… Mas o melhor de tudo é crer em Cristo! Luís Vaz de Camões (c. 1524 — 1580)

domingo, 23 de outubro de 2016

05 - Julgar-se a si mesmo

C. H. Mackintosh

Breves Meditações
05 - Julgar-se a si mesmo
Existem poucos exercícios mais valiosos e saudáveis para o cristão do que o de julgar-se a si mesmo. Com isto, não me refiro à desgraçada prática de buscar em si mesmo provas de vida e de segurança em Cristo, pois seria terrível o estar-se ocupados com isto. Eu não poderia conceber qualquer outra ocupação mais deplorável do que a de estar olhando para o vil “eu”, em vez de contemplar a Cristo ressuscitado. A ideia que muitos cristãos parecem abraçar com respeito ao que se conhece como «autocrítica» —isto é, um exame de si mesmos— é por certo deprimente. Eles consideram-no como uma actividade que pode terminar por fazê-los descobrir que não são cristãos verdadeiros. Isto, repetimo-lo, é uma ocupação terrível.

Sem dúvida, é bom que aqueles que têm estado edificando sobre um fundamento arenoso abram os seus olhos para ver o grave erro que isso configura. É bom que aqueles, que com satisfação têm estado envoltos em roupagens farisaicas, se despojem de si mesmos. É bom que aqueles, que têm estado dormindo numa casa em chamas despertem dos seus sonhos. É bom que aqueles, que têm estado caminhando com os olhos vendados à beira de um terrível precipício retirem a venda dos seus olhos para que vejam o perigo e retrocedam. Nenhuma mente inteligente e ordenada pensaria em pôr em dúvida a propriedade de tudo isto. Mas, então, admitindo plenamente o que anteriormente foi dito, a questão do verdadeiro “juízo próprio” permanece completamente intacta. Na Palavra de Deus não se ensina nem uma vez ao cristão o examinar-se a si mesmo, com a ideia de que descubra se ele é ou não é cristão, mas, sim —e trataremos de demonstrá-lo— é precisamente o contrário.

Há duas passagens no Novo Testamento que são, lamentavelmente, mal interpretados. A primeira tem a ver com a celebração da Ceia do Senhor: “Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão e beba deste cálice. Porque o que come e bebe indignamente, come e bebe para sua própria condenação, não discernindo o corpo do Senhor. ” Pois bem; é comum, nesta passagem, que o vocábulo “indignadamente” se aplique às pessoas que participam, quando, na realidade, se refere à maneira de participar. O Apóstolo nunca pensou em questionar o cristianismo dos Coríntios; na verdade, nas palavras de abertura da sua Epístola, ele dirige-se a eles nestes termos: “À igreja de Deus que está em Corinto, aos santificados em Cristo Jesus, chamados santos. ” Como podia ele empregar esta linguagem no capítulo I e pôr em dúvida no capítulo XI, a dignidade desses santos para participar na Ceia do Senhor? Impossível! Ele considerava-os santos e, como tais, os exortou a celebrar a Ceia do Senhor de uma maneira digna. Jamais se colocou a questão de que aí estivesse presente alguém que não fosse um verdadeiro cristão; de modo que era absolutamente impossível que a palavra “indignadamente” se pudesse aplicar a pessoas. A sua aplicação correspondia unicamente à maneira. As pessoas eram dignas, mas a sua maneira não; e, então foram exortadas, como santas, a julgar-se a si mesmas no que respeita ao seu proceder, pois, se não o fizessem, o Senhor haveria de julgá-las nas suas pessoas, como já havia sido feito. (1Co 11:30 ). Numa palavra, haviam sido exortados a julgar-se a si mesmos na sua qualidade de cristãos. Se eles tivessem tido dúvidas dessa condição, não haveriam sido capazes de julgar absolutamente nada. Eu nunca pensaria em fazer com que o meu filho se julgasse se era meu filho ou não, mas sim esperaria que ele se julgasse a si mesmo, em relação aos seus hábitos, senão, pelo contrário, eu teria de fazê-lo, mediante a disciplina, o que ele deveria ter feito mediante o “juízo próprio”. Precisamente, porque o considero meu filho não o deixaria sentar-se à minha mesa com roupas sujas e também com maus modos.

A segunda passagem encontra-se em 2Co 13:3-5 “Visto que buscais uma prova de Cristo que fala em mim.... provai-vos  a vós mesmos.” O resto da passagem é um parêntesis. O ponto essencial é este: o Apóstolo apela aos mesmos Coríntios como a clara prova de que o seu apostolado era divino, de que Cristo falava nele, de que a sua comissão provinha do Céu. Ele considerava-os como verdadeiros cristãos, apesar de toda a confusão que reinava na Assembleia; mas, posto que eles constituíam o selo do seu ministério, esse ministério devia ser divino, e, portanto, eles não deveriam ouvir os falsos apóstolos que falavam contra ele. O cristianismo dos Coríntios e o apostolado de Paulo estavam tão intimamente relacionados, que pôr em dúvida um, implicava pôr em dúvida o outro. Conclui-se claramente, pois, que o Apóstolo não exortava os Coríntios a examinarem-se a si mesmos com a ideia de que o dito exame pudesse resultar no triste descobrimento de que não eram verdadeiros cristãos. Pelo contrário! Na realidade, era como se eu fosse ter com uma pessoa e lhe mostrasse um relógio autêntico e lhe dissesse: «Já que você procura provas de que o homem que fabricou este relógio é um verdadeiro relojoeiro, examine este exemplar».

Resulta claro, pois, que nenhuma das duas passagens citadas anteriormente dá qualquer garantia de que apoie a ideia desse tipo de «exame de consciência» ou de «autocrítica» que alguns sustentam, o qual se baseia num sistema de dúvidas e temores e carece de todo o apoio da Palavra de Deus. O “juízo próprio”, sobre o qual desejo chamar a atenção do leitor, é algo totalmente diferente. É um sagrado exercício cristão da mais saudável natureza. Tem por base a mais inquebrantável confiança a respeito da nossa salvação e aceitação em Cristo. O cristão é exortado a julgar-se a si mesmo por quanto é cristão, não para ver se o é. Isto faz toda a diferença. Se ele estivesse mil anos fazendo um exame de consciência, uma autocrítica, e escarafunchasse no “eu”, não acharia outra coisa que miséria, ruínas e iniquidade, coisas estas que Deus pôs de lado e as quais eu tenho a responsabilidade de considerá-las “mortas”. Como poderia esperar obter provas consoladoras mediante tal exame? Impossível! As provas do cristão não hão de achar-se no seu corrompido “eu”, mas no ressuscitado Cristo de Deus; e quanto mais consiga olvidar-se do primeiro e ocupar-se no segundo, tanto mais feliz e santo será. O cristão julga-se a si mesmo, julga os seus hábitos, os seus pensamentos, as suas palavras e os seus actos porque crê que é cristão, e não porque duvide de que o seja. Se ele duvida que é cristão, não é apto para julgar nada. O verdadeiro crente julga-se a si mesmo, estando plenamente consciente e gozoso da eterna segurança da graça de Deus, da divina eficácia do sangue de Jesus, do poder da Sua intercessão que prevalece sobre tudo, da inquebrantável autoridade da Palavra, da divina segurança da mais débil ovelha de Cristo; sim, entrando nestas realidades inapreciáveis pelo ensino de Deus, o Espírito Santo, o crente verdadeiro julgar-se-á a si mesmo. A ideia humana da «autocrítica» baseia-se na incredulidade. A ideia divina do “juízo próprio”, pelo contrário, baseia-se na confiança.

Mas, nunca nos esqueçamos de que somos exortados a julgarmo-nos a nós mesmos. Se perdemos isto de vista, a velha natureza não tardará em aflorar em nós e ganhará a dianteira; então, teremos de nos ocuparmo-nos tristemente com ela. Os cristãos mais devotos têm um sem número de coisas que necessitam de ser julgadas, e, se não se julgam, mesmo habitualmente, seguramente que acumularão abundante e amargo trabalho para si mesmos. Se houver irritação ou ligeireza, orgulho ou vaidade, desídia  natural ou impetuosidade natural, qualquer coisa que pertença à natureza caída, o nosso dever como cristãos é julgar e avassalar todas estas coisas. Tudo o que seja julgado de forma permanente nunca se achará na consciência. O “juízo próprio” manterá todos os nossos assuntos de forma correcta e em ordem; mas, se a velha natureza não é julgada, não sabemos como, nem quando ou onde ela brotará, provocando uma aguda dor na alma e trazendo desonra ao nome do Senhor. Os casos mais graves de fracasso e de decadência geralmente devem-se ao descuido no juízo de nós mesmos, a respeito de coisas pequenas. Há três níveis diferentes de juízo: o “juízo próprio”, o “juízo da igreja” e o “juízo divino”. Se um homem se julga a si mesmo, a Assembleia conserva-se pura. Mas se ele não o faz, o mal brotará de alguma forma, e então a Assembleia ver-se-á comprometida. E se a Assembleia deixa de julgar o mal, então Deus terá de tratar com a Assembleia. Se Acan se tivesse julgado os seus pensamentos ambiciosos, a congregação nunca se teria visto implicada (Josué 7). Se os Coríntios se tivessem julgado em privado, o Senhor nunca teria tido de julgar a Assembleia em público (1Co 1).

Tudo isto é sumamente prático e humilhante para a alma. Oxalá que todo o povo do Senhor aprenda a andar desperto no dia do Seu favor, no santo gozo das Suas mútuas relações e no habitual exercício de um espírito de “juízo próprio”!

http://www.verdadespreciosas.com.ar/index.html

Tradução de Carlos António da Rocha

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Esta tradução é de livre utilização, desde que a sua ortografia seja respeitada na íntegra porque já está traduzida no Português do Novo Acordo Ortográfico e que não seja nunca publicada nem utilizada para fins comerciais; seja utilizada exclusivamente para uso e desfruto pessoal.

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