… Mas o melhor de tudo é crer em Cristo! Luís Vaz de Camões (c. 1524 — 1580)

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Carta de John Nelson Darby ao editor de um dos seus livros



J. N. Darby

Carta de John Nelson Darby ao editor de um dos seus livros


Meu caro amigo e irmão em Jesus Cristo,

Deu-me muita satisfação ver a sua tradução do meu livro. Tive o grato prazer de lê-la, ou melhor dizendo, de ter alguém que ma lesse, naqueles momentos dos quais o Senhor nos diz, como disse aos apóstolos: “Vinde vós, aqui à parte, a um lugar deserto, e repousai um pouco” (Mc. 6:31). Mas não posso deixar de dizer-lhe, meu caro amigo, que o prazer que a aparência do seu trabalho me trouxe foi, em certa medida, abatido pela opinião demasiado favorável que expressou a meu respeito no prefácio. Antes que tivesse lido uma palavra sequer da sua tradução, presenteei um mui querido e sincero amigo com um exemplar, e ele mencionou o que escreveu em seu prefácio louvando a minha piedade. O texto produziu no meu amigo o mesmo efeito que viria a produzir em mim, mais tarde, quando o pude ler. Espero, entretanto, que não leve a mal o que vou dizer a respeito do assunto, pois é fruto de uma experiência razoavelmente longa.

O orgulho é o maior de todos os males que nos afligem, e de todos os nossos inimigos, não apenas é o mais difícil de morrer, como também o que tem a morte mais lenta; mesmo os filhos deste mundo são capazes de discernir isto. Madame De Stael disse, no seu leito de morte: “Sabe qual é a última coisa que morre numa pessoa? É o amor-próprio”. Deus abomina o orgulho mais do que qualquer coisa, pois o orgulho dá ao homem o lugar que pertence a Deus que está acima de tudo. O orgulho interrompe a comunhão com Deus e atrai Sua repreensão, pois “Deus resiste aos soberbos” (1Pe 5:5). Ele irá destruir o nome do soberbo, pois é-nos dito que “a altivez do homem será humilhada, e a altivez dos varões se abaterá, e só o Senhor será exaltado naquele dia” (Is 2:17). Como irá sentir, meu caro amigo, estou certo de que não há maior mal que uma pessoa possa fazer a outra do que louvá-la e alimentar o seu orgulho. “O homem que lisonjeia a seu próximo, arma uma rede aos seus passos” (Pv 29:5) e “a boca lisonjeira obra a ruína” (Pv. 26:28). Pode estar certo, além do mais, que a nossa vista é muito curta para sermos capazes de julgar o grau de piedade do nosso irmão; não somos capazes de julgar corretamente sem a balança do santuário, e ela está nas mãos dAquele que sonda o coração. Nada julgue antes do tempo, até que o Senhor venha e torne manifesto os conselhos do coração, e renda a cada um o devido louvor. Até então, não julguemos os nossos irmãos, seja para bem seja para mal, senão com a moderação que convém, e lembremo-nos de que o melhor e mais certo juízo é aquele que temos de nós mesmos quando consideramos os outros melhores do que nós.

Se eu lhe fosse perguntar como sabe que eu sou “um dos mais avançados na carreira cristã, e um eminente servo de Deus”, sem dúvida iria ficar sem saber o que responder. Talvez viesse a mencionar as minhas obras publicadas; mas será que não sabe, querido amigo — que o irmão pode pregar um sermão edificante tanto quanto eu — que os olhos vêem mais do que os pés alcançam? E que, infelizmente, nem sempre somos o que são os nossos sermões? “Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus, e não de nós” (2Co 4:7). Não lhe direi a opinião que tenho de mim mesmo, pois se o fizer, é provável que enquanto o faça procure a minha própria glória, e, enquanto estiver buscando a minha própria glória, possa parecer humilde, o que não sou. Prefiro dizer-lhe o que o nosso Mestre pensa de mim — Ele que sonda o coração e fala a verdade, que é “o Amém e a fiel Testemunha”, e que tem falado frequentemente no mais íntimo do meu ser, pelo que Lhe agradeço; creia-me, Ele nunca me disse que sou um “eminente Cristão e avançado nos caminhos da piedade”. Pelo contrário, Ele diz-me bem claramente que se eu procurasse o meu próprio lugar, iria encontrá-lo como sendo o do maior dos pecadores, pelo menos dentre os que são santificados. E devo dar mais crédito ao julgamento que Ele faz de mim, meu caro amigo, do que aquilo que pensa a meu respeito.

O mais eminente Cristão é um daqueles de quem nunca se ouviu falar, algum pobre trabalhador ou servo, para quem Cristo é tudo, e que faz tudo para ser visto por Ele, e somente por Ele. O primeiro deve ser o último. Fiquemos convencidos, meu caro amigo, de louvar somente o Senhor. Só Ele é digno de ser louvado, reverenciado e adorado. A Sua bondade nunca é demasiadamente celebrada. O cântico dos abençoados (Apocalipse 5) não louva a ninguém senão Aquele que os redimiu com o Seu sangue. Não há no cântico uma única palavra de louvor a qualquer dos remidos - nenhuma palavra que diga que são eminentes, ou que não são eminentes - todas as distinções estão perdidas no título comum, “os redimidos”, que expressa a alegria e glória de todo o Corpo. Empenhemo-nos em trazer os nossos corações em uníssono com aquele cântico, ao qual todos esperamos que as nossas débeis vozes venham a unir-se. Esta será a razão da nossa alegria, mesmo enquanto estivermos aqui, e contribuirá para a glória de Deus, a qual é lesada pelo louvor que os Cristãos frequentemente prestam uns aos outros. Não podemos ter duas bocas — uma para louvar a Deus e outra para louvar o homem. Possamos, então, conhecer o que os serafins fazem (Isaías 6:2,3), quando com duas asas cobrem as suas faces, como um sinal da sua confusão diante da sagrada presença do Senhor; com outras duas asas cobrem os seus pés, como se tentassem esconder de si mesmos os seus próprios passos; e com as duas asas restantes voam para executar a vontade do Senhor, enquanto proclamam, “Santo, santo, santo é o Senhor dos exércitos: toda a Terra está cheia da Sua glória”.

Perdoe-me por estas poucas linhas de exortação Cristã, as quais tenho a certeza, irão, cedo ou tarde, tornar-se úteis para si, passando a fazer parte da sua própria experiência. Lembre-se de mim em suas orações, enquanto rogo para que a bênção do Senhor possa pousar sobre si e sobre o seu trabalho. Se porventura vier a imprimir uma outra edição — como espero que aconteça — por gentileza, exclua as duas frases para as quais chamei a sua atenção; e chame-me simplesmente: “um irmão e ministro no Senhor." Isto já é honra bastante, e não é preciso mais.


John Nelson Darby (1800-1882)

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