… Mas o melhor de tudo é crer em Cristo! Luís Vaz de Camões (c. 1524 — 1580)

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Cristo, exemplo de humildade e sacrifício


MARTINHO LUTERO
 CRISTO, EXEMPLO DE HUMILDADE E SACRIFÍCIO

Sermão para o domingo de Ramos
Data: 2 de abril de 1531

Versículo: De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-Se a Si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-Se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-Se a Si mesmo, sendo obediente até à morte, e morte de cruz.” (Fl 2:5-8 ARC, Pt)

Introdução: Cristo é o exemplo para os Seus fiéis.

Esta é uma epístola somente para cristãos, e para ninguém mais. Pois aqueles que não crêem, mas têm o evangelho como uma tolice, nada têm que ver com o ensino que se apresenta no nosso versículo. É preciso acima de tudo crer que Jesus Cristo Se fez obediente ao Pai e Se entregou a Si mesmo à morte, não em Seu favor e da sua própria Pessoa, mas para nosso bem. Aquele que crê isto, a este se dirige a exortação do nosso versículo. E esta exortação diz: "De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus", quer dizer: não o reclamou para Si, como se o tivesse roubado ou tomado pela força, "mas esvaziou-Se a Si mesmo, tomando a forma de servo". Palavras assombrosas, na verdade, e difíceis de entender na versão bíblica alemã.

No capítulo do qual foi tomado o nosso versículo, o apóstolo iniciou o seu ensino estimulando os cristãos a que cada um mostrasse uma viva solicitude pelo bem-estar do próximo, esquecendo a preocupação egoísta pelos interesses próprios e "Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual também para o que é dos outros" (Filipenses 2:1-4). E isto é também o que nós queremos repisar como ensino do nosso versículo de hoje, ou seja: Uma vez que reconhecemos que recebemos do Senhor toda a classe de bens, e que fomos redimidos por Cristo de todos os pecados, devemos demonstrá-lo também no nosso trato com os outros. Para ensinar esta verdade, não poderíamos apresentar um exemplo mais eloquente do que o de Cristo. Pois assim é como obrou Aquele que nos redimiu. Esta é a atitude que Ele mostrou para convosco. E esta mesma atitude deveis mostrar agora também vós para com o vosso próximo. Contudo, a demonstração do nosso amor para com o próximo certamente será muitíssimo pobre em comparação com o que Cristo fez por nós; pois Cristo, o Deus foi feito um servo. Em vista disso, o apóstolo adiciona: "Que sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus." Esta é uma maneira de falar própria de Paulo, que os alemães entendem só com certa dificuldade. Vejamos portanto o que significa.

I. Jesus Cristo não teve por usurpação ser igual a Deus.

A divindade de Cristo não é usurpada, mas inata.

Há pessoas que ganharam os seus bens e seu dinheiro de forma legítima e honrada, sem roubo nem furto; estas pessoas podem dizer: o que eu possuo, não é produto do roubo. Assim é como Santo Agostinho e outros interpretam este versículo. Segundo esta interpretação, Paulo quer dizer: Cristo obteve a Sua divindade não por meio de um roubo, que é o meio com que outros costumam obter a sua dignidade, como por exemplo, os papistas, que querem ser professores e senhores sobre a palavra de Deus, mas que Ele possui a divindade como herança; não a comprou mas que ela Lhe é inata. O Papa roubou a potestade divina que a si mesmo se atribui, e ladrões fomos também nós, e o são, em geral, todos aqueles que se atrevem a governar e dominar as almas. Um príncipe, por exemplo, pode dizer a um ladrão, a um assassino ou a um revoltado: "Tu roubaste-me a minha potestade senhorial, que de maneira nenhuma te compete. Pois só a mim incumbe governar os bens e a vida deste meu súbdito; e se apesar disto tu lhe tiras os seus bens e a sua vida, cometeste um ato criminoso." Porque a esse assassino, etc., a potestade com que atua não lhe é inata, mas antes a usurpou, a roubou. Porém, quem a possui em virtude do seu nascimento, tem o direito legítimo de exercê-la. Assim, pois, Cristo possui a Sua divindade não como Lúcifer, o Papa e os espíritos facciosos, que são ladrões da dignidade e da potestade divina. Parece-me muito boa esta interpretação de Santo Agostinho; não há por que rechaçá-la. Por conseguinte, a Cristo corresponde a potestade divina por quanto Ele é Deus por natureza, e Paulo com as suas palavras em Filipenses 2, confirma aquele artigo da divindade de Cristo, ou seja, que Cristo tem o direito de receber honras divinas porque Ele é Deus igual ao Deus Pai.

Cristo emprega a Sua divindade não em benefício próprio, mas em nosso benefício.

Ora bem: há, também, uma certa classe de pessoas que possuem os seus bens legitimamente, e, não obstante, são ladrões e assaltantes. A essa classe pertencia aquele camponês que disse a um mendigo: "Eu tenho pão em minha casa; aquele que não tem, veja de onde o pode conseguir". Seria o mesmo que se eu tivesse pão, e o meu vizinho passasse fome, e eu lhe dissesse: "Eu tenho pão; se tu também quiseres pão, por que não vais e o compras?" Se nós não dermos de comer ao homem faminto que no-lo pede, os nossos bens são bens furtados e roubados, mesmo que não os roubássemos nem os furtássemos. Apesar de que não os tirarmos a outros, cometemos, não obstante, o mesmo pecado que o ladrão que arrebata os seus bens a outros, tornando assim os seus próximos em famintos. Por quê? Porque os necessitados pedem-lhe, e ele não lhes dá. Com isto chega a ser um ladrão em relação aos seus próprios bens, porque não presta com eles um serviço a ninguém. Um tal homem tem o mesmo caráter que um ladrão. Neste sentido diz Ambrósio: "Dá de comer ao que sofre fome; se não o fazes, assassinaste-o;" e, por isso, se lê também: "Reparte o teu pão com o faminto, desata as ligaduras de que está aprisionado", pois nestas necessidades é teu dever socorrer o teu próximo com os teus bens. E é neste sentido que Paulo diz aqui a respeito de Cristo: Ele possui a divindade não só como posse real, e segundo a Sua essência como Filho de Deus, mas também pela forma como a usa e a põe em ação. Por isso não diz "não roubou" mas "não teve por usurpação." Com efeito: Cristo era essencialmente Deus, não tinha roubado a Sua divindade, e entretanto, não a não teve por usurpação; noutros termos: não atuou como um proprietário que embora não é um ladrão quanto ao seu direito à propriedade, mas o é quanto ao uso que faz dela, dado que a usa como um ladrão e um miserável. Há pois dois tipos de ladrões: aquele que rouba coisas, e aquele que usa as coisas à maneira de um ladrão.

II. A atitude de Cristo exige imitação por parte de todos os cristãos.

Aquele que se nega a dar e a servir, nega a Cristo.

E agora nos diz Paulo: "Assim como fez Cristo, fazei vós também". Se eu sou uma pessoa instruída, e sei pregar, e tenho a chamada para fazê-lo, mas não o faço, então cometo um roubo em prejuízo daqueles que necessitam da pregação. Mas, acaso o meu saber não é minha propriedade? Tu não mo deste, não o roubei nem o furtei. Entretanto, se não o dou àquele que dele necessita, estou-o roubando; pois como esse saber é a minha dívida para com ele, já não me pertence a mim, mas a ele. E de nada me vale dizer-lhe: "Meu amigo: o que eu sei não o aprendi de ti; tu não foste meu professor." Da mesma maneira, devem os comerciantes ter muito cuidado para não dizerem: "O que eu tenho Deus mo deu; por isso posso vendê-lo ou retê-lo segundo o meu desejo." Cristo não atuou assim. Apesar de que Ele possuía a divindade, e era verdadeiro Deus, não nos disse: "Vós sois pecadores, Eu sou santo, veraz e sábio; o que, pois, podeis reclamar de Mim?" Apesar de que ninguém Lhe havia dado nada, nem Ele havia tomado nada de ninguém, não obstante, não o "teve por usurpação." E, por conseguinte, não usou a Sua divindade em Seu próprio benefício, como Se a tivesse roubado, mas deu-a em usufruto a outros, com a intenção de que a Sua justiça e santidade, o Seu poder e sabedoria não ficassem confinados nEle, mas que todos os que a Ele clamam fossem seus usufruidores.

Isto é o que Cristo fez. E o que Ele tem para repartir, não é uma esmola ridícula ou uma fatia de pão; nem tampouco são somente quatro reinos, ou uma erudição tão pobre como a que eu tenho e outros doutores, mas o Seu haver é o "ser igual a Deus." Não obstante, Ele despoja-Se deste haver e diz: "Não tem de pertencer só para Mim, mas será teu." E tu, homem débil e miserável, choras por um florim ou por um saco? Vês que o teu próximo necessita de um saco, e tu não és capaz de lho dar, e tu tornaste um assaltante e ladrão e dizes que não deves nada a ninguém? E Ele, o Senhor, pôs à disposição nada menos que a Sua divindade! O que farias tu, se tivesses que dar-me o Sol, ou a Lua, ou a vida, como Deus te dá isso todos os dias? Imediatamente te parece muito, se alguém te pedir, não que lho dês de presente, mas que lhe vendas algo, e o mesmo se passa com o servo se o seu amo lhe pede um trabalho. E pense-se no estúpido alarde que um carpinteiro faz com o produto da sua habilidade! Mas que grande coisa é, ao fim e ao cabo? Ainda que tenhas uma miserável esmola para dar a um pobre, acaso por isso, terás de te exaltar e de te adorar, dessa maneira?

O exemplo que Cristo dá, faz com que empalideçam também as obras e virtudes dos cristãos.

E tu queres ser um cristão? Ao diabo contigo! Fixa-te no exemplo que Cristo nos dá, conforme o nosso versículo! Aí não se trata de uma mísera esmola, nem da coroa do monarca turco, nem do céu, da Terra, do Sol ou da Lua. Todas as nossas virtudes têm de tapar-nos cara de pura vergonha, perante o que Cristo fez por nós. Mesmo que no último dia pudéssemos de facto, glorificar-nos, dizendo: "Eu preguei, eu ensinei, eu dei de comer aos que tinham fome e de beber aos que tinham sede, etc.", Mateus 25 (v. 35 e sigs.), o que é tudo isto, comparado com o Ele que fez? Melhor é que digas: "Meu Senhor, tem piedade de mim! Gostosamente guardarei silêncio acerca das boas obras que fiz." Pois, o que é a Sua divindade em comparação comigo? Ele coloca-te no primeiro assento, como se tu fosses Deus, e Ele teu servo. Que cada um pense, por favor, no que isto significa. Mas o triste é que não pensamos nisso. Apartamos da nossa vista esse exemplo. Se alguém possuiu ou pode ou sabe algo, crê que tudo isto é para ele mesmo) e quer que o louvem e adorem juntamente com todas as suas excelências. Por isso te disse que este versículo é somente para cristãos.

Eis aqui, pois, como Cristo nos deu, em primeiro lugar, um exemplo: Ele não quis usar a Sua divindade como propriedade Sua exclusiva, apesar de que tinha o direito de fazê-lo. Não quis dizer: "Eu sou Deus, e tu és um miserável; exijo de ti que Me adores." Pelo contrário! Ele diz-nos: "Apesar de que Eu sou Deus, quero servir-te com tudo o que sou e tenho. Não vim para ser servido" (Mateus 20:28). Este mesmo sentir, pois, que houve em Cristo Jesus, deve animar-me também a mim: tudo que possuo, todas as minhas faculdades, têm de servir não para que me louvar e para que me prestem serviços, mas, pelo contrário, para que eu sirva com elas a outros, porque assim o fez Cristo. Com isto fica abatida a minha altivez, e a minha confiança em todas as minhas boas obras, chamem-lhe como queiram, não porque as boas obras não sejam do agrado de Deus, mas porque Ele te fixou uma tão alta meta às obras que jamais a alcançarás. Despojaste-te de um florim ou de um saco; Ele despojou-Se da Sua divindade. Isto é uma parte do Seu exemplo.

III. A disposição de ajudar outros não deve conduzir a abusos. A lei do amor que rege o cristão não é uma carta branca para os mendigos.

Com isto não quero dar via livre aos mendigos que dizem: "Eu sou um pobre homem. Ninguém me quer dar nada." É verdade, Cristo disse: "Não necessitam de médico os sãos, mas, sim, os doentes. Porque Eu não vim a chamar os justos, mas os pecadores, ao arrependimento.” (Mateus 9:12, 13). Mas se não estás enfermo, diz: "Eu estou forte e são, não necessito da Tua ajuda". Mas hoje em dia não querem atuar assim; preferem entregar-se à mendicidade e à ociosidade. Não é raro encontrar homens robustos que fogem ao trabalho e logo pedem que os mantenham. Se podendo trabalhar, preferes viver à minha conta ou de outros, não tenho nenhuma obrigação de te ajudar. Muitos há que percorrem as ruas com uma criancinha pela mão e pedindo esmolas. Por que não trabalham de tecelões ou de aguadeiros? E quando lhes pedem explicações por que obrigam o seu filho a mendigar, em vez de lhe buscar um trabalho, choramingam: "Estão-me repreendendo por causa do meu filho." Que o levem a casa! E que não se lhes dê nada! Eu também fui filho da minha mãe, e, não obstante, tive que aguentar muitas coisas e trabalhar duro; e tu não queres que o teu filho aguente algumas coisas e trabalhe? Essa gente crê que o Evangelho lhes dá a liberdade de se entregarem à preguiça. Tu és um homem robusto e são; se não podes ser empresário, sê operário, e se até isto te é impossível, vai trabalhar nas obras de fortificação. Ou se és mulher, por que não fias ou fazes algum outro trabalho para teres de comer? A gente tão preguiçosa havia de se lhes impor um castigo. Viveis como o príncipe eleitor da Saxónia, e logo quereis que vos mantenham com os recursos da caixa comunitária. A que levará tudo isto? A que a cidade se encha de mendigos. Aos estudantes, sim, há que mantê-los, porque o seu estudo não lhes dá para viver. Mas vós dizeis: "Ah sim, mas aqui em Wittenberg prega-se que há que fazer bem aos pobres!", e, por isso, não quereis trabalhar. Não, senhor; se queres viver vagabundeando, apesar de que gozas de boa saúde e poderias trabalhar na horta, o que há a fazer é deixar-te plantado, e deixar que os teus filhos e tu mesmo morrais de fome. Primeiro ajudam-vos, e depois ides roubar nas hortas! Com toda essa gente, a nossa pregação não tem nada que ver.

Quem tem saúde e forças, deve ganhar o seu pão com o trabalho.

Cristo não morreu pelos sãos. Ele pôs a Sua divindade ao serviço dos homens, daqueles que não podem valer-se a si mesmos. Se tu és um deles, o meu florim deve estar ao teu serviço, o meu pão deve ser o teu pão, e o que é meu deve ser teu, sempre que tu estejas verdadeiramente necessitado. Porém, se tu estás mais são do que eu, e queres vadiar e dizes que tens a casa cheia de filhos que necessitam de comer, então vai trabalhar, ou morre de fome. Em nenhuma parte está escrito que se tenha de manter os vadios. Mas assim o fazem também a servidão e os obreiros. Dizem: "Somos evangélicos, por isso têm de nos dar uma ajuda." Sim, haveria que dar-te umas palmadas nas nalgas! Se eu soubesse de alguém que tem filhos e proíbe os mesmos de trabalharem, pediria ao prefeito que o lance no cárcere e o faça perecer de fome, porque querem aproveitar-se do nosso suor e fazer com que nós os alimentemos. Se estás em condições de trabalhar e de ganhar o teu pão —e são muitos os que vejo andar pelas ruas, e que bem poderiam fiar ou levar água ou fazer algum outro trabalho doméstico— a estes há que dizer-lhe: "Vai, e ganha o teu pão!" Mas se houver uma pessoa que é tão débil que não pode prover-se do sustento necessário, então, ali rege o exemplo de Cristo. Se ele disser: "Eu quero despojar-me de minha divindade e não estimá-la como presa", então, também eu quero fazer pelos débeis o bem que possa, mesmo que só fosse dar-lhes um copo de água fria (Mateus 10:42). Mas se a servidão se mostra teimosa e arrogante — deixa que se vão, em nome do diabo! Logo virão dias em que estariam muito contentes em poder trabalhar por um bocado de pão. A Escritura diz: Cristo morreu a favor dos débeis que não podem valer-se a si mesmos, não a favor dos fortes. Enfim, o nosso versículo é demasiadamente bom para ser gasto em tais coisas. Não obstante, a exortação que dei era necessária.

Fonte:
http://www.escriturayverdad.cl/mlutero.html 


Tradução de Carlos António da Rocha

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2) Quando esta minha tradução for publicada por alguém no todo ou em parte é necessário referir sempre: http://no-caminhodejesus.blogspot.com/

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Carlos António da Rocha

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