O Filho Pródigo
(Lc 15:11-32)
Sermão de Agostinho
O
património que o filho recebeu do Pai é a inteligência, a mente, a memória, o
engenho e tudo o que Deus nos deu para que O conhecessem e Lhe déssemos culto.
Tendo recebido este património, o filho menor "partiu para um país
muito distante". Distância significa: o esquecimento de seu Criador.
"Dissipou a sua herança vivendo dissolutamente": gastando e
não ajuntando; malbaratando tudo o que tinha e não adquirindo o que não tinha,
isto é, consumindo toda sua capacidade em luxúria, em ídolos, em todo tipo de
desejos perversos, aos que a Verdade denominou meretrizes.
Não
é de admirar que essa orgia acabasse em fome. "Sobreveio àquela região
uma grande fome"; fome não de pão visível mas da verdade invisível.
E, por causa da fome, "foi pôr-se ao serviço de um dos senhores
daquela região": entenda-se o diabo, o senhor dos demónios.
Alimentava-se então das vagens dos porcos sem poder saciar-se. Vagens são as
vistosas doutrinas do mundo: servem para ostentar mas não para sustentar;
alimento digno para porcos, mas não para homens: próprias para dar aos demónios
deleitação, mas não dar aos fiéis a justificação.
Até
que, por fim, tomou consciência do lugar em que tinha caído; do quanto tinha
perdido; Quem tinha ofendido e a quem se tinha submetido. Reparai no que diz o
Evangelho: "Entrando em si..."; primeiramente, voltou-se
para si e só assim pôde voltar para o pai. Dizia talvez: "O meu
coração me abandonou (isto é: saí de mim mesmo)" (Sl 40,13); daí que
fosse necessário, antes, voltar para si mesmo e assim perceber que se
encontrava longe do pai. É o que diz a Escritura quando increpa a alguns,
dizendo: "Voltai, pecadores, ao coração! (isto é: voltai,
pecadores, a vós mesmos!)" (Is 46,8). Voltando para si mesmo, encontrou-se
miserável: "Encontrei, diz ele, a tribulação e a dor e invoquei o nome
do Senhor" (Sl 116,3-4). "Quantos empregados, diz ele, há na
casa de meu pai, que têm pão em abundância, e eu, aqui, a morrer de fome!"
Levantou-se
e voltou. Ele, caído por terra depois de contínuos tropeços. O pai vê-o ao
longe e sai-lhe ao encontro. É dele que fala o Salmo: "Entendeste os
meus pensamentos de longe" (Sl 139,2). Que pensamentos? Aqueles que o
filho tinha no seu interior: "Levantar-me-ei e irei a meu pai, e
dir-lhe-ei: Meu pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser
chamado teu filho; trata-me como a um dos teus empregados". Ele ainda
nada tinha dito, só pensava em dizer. O pai, porém, ouvia como se o filho já o
estivesse dizendo.
E
assim se diz noutro Salmo: "Eu disse: confessarei a minha iniquidade
ao Senhor" (Sl 32,5). Vede como se trata ainda de algo interior a
ele, de um mero projecto e, contudo, acrescenta imediatamente: "E tu
já perdoaste a impiedade de meu coração" (Sl 32,5). Quão próxima está
a misericórdia de Deus daquele que a Ele se confessa!
E
o pai ordena que o vistam com a primeira veste, aquela que Adão perdera ao
pecar. Tendo recebido o filho em paz, tendo-o beijado, ordena que lhe dêem uma
veste: a esperança de imortalidade, conferida no acto de crer. Ordena que lhe
dêem um anel, penhor do Espírito Santo; calçado para os pés, como preparação
para o anúncio do Evangelho da paz, para que sejam formosos os pés dos que
anunciam a boa nova.
Estas
coisas Deus faz através dos Seus servos, isto é, os crentes. Acaso eles podem,
por si próprios, dar veste, anel e calçados? Não, apenas cumprem o seu
ministério, desempenham o seu ofício; quem dá é Aquele de cujo depósito e de
cujo tesouro são extraídos estes dons.
Agostinho de Hipona
(Tagaste,
13 de novembro de 354 — Hipona, 28 de agosto de 430)
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