 5:5). Quando perdemos estas bênçãos, então sabemos que a presença de Cristo nos deixou momentaneamente e já não podemos ver a Sua Glória.

O propósito do Senhor de esconder a Sua Glória da nossa vista é animar-nos para usarmos a graça que Ele nos deu e impulsionar-nos para O buscarmos com todo o nosso coração. Sentimo-nos sem vida e sem gozo, sem uma consciência do Seu amor em nossos corações? Não há nenhuma outra maneira para nos recuperarmos outra vez do que nos voltarmos de novo para Cristo. Todos os nossos problemas espirituais surgem de nós mesmos, dos desejos pecaminosos que ainda permanecem em nós (os quais frequentemente se incrementam pelas tentações do diabo). Por meio da fé, devemos fixar as nossas mentes na Glória de Cristo e isto nos trará novamente a vida, o gozo e o amor às nossas almas.

Se estivermos satisfeitos com uma mera ideia da Glória de Cristo, como um dado de informação obtido das Escrituras, então não encontraremos nela nenhum poder transformador para as nossas vidas. Amemos a Cristo com todo o nosso coração; enchamos as nossas mentes com pensamentos de deleite nEle; exercitemos continuamente a nossa confiança nEle; e então a virtude procederá dEle para purificar os nossos corações, para incrementar a nossa santidade, para fortalecer as nossas graças e para nos encher em todas as ocasiões com gozo inefável e glorioso (1Pe 1:8). É bom quando o amor do nosso coração é vivificado ao mesmo tempo que o nosso entendimento é iluminado. O simples conhecimento sem o amor conduz ao formalismo vazio. O amor puro sem o conhecimento conduz à superstição.

Nos próprios crentes, aonde existe o amor para com o mundo e as coisas desta vida, a fé é debilitada e a mente torna-se instável na sua visão da Glória de Cristo. Mas todos aqueles que tem uma visão espiritual da Glória de Cristo terão um grande amor por Ele e as suas mentes encher-se-ão com pensamentos acerca dEle (veja Fl 3: 8-10; Cl 3: 1-2).

Onde quer que o Evangelho é pregado, Satanás cega as mentes daqueles que não crêem, “para que não lhes resplandeça a luz do Evangelho da Glória de Cristo...” (2Co 4:4) Mas na salvação dos escolhidos, Deus vence a Satanás e resplandece nos seus corações “para iluminação do conhecimento da Glória de Deus na face de Jesus Cristo” (2Co 4:6). Mas Satanás não se dá por vencido antes usa toda a espécie de artimanhas para inquietar as mentes dos crentes. Os seus dardos de fogo fazem surgir temores e dúvidas no coração dos crentes para que não possam sentir o amor de Cristo. A outros fá-los descuidados para que não se auto examinem e não possam ver se Cristo está neles ou não (veja-se 2Co 13:5). Desta forma, muitos deixam de procurar uma experiência do poder e da graça do Evangelho nas suas próprias almas e assim nunca chegam a descobrir as Glórias de Cristo que poderiam ter conhecido.

Agora, consideraremos novamente a visão que teremos da Glória de Cristo no Céu:

1. Primeiro, as capacidades das nossas almas serão aperfeiçoadas. Seremos como “os espíritos dos justos feitos perfeitos” (Hb 12:23). Seremos livrados de todas as limitações da carne. Seremos transformados para chegarmos a ser perfeitos em pureza e santidade, como Deus. Os nossos corpos glorificados serão capazes de desfrutar da Glória de Cristo para sempre. O nosso entendimento será perfeito. Enquanto olhamos para Deus, todos os afetos do nosso coração se fixarão inseparavelmente nEle. No nosso estado presente, às vezes, vemo-nos forçados a desviar-nos da consideração dessas realidades tal como agora desviamos os nossos olhos do resplendor do Sol. Mas naquele estado perfeito, seremos capazes de olhar continuamente para a Glória com eterno deleite. David diz: “Quanto a mim, verei o Teu rosto em justiça; estarei satisfeito quando despertar a Tua semelhança” (Sl 17:15). Nunca nos cansaremos de olhar para Cristo, O qual é somente Ele a imagem e a semelhança de Deus. Aqui andamos por fé, mas lá nos será dado um poder eterno de visão com o qual O veremos tal como Ele é, cara a cara, com um desfrute perfeito para todo o sempre.

2. Estar no Inferno sob a ira de Deus é o maior mal possível. Mas estar lá para sempre, numa miséria sem fim, deve ser um mal muito mais para além daquilo que a nossa capacidade possa imaginar ou descrever. Mas com a futura bem-aventurança da vida eterna, não haverá limitação de tempo nem nenhuma interrupção deste desfrute. “...E assim estaremos sempre com o Senhor.” (1Ts 4:17). Não haverá necessidade de nenhum dos nossos meios presentes de adoração. O desfrute constante, imediato e ininterrupto de Deus e do Cordeiro suprirá tudo o que necessitamos. “O seu templo é o Senhor, Deus Todo-poderoso, e o Cordeiro. E a cidade não necessita de Sol nem de Lua, para que nela resplandeçam, porque a Glória de Deus a tem alumiado, e o Cordeiro é a sua lâmpada.” (Ap 21:22-23) No Céu, a presença perpétua de Cristo com os seus santos resulta numa experiência perpétua de luz e de Glória. Não haverá dúvidas nem temores porque estaremos num estado de contínuo triunfo sobre eles (veja-se 1Co 15:55-57). A visão da Glória de Cristo sempre será a mesma, mas sempre nova. Sem nada que distraia a mente, teremos o desfrute mais perfeito de uma vida bendita centrada no objeto mais perfeito, ou seja, a Glória de Cristo. Esta experiência é a maior bem-aventurança da qual a nossa natureza humana é capaz de desfrutar.

CAPÍTULO 14

Mais diferenças entre a contemplação presente pela fé da Glória de Cristo e o que veremos no Céu

1. No presente obtemos um entendimento espiritual da Glória de Cristo por meio do estudo das Escrituras. Mas a luz da revelação desta Glória está repartida através de todos os livros do Antigo e do Novo Testamento, tal como a luz natural nos é dada através do Sol, da Lua e das estrelas. Se toda a luz fosse concentrada numa só fonte, não seríamos capazes de suportá-la. Assim nas Escrituras, a Glória de Cristo é descrita pouco a pouco em diferentes maneiras. Às vezes é descrita com palavras claras, em outras ocasiões sob tipos e figuras, os quais ilustram a Sua humildade e amor para connosco. Diferentes verdades estão repartidas na Bíblia para que as recolhamos como se fossem flores formosas. Nos Cantares de Salomão, a noiva considera as muitas perfeições de Seu amado e conclui que Ele é em todo o sentido cobiçável (Ct 5:10-16). Assim nós paulatinamente descobrimos as muitas perfeições de Cristo e O encontramos extremamente glorioso.

Não obstante, no Céu toda a Glória de Cristo estará diante de nós. Seremos capazes na luz desta Glória de contemplá-la toda. Aqui não podemos imaginar qual será a beleza e a Glória desta manifestação completa de Cristo. De repente, entenderemos tudo o que Ele fez e sofreu, a Sua posição exaltada, a Sua união com a igreja e como todas as coisas estão reunidas nEle. Veremos a Glória de Deus, a Sua sabedoria, a Sua justiça, a Sua graça, o Seu amor, a Sua bondade e o Seu poder, tudo resplandecendo eternamente em Cristo. Podemos anelar isto agora e ainda ter um vislumbre disso. Mas, todo o conhecimento de Cristo na Sua Glória celestial está no Céu onde há águas de vida e rios de prazer, para sempre.

2. A visão que teremos da Glória de Cristo no Céu mudar-nos-á perfeita e completamente na Sua imagem. “Seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é” (1Jo 3:2). Vamos fixar-nos com mais pormenor nisto: I. Quando a alma deixa o corpo, é libertada imediatamente de toda a debilidade, incapacidade, escuridão e temor. A natureza pecaminosa deixará de existir. A morte foi o julgamento divino sobre o pecado, mas por meio da morte de Cristo em nosso lugar, nós recebemos misericórdia (veja-se 1Co 15:54). Não obstante, os incrédulos devem receber a recompensa da sua incredulidade, as suas almas serão separadas eternamente de Deus. II. Os crentes, tendo sido livres da carga da sua natureza pecaminosa, descobrem que o seu espírito pode cumprir o propósito para o qual foi criado. Eles podem desfrutar de Deus com deleite e satisfação. Além disso, na ressurreição, o novo corpo glorificado nunca estorvará, mas antes ajudará em todas as nossas atividades espirituais. Os nossos olhos verão o nosso Redentor e todos os nossos sentidos serão usados para desfrutar da comunhão com Ele.

3. Ao sermos introduzidos na presença de Cristo, um poder novo nos será dado, a capacidade celestial para vermos o Senhor Jesusm tal como Ele é. Esta capacidade gloriosa tomará o lugar da fé, da qual necessitamos somente nesta vida.

4. No momento em que os crentes vejam a Glória de Cristo, imediatamente, serão transformados completamente na Sua semelhança. Quando o pecado entrou no mundo e Adão e Eva foram expulsos do jardim de Éden, Deus disse: “Eis que o homem é como um de nós sabendo o bem e o mal” (Gn 3:22). Quando a obra da graça é terminada Deus pode dizer, não com irritação mas com amor e bondade infinita: “Eis que o homem é como um de nós”. Nesta vida a nossa fé em Cristo produz uma mudança gradual em nós ainda que incompleta. Se queremos estar seguros de que seremos restaurados perfeita e eternamente na imagem de Deus, devemos ter agora alguma experiência desta mudança gradual (veja-se 2Co 3:18; 4:16-18; Fl 3:10-14).

3. Até mesmo no Céu, todas as criaturas têm de viver eternamente numa dependência de Deus como a fonte de vida, de bondade e de bem-aventurança. Não seremos mais auto-suficientes na Glória do que somos agora. Pois tudo nos virá através de Cristo Jesus; todas as coisas no Céu e na Terra serão reunidas nEle (veja-se Ef  1:10-11). O nosso estado contínuo de felicidade e de Glória dependerão inteiramente destas comunicações de Deus mediante Cristo. Nunca nos cansaremos de ver Cristo no Céu. O objeto infinito da nossa visão glorificada será insondável e sempre novo para o nosso entendimento finito. A nossa felicidade consistirá numa contínua comunicação refrescante da infinita plenitude da natureza de Deus. Esta futura vida de Glória é muito maior do que a vida de fé que vivemos agora. Não obstante, não há nenhuma satisfação ou gozo deste mundo presente que possa comparar-se com a visão débil e imperfeita que a nossa fé tem agora da Glória de Cristo. Até a pobre visão da nossa fé nos dá agora um vislumbre da bem-aventurança futura que teremos no desfrute de Cristo.E isto faz-nos suspirar e desejar aquele tempo quando O veremos e estaremos para sempre com Ele e O conheceremos como Ele nos conhece.

CAPÍTULO 15

Um chamado urgente a todos aqueles que ainda não são crentes verdadeiros em Cristo

Amiúde nos evangelhos, quando há uma descrição da excelência de Cristo como Salvador, há também um convite aos pecadores para que vão a Ele. Então, é correto que nestes últimos capítulos de nosso estudo sobre a Glória de Cristo, relacionemos esta verdade com nossa necessidade como pecadores. Cristo diz: “Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei.” (Mt 11:28) E “Se alguém tem sede, venha a Mim e beba” (Jo 7:37). Há várias razões pelas quais deveríamos fazer caso deste convite:

1. Muitos escutam a palavra pregada mas poucos são salvos. “Porque muitos são chamados, mas poucos, escolhidos.” A tolice maior do mundo consiste em deixar a consideração do nosso estado eterno para algum ponto futuro e incerto, ao qual possivelmente nunca pudéssemos chegar.

2. Não pense você que devido a que professa ser crente e está desfrutando das bênçãos externas do evangelho, você pertence necessariamente a Cristo. Você pode comparar-se a si mesmo com outros e pensar que é melhor do que eles. Mas se você descansa para a sua salvação em algum mérito pessoal ou justiça própria, então você está correndo o risco de ser enganado eternamente (Mt 3:9).

3. A menos que estejamos completamente convencidos de que sem Cristo estamos sob a maldição de Deus e que somos como os Seus piores inimigos, nunca iremos a Ele como nosso refúgio. Cristo não veio “chamar os justos, mas os pecadores ao arrependimento” (Mt 9:13). Então, se ainda não somos salvos, a nossa principal preocupação deveria ser a de ter um profundo sentido da condição miserável e perdida das nossas almas.

4. Agora, considere o amor infinito de Cristo em o chamar a si para que tenha vida, misericórdia, graça, paz e salvação eterna. Há muitas coisas nas Escrituras que são dadas para animar aos pecadores que estão sob a convicção para que vão a Cristo. Através da pregação dos ministros cristãos Cristo diz: “Porque morrerá? Porque não tem piedade da sua própria alma? Venha a Mim e Eu tirarei todos os seus pecados, as suas tristezas, os seus temores e as suas cargas. E dar-lhe-ei descanso para a sua alma”. Considere a grandeza da Sua misericórdia, graça e amor em o chamar tão sincera e urgentemente. Não permita que o veneno da incredulidade a qual conduz indevidamente à ruína eterna lhe faça menosprezar este convite para vir a Cristo.

5. Possivelmente você tenha começado a ir a Ele mas teme não ser recebido devido a que você tem sido tão pecador. Mas, o convite do evangelho diz que Cristo está disposto a receber a cada pecador que vai a Ele. O Pai, o Filho e o Espírito Santo concordam em que Cristo, o Senhor, está disposto a receber a todos os pecadores vão a Ele. É somente a incredulidade obstinada, a qual faz aparecer a Deus como mentiroso, a que sugere que Cristo não está disposto a receber os pecadores.

6. Considere o fato de que Cristo é tão capaz de nos salvar como também disposto para nos receber. Não salvará os pecadores que não se arrependam de seus pecados. Isto seria negar-Se a Si mesmo e atuar de forma contrária à Sua Palavra. Mas nada pode deter o Seu poder soberano, irresistível e omnipotente, para salvar aqueles que se arrependem. “É-Me dado todo o poder no Céu e na Terra.” (Mat 28:18) Cristo usará este poder para conceder a salvação eterna a todos os que vão a Ele. Eke disse: “Tudo o que o Pai me dá virá a Mim; e o que vem a Mim de maneira nenhuma o lançarei fora.” (Jo 6:37)

7. Pense profundamente sobre o Deus imensamente sábio e piedoso cujo propósito é que a Sua misericórdia, amor, graça, bondade, justiça, sabedoria e poder sejam manifestados em Cristo para a salvação de todos aqueles que crêem. Portanto, quem quer que vá a Cristo através da fé está por meio deste ato honrando a Deus. Quando os pecadores vão a Cristo, Deus recebe mais glória que a que receberia se estes pecadores tivessem guardado toda a lei. Não se engane a si mesmo pensando que é de pouca importância que vá a Cristo ou não. Se você recusa fazê-lo, este seria o maior ato de odeio contra Deus que você poderia realizar.

8. Considere que ao ir a Cristo, Ele chegará a pertencer-Lhe a si numa relação mais próxima que a que tem com a sua esposa, o seu marido ou com os seus filhos. Cristo está mais próximo dos crentes qualquer relação natural. Isto significa que quando você vai a Cristo, a Glória de Cristo lhe pertence. Parece-lhe pouca coisa, perante os seus olhos que Cristo lhe pertença? Parece-lhe como nada que a Sua Glória e a Sua bênção eterna pudessem ser suas?

9. “Como escaparemos nós, se não atentarmos para uma tão grande salvação?” (Hb 2:3) De todas as criaturas de Deus, os incrédulos que não se arrependem sob a pregação do evangelho são os mais maus e os mais ingratos. Os próprios demónios, ímpios como são, não são culpados deste pecado porque nunca tiveram a oportunidade de receber a salvação. Alguém poderia perguntar: “Então o que faremos?” Tome a advertência do apóstolo: “Se ouvirdes hoje a sua voz, não endureçais o vosso coração” (Hb 3:7-8). “Eis aqui agora o tempo aceitável, eis aqui agora o dia da salvação.” (2Co 6:2) Este é o melhor tempo (provavelmente será o melhor que você terá neste mundo) para assegurar-se da sua salvação. Cristo esperou muito tempo por si, e quem sabe se muito em breve pode tomar a decisão de o deixar a si mesmo, e então você jamais O encontrará.

A incredulidade muitas vezes disfarça-se com outras atitudes como as seguintes:

I. Alguns dizem: “Cremos na palavra pregada até ao ponto em que podemos. Obedecemos voluntariamente em muitas coisas e tratamos de não pecar. Que mais se requer de nós?” Pensando que cumpriram com o seu dever, perguntam igualmente como aqueles que perguntaram a Jesus em Jo 6:28: “O que faremos para que obremos as obras de Deus?” Simão, o mago, escutou a Palavra e creu tanto como pôde. Herodes escutava a pregação de João, o batista, mas nenhum dos dois foi um crente verdadeiro. Reações como estas podem ser imitadas por aqueles que de facto permanecem como incrédulos. Muitos hipócritas levam a cabo muitas atividades religiosas mas não possuem a fé verdadeira. A sua incredulidade é disfarçada por toda a sua “atividade”.

Há um acto especial de fé pelo qual alguém se rende completa e voluntariamente a Deus. Este ato especial é acompanhado por uma mudança que afeta a nossa completa natureza. “Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo.” (2Co 5:17) Sem este ato básico de fé, nenhum outro ato religioso é evidência de que uma pessoa é um crente verdadeiro.

II. Alguns dizem que tentaram ir a Cristo e a crer nEle, mas parece que não fazem nenhum progresso. No profundo do seu coração desesperam-se de não poder receber a Cristo como lhes é apresentado pelo evangelho. Eu pediria a estas pessoas que se recordassem dos discípulos que pescaram durante toda a noite sem pescar nada (veja-se Lc 5:3-6). Cristo aproximou-Se deles e lhes disse que lançassem novamente as redes. Pedro recordou ao Senhor de como tinha trabalhado em vão durante toda a noite e não obstante, perante a ordem de Cristo deitou novamente a rede, e esta se rompia por causa da grande quantidade de peixes. Acaso se cansou e desiludiu pelos seus intentos de ir a Cristo? Tente-o uma vez mais, e o Senhor lhe poderá conceder êxito.

Não são os seus fracassos, mas o dar-se por vencido o que poderia ser a sua ruína. Pense da mulher cananeia de Mateus 15:22-28. Ao princípio Cristo nem sequer lhe respondeu. Mais ainda, os discípulos pediram a Cristo que a despedisse. E se, por acaso, isto fosse pouco, Jesus disse-lhe que era enviado somente às ovelhas perdidas da casa de Israel. Mas ela não se deu por vencida, mas pelo contrário, adorou-O e disse-Lhe: “Senhor socorre-me!” Então Cristo respondeu-lhe: “Não está bem tomar o pão dos filhos, e deitá-lo aos cachorrinhos.” Se ela se houvesse dado por vencida então, ela nunca teria obtido misericórdia. Mas ela não tomou este “Não” como uma resposta, mas perseverou até que recebeu a sua petição. Poderá ser que você pense que tem orado muitas vezes sem êxito. Mas não se dê por vencido. “Bem-aventurado o homem que me dá ouvidos, velando às minhas portas cada dia, esperando às ombreiras da minha entrada. Porque o que me achar achará a vida e alcançará favor do SENHOR.” (Pv 8:34-35)

III. Alguns dizem que entendem que devem ir a Cristo e crêem nEle ou ficarão perdidos, mas agora estão muito ocupados, e consideram que no futuro terão tempo para pensar seriamente nisso. Poderá haver algo mais parvo do que pensar que as coisas corriqueiras do presente sejam mais importantes do que a miséria ou a felicidade de um estado eterno? Alguns assistem à pregação da Palavra, mas a linguagem do seu coração é: “Um pouco de sono, um pouco tosquenejando, um pouco encruzando as mãos, para estar deitado.” (Prov.6:10) Enganados desta maneira, milhares perecem cada dia. O maior êxito de Satanás é obter que as pessoas pensem que possuem muito tempo antes de morrer para considerarem o seu estado eterno. Recorde que a Escritura limita a sua oportunidade ao dia presente, e não lhe dá nenhuma certeza de que haverá outro dia para receber graça e misericórdia (veja-se 2Co 6:2 e Hb 3:7-13).

IV. Alguns encontram tanta satisfação em seus prazeres pecaminosos que não podem deixá-los. Se você for um deles, devo falar-lhe claramente a fim de que não tenha nenhuma dúvida de que você não pode ter esperança de misericórdia se o seu coração seguir obstinado a algum pecado. É obvio, que ao chegar a ser um crente verdadeiro, você não será livrado completamente da pecaminosidade da sua velha natureza. Mas você tem de amar a Deus ou ao mundo, a Cristo ou a Satanás, a santidade ou ao pecado. Não há nenhuma outra opção (veja 2Co 6:15-18). A respeito dos seus supostos prazeres, digo-lhe que a menos que você esteja em Cristo, ou você nunca teve realmente algum prazer. Uns quantos momentos para desfrutar dos gozos que se encontram nEle são melhores do que um largo período de tempo gasto nos prazeres deste mundo, sobre os quais está a maldição de Deus (veja-se Pv.3:13-18).

V. Há alguns que dizem que conhecem crentes que não são melhores do que eles, e portanto, eles deveriam considerar-se também como crentes. Eu lhes digo que há aqueles que se chamam crentes e que são falsos, fingindo ser o que não são. Mas eles terão de carregar o seu próprio julgamento. É também um facto triste que alguns crentes verdadeiros são descuidados na sua maneira de viver e deste modo desagradam a Deus e desonram a Cristo e ao evangelho. Mas estas não são as pessoas a quem você deve imitar.

O mundo não pode julgar os crentes com justiça. Somente uma pessoa espiritual pode discernir as coisas de Deus (veja 1Co 2:14). As debilidades e defeitos dos piedosos são vistos por todos, mas frequentemente as suas graças não se vêem. Quando você for capaz de julgar com justiça os crentes verdadeiros, então você estimará como a melhor coisa estar na companhia deles (Sl l6:3).

CAPÍTULO 16

Como podem os cristãos encontrar graça fresca para renovar suas vidas espirituais?

Os rios tornam-se mais largos e profundos quando se aproximam do mar; assim a graça deveria fluir mais plena e livremente nos crentes quando se acercam do céu. Enquanto se aproximam da eternidade, os crentes desejam que os seus decaimentos sejam sarados e as suas falhas perdoadas. Desejam uma atividade fresca da graça divina para os fazer mais frutíferos e santos, a qual resultará em louvor de Deus e no incremento da sua própria paz e gozo. Querem assegurar-se de que, se bem que “o nosso homem exterior se corrompa, o interior, contudo, se renova de dia em dia” (2Co 4:16). A glória dos reis está na riqueza e na paz dos seus súbditos, e assim também a glória de Cristo está na graça e na santidade dos Seus súbditos. No Salmo 92:12-15 o salmista diz: “O justo florescerá como a palmeira; crescerá como o cedro no Líbano. Os que estão plantados na Casa do SENHOR florescerão nos átrios do nosso Deus. Na velhice ainda darão frutos; serão viçosos e florescentes, para anunciarem que o SENHOR é reto; ele é a minha rocha, e nele não há injustiça.”



A palmeira é muito formosa e frutífera, e o cedro tem uma vida mais extensa do que qualquer árvore. Portanto, os justos são comparados a estas árvores mas devido ao seu descuido pecaminoso, muitos crentes são mais semelhantes às sarças no deserto. A menos que estejamos plantados na casa do Senhor, não podemos florescer. Não nos enganemos a nós mesmos. Podemos ser membros de uma Igreja, mas a menos que estejamos arraigados e sobre edificados em Cristo Jesus, não floresceremos em graça nem seremos frutíferos (Cl 2:7). Quando os crentes vivem em Cristo, recebem uma provisão contínuo e alimento espiritual que os mantêm sãos e fortes. Os frutos da obediência santa manifestam-se neles. Isto faz com que as suas vidas sejam atrativas aos demais.

Nota do tradutor: Este foi o último livro escrito por João Owen que faleceu em 1683. Este livro estava sendo impresso quando ele morreu. Os capítulos 15 e 16 não foram incluídos na primeira edição do livro. Estes dois capítulos foram descobertos depois da primeira impressão. Então, nesta passagem o autor refere-se à sua velhice devido a que já se estava aproximando da morte.

Bendito seja Deus pela boa palavra de Sua graça, a qual nos anima quando sentimos o esfriamento e as tentações da velhice. Agora, quero terminar com os seguintes quatro pontos:


1. A natureza da vida espiritual é que normalmente esteja crescendo e incrementando-se até ao fim. Há uma fé temporária a qual se seca e se desvanece. Esta fé foi descrita pelo Senhor Jesus Cristo quando disse: “o que foi semeado em pedregais é o que ouve a palavra e logo a recebe com alegria; mas não tem raiz em si mesmo; antes, é de pouca duração” (Mt 13:20-21). A verdadeira fé, contudo, é descrita em Provérbios 4:18: “Mas a vereda dos justos é como a luz da aurora, que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito.” A luz da manhã é muito parecida com a luz do entardecer. A diferença é que a luz da manhã prossegue crescendo até que chega ao clímax, enquanto que a luz do entardecer se obscurece paulatinamente até desaparecer. Então, há uma diferença entre o crente verdadeiro e aquele que não tem a vida espiritual nele. Onde existe a graça salvadora continuará crescendo até ao fim. Em algumas ocasiões, pode haver períodos quando a alma parece retroceder em lugar de ir para frente. Então, a graça de Deus não o deixará descansar, até que se recupere e volte a crescer outra vez. Aqueles que não são crentes verdadeiros enganam-se a si mesmos e não fazem nenhum esforço para recuperar-se da ruína eterna que lhe queda por diante. Às vezes, um crente verdadeiro encontra-se rodeado pela escuridão e em problemas devido às tentações de Satanás. Mas a graça de Deus que recebeu, como a luz da manhã, continua incrementando-se apesar das nuvens e das sombras.


A vida espiritual é também como água viva, um poço perpétuo de água que salta para a vida eterna (veja Jo 4:10-14). Um lago por grande que seja, pode ficar sem água em tempo de seca. Assim também a vida de muitos que se identificam como crentes, seca-se quando sobrevêm os problemas e as tentações. Mas a vida espiritual de um crente verdadeiro nunca pode falhar porque salta continuamente.

As promessas de Deus foram o meio pelo qual havemos crido no princípio. É também por estas promessas preciosas que a natureza divina se mantém viva em nós (veja 2Pe 1:4). Deitemos uma vista de olhos apenas a uma promessa: “Porque derramarei água sobre o sedento e rios, sobre a terra seca; derramarei o Meu Espírito sobre a tua posteridade e a Minha bênção, sobre os teus descendentes. E brotarão entre a erva, como salgueiros junto aos ribeiros das águas.” (Is 44:3-4). Isto não é só uma promessa para os judeus mas também para a Igreja de Cristo Jesus. Em nós mesmos somos uma terra árida e sedenta que não dá fruto. Mas então, Deus derrama a água de Seu Espírito e a bênção da Sua graça, e crescemos sob a influência das promessas como a árvore junto ao ribeiro das águas.

Na conversão, a graça que Deus dá ao Seu povo escolhido sob o Novo Pacto é absolutamente gratuita e incondicional. Mas há condições relacionadas com as promessas pelas quais os crentes crescem na graça. Exige-se de nós uma cuidadosa obediência ao Evangelho a fim de que sejamos espiritualmente frutíferos (veja 2 Pe 1:4-10). A diferença principal entre a glória e a beleza da Igreja manifestada nas promessas do evangelho e a vida da Igreja manifestada nos crentes professantes é que eles não cumprem estas condições. Deus tem provido alimento para a nossa vida espiritual a fim de que cresçamos e sejamos fortes. Este alimento é a Palavra de Deus (veja 1Pe 2:2-3). Se não tomamos o nosso alimento diariamente, tornamo-nos débeis e inúteis. Então, devemos valorizar e alimentar-nos da boa Palavra da graça divina, a qual nos pode manter sãos e crescendo espiritualmente ainda na velhice.

2. Os crentes estão sujeitos à tentação de cansar-se na sua vida espiritual. Mas um crente verdadeiro sempre saberá quando está sofrendo de alguma enfermidade espiritual e anelará recuperar-se o mais rapidamente possível. É a triste experiência de todos os crentes de todas as Igrejas do mundo que uma debilitação da vida espiritual ocasiona a perda do seu primeiro amor, da primeira fé e das primeiras obras. Esta foi a verdade em relação às Igrejas da Ásia Menor a quem Cristo escreveu as cartas de Apocalipse 2 e 3.

Há também tentações repentinas as quais trazem grandes angústias espirituais. David refere-se a uma ocasião semelhante no Salmo 38. Ele sentiu que se tinha apartado de Deus e tinha continuado nesciamente nesse estado pecaminoso em lugar de procurar a misericórdia. Tinha uma consciência contínua da desaprovação divina e desejava ser livrado dessa miserável condição. Poderá ser que nós não caíamos tão baixo como David, mas conforme ao grau do nosso pecado, o nosso coração conhecerá a sua própria amargura (veja Pv. l4:10). Muitas coisas podem ocasionar a perda paulatina do poder e da vida espiritual. Podemos acostumar-nos tanto à rotina da adoração pública e às nossas devoções privadas que elas comecem a perder o seu significado para nós. Também podemos chegar a estar tão ocupados com os assuntos e os prazeres desta vida, que não mortifiquemos os pecados que nos são naturalmente atrativos.

3. Muitos que se identificam como cristãos já não desfrutam da vida e das bênçãos que resultam de acreditarem nas promessas de Deus. Eles precisam ser despertados para que sejam conscientes da sua enfermidade e busquem ser curados. Muitos crentes cederam ante a preguiça, a negligência ou alguma outra tentação. David experimentou isto e expressou o seu gozo de ser restaurado no Salmo 103:1-5.

Deus nos deu grandes advertências do perigo de nos tornarmos descuidados e negligentes espiritualmente e nos tem feito grandes promessas para que busquemos ser restaurados. Se você não soube nada acerca destas experiências, talvez a que a sua alma nunca tenha estado numa condição sã e forte. Alguém que esteve débil e doente durante toda a sua vida não sabe o que é ser forte e saudável. Há alguns que vivem em toda a classe de pecados. Se você lhes fala a respeito da sua conduta pecaminosa e da sua necessidade de serem restaurados, tratá-lo-ão como os genros de Lot lhe fizeram “Foi tido, porém, por zombador aos olhos de seus genros.” (Gn 19:14). Tais pessoas deveriam perguntar-se a si mesmos se realmente conheceram algo da graça de Deus. Ou poderá ser que você esteja dormido com um sentido falso acerca da sua própria segurança. Então você é como a Igreja da Laodicea a qual disse que não necessitava nada e não sabia que era “um desgraçado, e miserável, e pobre, e cego, e nu” (Ap 3:17). Como Efraim, você já tem cãs e está numa condição mortal, mas você “não se volta para Deus, nem o busca com tudo isto” (Os 7:9-10). Você é como aqueles pessoas que Cristo chamou “os sãos” os quais supostamente “não têm necessidade de médico”. Mas Cristo “não veio chamar os justos, mas os pecadores ao arrependimento” (Mc 2:17).

Poder-se-ia dizer de nós que nos temos cansado de Deus como ocorreu com muitos do Seu antigo povo? “ Contudo, tu não me invocaste a Mim, ó Jacob, mas te cansaste de Mim, ó Israel.” (Is 43:22) Frecuentemente há falhas em manter regularmente a oração familiar e muito pouco desejo de assistir à adoração divina. Mas ainda quando tais deveres se levem a cabo fielmente, existe um cansaço mediante o qual nos aproximamos de Deus só de lábios, mas os nossos corações permanecem longe dEle (Mt 15:8). Temos uma grande necessidade de vigiar e orar. Milhares de coisas nos quefazeres ordinários da vida resultam em um cansaço natural que nos impede de avivar a graça que Deus nos deu. E qualquer pecado do qual não nos arrependemos terá um efeito especial para converter a adoração numa pesada carga.

As coisas que trazem mais gloria a Deus são a humildade, uma tristeza real pelo pecado, uma vontade disposta e um deleite nos caminhos de Deus, o amor e a auto negação. Estamos sendo frutíferos nestas coisas? (Veja 2 Pe 1:8). Podemos nos examinar a nós mesmos na seguinte maneira:

I. Temos um bom apetite espiritual para com a Palavra de Deus e uma experiência contínua da sua graça? Algumas pessoas escutam a pregação simplesmente para confirmar as suas próprias ideias, outros vão para julgar o pregador. Só uns quantos se preparam a si mesmos para receber em seus corações a Palavra de Deus. Enquanto envelhecemos, vamos perdendo pouco a pouco o nosso gosto natural pela comida. Parece-nos que já não tem o mesmo sabor que tinha quando fomos mais jovens. Mas a mudança não está na comida mas em nós. Assim é com a Palavra de Deus a qual o salmista diz que é mais doce que o mel que destila do favo (Sl 19:10). Se tivéssemos fome, encontraríamos doçura na Palavra de Deus ainda quando ela nos repreende fortemente.



II. Fazemos com que a religião (a nossa relação com Cristo) seja o assunto principal das nossas vidas? Com muitos de nós, todas as demais coisas estão colocadas acima da única coisa necessária, quer dizer, o nosso bem-estar espiritual. Se estamos continuamente ocupados com os assuntos do mundo e se apenas nos apartarmos um pouco de tempo de vez em quando para considerar as realidades espirituais, então é uma forte evidência de que a nossa vida espiritual se está debilitando. Quando isto acontece, não amamos os outros crentes como deveríamos e não estamos dispostos a responder aos chamamentos de Deus para nos arrependemos e para endireitarmos os nossos caminhos.

4. Há um caminho para voltar a ser fortes e frutíferos espiritualmente.

I. Ninguém está sem esperança mesmo ainda que tenha caído muito baixo, mas devemos usar os meios corretos para nos recuperarmos. As árvores que se tornam velhas ou infrutíferas recebem nova vida por meio de se cavar ao redor delas e de estercá-las; não são tirados e plantados noutra parte. Alguns professantes voltam-se para as religiões falsas em busca de ajuda, mas terminam secando-se e morrendo como apóstatas. Se tivessem procurado os meios corretos para a sua cura, possivelmente teriam vivido.

II. Os atos pecaminosos têm de ser mortificados e os ensinos de Cristo obedecidas cuidadosamente. É obvio, não devemos cair no erro dos fariseus. Não devemos pensar que por meio de jejuns e vãs repetições de orações seremos aceitáveis a Deus. Devemos redobrar os nossos esforços para matar o pecado. Também é absolutamente necessário ler as Escrituras regularmente, escutar a Palavra pregada, assim como vigiar e orar contra a tentação. Desta maneira a nossa mente e os nossos afetos serão ocupados com pensamentos espirituais e celestiais. Contudo, todas estas coisas não podem ser feitas com as nossas próprias forças. Não somos “capazes, por nós, de pensar alguma coisa, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus” (2Co 3:5). Por meio da fé, devemos obter a ajuda de Cristo em qualquer esforço que procuremos fazer. Sem fé nossos esforços serão inúteis e rejeitados por Deus.



III. A restauração dos crentes que perderam a sua força e a sua saúde espiritual é um ato da graça soberana, uma obra do Deus omnipotente, a Cuja graça e amor ninguém pode resistir. Deus deu grandes e preciosas promessas as quais devemos usar para ser restaurados. Vejamos algumas dessas promessas em Oseas, capítulo 14:

Versículo 1: “Converte-te, ó Israel, ao SENHOR teu Deus; porque pelos teus pecados tens caído.” O verdadeiro o Israel de Deus, o Seu povo escolhido foi afetado pelos pecados de toda a nação. Anteriormente, Oseas tinha pronunciado temíveis juízes contra a nação pela sua grande iniquidade. Porém nada pode impedir que o poder omnipotente de Deus faça pela Sua graça o que Ele quer fazer com o Seu povo. Deus era ainda o Deus deles; se bem que tinham caído, foram convidados meigamente a voltar-se para Ele.

Versículo 2: “Tomai convosco palavras, e convertei-vos ao SENHOR; dizei-Lhe: Tira toda a iniquidade, e aceita o que é bom; e ofereceremos como novilhos os sacrifícios dos nossos lábios.” Deus por boca do Seu profeta, ensina o Seu povo como deveriam orar, “tira toda iniquidade”. Nenhum pecado devia ser omitido. Quando o perdão de todo o pecado tiver sido obtido, o povo começará novamente a sentir o amor de Deus. Haverá um anelo para conhecer que Deus os tem aceite livremente e que já não estão sob o Seu desagrado.

Versículo 3: “Não nos salvará a Assíria, não iremos montados em cavalos, e à obra das nossas mãos já não diremos mais: tu és o nosso deus; porque por Ti o órfão alcança misericórdia.” Deus espera uma confissão completa e voluntária dos dois grandes pecados que arruinaram o Seu povo: a confiança no homem e a adoração falsa ou idolatria. “Não nos salvará a Assíria... E à obra das nossas mãos já não diremos mais: tu és o nosso deus.”

Versículo 4: “Eu sararei a sua infidelidade, Eu voluntariamente os amarei; porque a Minha ira Se apartou deles.” Ainda que Deus sarará as nossas rebeliões e nos amará de pura graça, não obstante requer-se de nós que nos arrependamos, e Deus nos dá a capacidade para fazê-lo. Deus dá a Si mesmo o título: “Eu sou o SENHOR que te sara” (Ex 15:26). A única razão para nos sarar é o Seu amor livre e soberano (o qual não merecemos). Esta cura inclui o perdão dos nossos pecados passados e um fornecimento de graça para nos fazer frutíferos em obediência. “Eu serei para Israel como o orvalho. Ele florescerá como o lírio e lançará as suas raízes como o Líbano.” É algo grande verdadeiramente, o termos as nossas rebeliões saradas e termos uma consciência da beleza e da glória do amor divino, e termos a misericórdia e a graça atuando novamente nas nossas vidas. Não se desespere para receber tais manifestações frescas da graça divina. Obtenha-as por meio da fé nas promessas de Deus tal como são oferecidas mediante Cristo Jesus, o glorioso mediador.

Todas aas nossas provisões da graça vêm de Cristo e só dEle. “Sem Mim, nada podeis fazer.” (Jo 15:5). “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, O qual me amou, e Se entregou a Si mesmo por mim.” (Gl 2:20). A única maneira para receber novas provisões de força espiritual e graça é por meio da fé. Ele vive em nossos corações pela fé, atua em nós pela fé e nós vivemos pela fé no Filho de Deus. Há só um caminho para sermos avivados e sarados das nossas rebeliões a fim de que sejamos frutíferos. Devemos fixar o nosso olhar na glória de Cristo, no Seu caráter especial, na Sua graça e obra tal como nos é ensinado na Escritura. No Salmo 34:5 David diz: “Olharam para ele, e foram iluminados; e os seus rostos não ficaram confundidos.” A Sua fé foi manifesta ao olharem para Ele, quer dizer a Cristo, ou a glória de Deus nEle. O seu ato de confiança surgiu de uma consideração do que Ele é. Eles foram refrescados pela luz espiritual e salvadora que receberam dEle. Nós também podemos ser refrescados como eles enquanto olhemos com a mesma fé para Cristo. “Olhai para Mim, e sereis salvos, vós, todos os termos da terra; porque Eu sou Deus, e não há outro.” (Is 45:22) A nossa completa salvação, até ainda cada aspecto da nossa vida espiritual depende deste olhar. Esta é a maneira para receber graça e glória. “Eu, porém, olharei para o SENHOR; esperarei no Deus da minha salvação; o meu Deus me ouvirá.” (Mq 7:7)

Uma contínua visão da glória de Cristo terá o efeito bendito de nos transformar cada vez mais na semelhança de Cristo. Talvez outros caminhos e médios têm falhado em nos fazer semelhantes a Cristo, façamos a prova com este meio.

A maioria da nossa debilidade espiritual e falta de fruto é devido a que permitimos que facilmente outras coisas ocupem as nossas mentes. Quando tivermos as nossas mentes cheias de Cristo e da Sua glória, então nossos corações arderão com grande amor por Ele e já não terão lugar para outras coisas (veja Cl 3:1-5). É somente uma visão contínua de Cristo e a Sua glória o que nos avivará e nos animará a vigiar e pelejar continuamente contra as obras enganosas do pecado. A experiência de contemplar a glória de Cristo tem poder para nos fazer obedecer e desejar todas as coisas que agradam a Cristo.

Este livro foi traduzido de uma versão abreviada em inglês intitulada: “The Glory of Christ” publicado por Grace Publications Trust e na sua versão original en inglés por Banner of Truth Trust. O título da versão original en inglês é: “Meditations on the Glory of Christ” de John Owen.

Tradução de Carlos António da Rocha (15/III/12)


[1] Nota do tradutor: Uma análise de Filipenses 2:6-7 ajudar-nos-á na compreensão deste ponto:
1. “Sendo” - Esta palavra tem os seguintes significados: “Já existindo continuamente”, “sendo originalmente”, “da eternidade”, “existindo desde sempre”. O particípio presente indica-nos um estado permanente. Esta expressão é quase igual àquela que diz o apóstolo João: “No princípio era o Verbo... e o Verbo era Deus”. A palavra “era” é idêntica em seu significado à palavra “sendo” porque ambas indicam uma existência perpétua. Também a palavra “sendo” denota “pertença”: “Sendo na forma de Deus” indica que possuía a “forma de Deus” como Sua, a forma de Deus pertencia-Lhe como sua própria possessão.
2. “Forma de Deus” = A palavra “forma” significa a essência de uma coisa ou pessoa; a soma ou totalidade das características e qualidades que fazem com que uma coisa seja a coisa precisa que é; o que é essencial e permanente na natureza de uma coisa ou pessoa. Então, “sendo na forma de Deus” quer dizer que Cristo é Deus, já que tudo o que faz que Deus seja Deus lhe pertence como Seu. Todas as características e qualidades de Deus Lhe pertencem, o que é essencial e permanente na natureza divina, existe e sempre existiu em Cristo, a Segunda Pessoa da Trindade. Isto significa que Cristo possui e sempre tem possuído todos os atributos de Deus (Omnipotência, Omnipresença, Omnisciência, Imutabilidade, Eternidade, Soberania, etc.) inclusive a majestade e a glória divinas; ou seja, que Cristo possui “toda a plenitude de Deus”. (Veja-se Cl.2:9).
3. “Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus. Mas aniquilou-Se a Si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-Se semelhante aos homens” Isto significa que na Sua encarnação Cristo deixou voluntariamente a Sua própria glória e a Sua própria majestade “visíveis”. Quer dizer, deixou a manifestação aberta da Sua glória e majestade divinas. Ao vir para este mundo e tomar sobre Si a natureza humana, Cristo despojou-Se não da Sua divindade, mas, sim, do exercício manifesto dos Seus direitos e prerrogativas como Deus e como Alguém igual com o Pai. A igualdade à qual não Se aferrou; foi a igualdade “de trato” e de dignidade “manifesta e reconhecida”. Cristo aceitou voluntariamente deixar a Sua glória celestial e o exercício pleno de Seu Senhorio e da Sua Soberania.
4. “Aniquilou-se a si mesmo “. Não Se despojou da Sua divindade, mas, sim, despojou-Se da Sua glória visível; ocultou-a atrás do véu da Sua humanidade. (Jo 17:5 e Mt 17:2) Despojou-Se temporalmente das Suas riquezas (2Co 8:9), do exercício da Sua autoridade independente (Jo 6:38); despojou-Se dos Seus direitos como o Autor da Lei, submetendo-Se a ela para lhe obedecer em lugar dos crentes (Gl 4:4-5).
5. “Tomando a forma de servo”. Aqui encontramos o pleno significado de como foi que Cristo Se despojou; Cristo veio a este mundo como o servo do Pai a fim de cumprir o plano eterno da redenção. (Mc 10:45). Podemos dizer que na Sua natureza divina, como igual ao Pai, Cristo não estava subordinado ao Pai, mas na Sua natureza humana tomou a forma de um servo.
6. “Fazendo-Se semelhante aos homens.” Diz “semelhante” de cada vez que Ele não tomou a natureza humana pecaminosa, mas, sim, a natureza humana mas sem pecado. (Veja-se Ro 8:3 e Hb 4:15). Cristo chegou a ser verdadeiramente homem, com exceção do pecado. “ E o Verbo se fez carne” (Jo 1:14). Ele foi realmente homem, não simplesmente na aparência, mas, também, de facto. Esteve nove meses no ventre materno; nasceu numa manjedoura; conheceu a fome, a sede, o cansaço, a angústia, a dor e a morte. Este é o mistério da encarnação; a união da natureza divina e da natureza humana numa só pessoa, perfeitamente Deus e perfeitamente homem. Isto é o que dá valor infinito ao Seu sacrifício e à Sua justiça, e isto é o que O constitui como o único mediador entre Deus e os homens.
Esta é então a glória de Cristo: a Sua vontade disposta a humilhar-se a Si mesmo na Sua encarnação. “E, achado na forma de homem, humilhou-Se a Si mesmo, sendo obediente até à morte e morte de cruz” (Fil.2:8). Entretanto, ao chegar a ser Filho do homem, não deixou de ser o que era, o eterno Filho de Deus.

Sem comentários: