C. H. Spurgeon
Sermão n.º 446
“A velha, velha
história” (The old, old
story)
pregado no domingo 30 de março de 1862 por Charles Haddon Spurgeon, no
Tabernáculo Metropolitano, Newington.
“Porque Cristo, estando nós ainda fracos, morreu a seu tempo
pelos ímpios.” (Rm 5:6, ARC, Pt)
Encontra-se presente hoje, entre nós, um doutor em
teologia que me escutou a pregar há já alguns anos. Visita-nos novamente vindo
da sua residência, dos Estados Unidos da América. Quando vi a sua cara, não
pude evitar imaginar que talvez pense que estou obcecado com este velho tema e
que entoo sempre a mesma melodia; que não tenho avançado nem uma polegada em
nenhum domínio do pensamento e que continuo pregando o mesmo velho Evangelho,
da mesma velha maneira, como sempre o faço. Se pensasse isso, ele estaria
certo. Suponho que me pareço com o senhor Cecil quando ele era menino. Numa
ocasião, o seu pai pediu-lhe que o esperasse numa determinada porta, até que
ele regressasse, e depois o pai, como era um homem muito ocupado, andou
percorrendo a cidade, e no meio de seus numerosos cuidados e compromissos,
esqueceu-se do rapaz. Caiu a noite, e, finalmente, quando o pai chegou a sua
casa, houve uma grande inquirição a respeito do paradeiro de Ricardo. O pai
disse: “Meu Deus, deixei-o no início da manhã, esperando-me, parado, em frente
a tal e tal porta, e pedi-lhe que me esperasse aí, até que eu fosse por ele;
não me surpreenderia que ainda me estivesse esperando ali.” Assim, foram, e aí
encontraram o rapaz. Não é uma vergonha imitar esse exemplo tão simples de
fidelidade infantil. Há alguns anos eu recebi instruções do meu Senhor para
estar ao pé da Cruz até que Ele viesse. Não veio ainda, mas estou decidido a
esperá-Lo ali até que Ele venha. Se eu desobedecesse às Suas instruções e
abandonasse essas simples verdades que têm servido de instrumento para
converter a tantas almas, não sei como poderia esperar a Sua bênção. Aqui
estou, pois, ao pé da Cruz, repetindo a mesma velha, velha história, rançosa
como poderia soar aos ouvidos de quem tem comichão ao ouvir, e gasta e puída
conforme a consideram os seus críticos. Eu amo falar de Cristo, do Cristo que
amou e viveu e morreu em substituição dos pecadores, o justo pelos ímpios, para
poder-nos levar a Deus.
É curioso, mas, assim como dizem que os peixes se começam
a decompor pela cabeça, de igual maneira os teólogos modernos, geralmente,
começam a equivocar-se em relação com a doutrina fundamental e de maior
importância do trabalho vicário de Cristo. Quase todos os nossos erros modernos
—eu diria que todos eles— começam por ser erros a propósito de
Cristo. Os homens não gostam de pregar sempre o mesmo. Há “atenienses” nos
púlpitos e nas bancas das igrejas que não fazem outra coisa senão escutar algo
de novo. Não se contentam em dizer repetidamente, uma e outra vez, esta simples
mensagem: “Quem crê no Senhor Jesus Cristo tem a vida eterna.”
Assim, tomam emprestadas certas novidades
da literatura e guarnecem a Palavra de Deus com palavras ensinadas pela
sabedoria humana. Envolvem em mistério a doutrina da expiação. A reconciliação
por meio do sangue precioso de Jesus deixa de ser a pedra angular do seu
ministério. O seu propósito principal é adaptar o Evangelho aos desejos
doentios e aos gostos dos homens, acima de qualquer intenção de reformar a
mente e renovar o coração dos homens, para que possam receber o Evangelho tal
como ele é. Não podemos dizer aonde vão parar os que deixam de seguir o Senhor
com um coração verdadeiro e sem divisões, descendo de uma profundidade para
outra mais profunda, até serem recebidos pelo negrume da escuridão, a menos que
a graça o impeça. Só isto podem ter por certo, pois
“Eles não podem ter razão na morte,
A menos que digam a verdade a respeito dEle.”
Se não entenderem a verdade sobre o propósito da cruz, estão
apodrecidos em toda a parte. “Porque ninguém pode pôr outro fundamento além do que o que
está posto, o qual é Jesus Cristo.” Nesta Rocha há segurança. Podemos
enganar-nos com maior impunidade noutros pontos, mas não neste. Os que estão
edificados sobre esta Rocha, ainda que eles mesmos agreguem logo madeira, feno
e folhagem para a sua terrível confusão —já que a obra
de cada um, o fogo a provará—, eles mesmos
serão salvos, mas apenas como pelo fogo.
Agora, queremos repetir novamente perante vós essa
importantíssima doutrina que reconhecemos como a pedra angular do sistema
evangélico, a mesmíssima pedra angular do Evangelho, essa muito importante
doutrina da expiação de Cristo, e logo, sem tentar justificá-la —pois isso temos feita centenas de vezes—, tiraremos ensinos práticos dessa
verdade que certamente continua sendo válida entre nós.
Como o homem pecou, a justiça de Deus requeria que se
aplicasse o castigo. Deus havia dito: “A alma que pecar essa morrerá”; e a
menos que Deus pudesse equivocar-Se, o pecador deve morrer. Mais ainda, a
santidade de Deus o requeria, pois o castigo estava apoiado na justiça. Era
justo que o pecador morresse. Deus não havia aplicado uma pena mais severa do
que a que devia aplicar. O castigo é o resultado justo da ofensa. Portanto, há
duas alternativas: ou Deus deixa de ser santo ou o pecador deve ser castigado.
A verdade e a santidade imperiosamente requeriam que Deus levantasse a Sua mão
e golpeasse o homem que tinha quebrantado a Sua lei e ofendido a Sua majestade.
Todavia, Cristo Jesus, o segundo Adão, a cabeça federal dos escolhidos,
interpôs-Se como mediador. Ele ofereceu-Se para sofrer o castigo que os
pecadores deviam sofrer; comprometeu-Se a cumprir e honrar a lei que eles
tinham quebrantado e desonrado. Ele ofereceu-Se para ser a pessoa de importância,
a fiança, o substituto, tomando o lugar, o posto e a condição dos pecadores.
Cristo tornou-Se no vicário do Seu povo ao sofrer de maneira vicária em lugar
deles; cumprindo de forma vicária o que eles não tinham a fortaleza de cumprir
pela debilidade da carne em consequência da queda. O que Cristo se comprometeu
a fazer, foi aceite por Deus.
No seu devido tempo, Cristo realmente morreu e levou a cabo
o que tinha prometido fazer. Assumiu cada pecado do Seu povo e sofreu cada
golpe da vara por causa desses pecados. Sorveu num só trago horrível todo o
castigo dos pecados de todos os escolhidos. Tomou a taça, pô-la nos Seus
lábios, suou como que grossas gotas de sangue quando deu o primeiro sorvo nessa
taça, mas não desistiu, mas continuou bebendo até beber a última gota, e
volteando a vasilha para baixo, disse: “Consumado é!”, e num só tremendo sorvo
de amor, o Senhor Deus da salvação tinha apagado completamente a destruição.
Não ficou nem um só vestígio, nem sequer o menor resíduo; Ele sofreu tudo o que
devia ter sofrido; terminou com a transgressão e pôs um fim ao pecado. Mais
ainda, Ele obedeceu à lei do Pai em todos os seus alcances; Ele cumpriu essa
vontade sobre a qual havia dito desde tempos antigos: “Anelo a Tua salvação, oh
Deus, e a Tua lei é a Minha delícia” e, tendo oferecido tanto uma expiação pelo
pecado como o total cumprimento da lei, subiu ao alto, tomou o Seu assento à
mão direita da Majestade no Céu, esperando daqui em diante que os Seus inimigos
sejam postos como escabelo de Seus pés e intercedendo por aqueles a quem
comprou com o Seu sangue para que possam estar com Ele onde Ele Se encontra. A
doutrina da expiação é muito simples. Consiste simplesmente em que Cristo tomou
o lugar do pecador. Cristo é tratado como se fosse o pecador, e, portanto, o
transgressor é tratado como se fosse o justo. É uma mudança de pessoas. Cristo
converte-Se no pecador, coloca-Se no lugar do pecador. Foi contado entre os
transgressores. O pecador torna-se justo; coloca-se no lugar de Cristo e é
contado entre os justos. Cristo não cometeu pecado algum[1], mas
assume a culpabilidade humana e é castigado pela insensatez humana. Nós não
temos justiça própria, mas assumimos a justiça divina. Somos recompensados por
ela e somos aceites perante Deus como se essa justiça proviesse de nós mesmos.
“A seu tempo Cristo morreu pelos ímpios”, para poder apagar os nossos pecados.
O meu objectivo não é demonstrar esta doutrina. Como disse
antes, não há necessidade de estar discutindo sempre o que sabemos que é
verdade. Antes, dediquemos umas palavras sentidas, louvando esta doutrina da
expiação; e depois apresentá-la-ei para fins de uma aplicação prática, para
aqueles que ainda não receberam a Cristo.
I. Em primeiro lugar, A MODO DE LOUVOR.
Há algumas coisas que podemos dizer a favor do Evangelho que
proclama a expiação como o seu princípio fundamental. E a primeira coisa que
vamos dizer sobre o Evangelho é, quão simples ele é, quando o comparamos com
todos os esquemas modernos! Irmãos, essa é a razão pela qual os nossos grandes
homens não gostam dele: é demasiado simples. Se
fordes e comprardes certos livros que ensinam como preparar sermões,
encontrareis que a essência do ensino é esta: selecionai todas as palavras
difíceis que possais encontrar em
todos os livros que leiais durante a
semana, e logo as vertei sobre a
congregação no domingo; e haverá um grupo de pessoas que sempre aplaudirá ao
homem que não pode entender. São semelhantes à anciã a quem se perguntou quando
regressava da igreja: “Entendeu o sermão?” “Não”, respondeu, “Não teria essa
presunção.” Ela acreditava que era uma presunção tentar compreender o ministro.
Mas a Palavra de Deus entende-se com o coração e não faz estranhas demandas ao
intelecto.
Agora, o nosso primeiro louvor à doutrina da expiação é que ela
própria se faz recomendável ao entendimento. O viajante pode compreender esta
verdade da substituição sem nenhuma dificuldade, embora o seu intelecto seja
apenas um grau superior ao de um idiota. Oh, estes teólogos modernos farão algo
para tirar a importância à Cruz! Penduram sobre essa cruz os adornos
estridentes da sua eloquência, ou a apresentam envolta nos escuros
encantamentos misteriosos da sua lógica, e quando o pobre coração aflito olha
para cima para ver a cruz, nada vê ali, excepto humana sabedoria.
Repito de novo que não há ninguém aqui presente que não
possa entender esta verdade, que Cristo morreu em lugar do Seu povo. Se tu
pereces, não será devido a que não possas compreender o Evangelho. Se fores
para o Inferno, não será porque não foste capaz de entender como Deus pode ser
justo, e, apesar disso, ser também o que justifica o ímpio. É surpreendente,
que na nossa época se conheça tão pouco acerca dos simples
truísmos[2] revelados pela Bíblia; parece advertir-nos
continuamente como quão simples devemos ser ao expormos essas verdades.
Inteirei-me da história do Sr. Kilpin. Numa ocasião, ele estava pregando um
sermão muito bom, de maneira fervente[3],
quando usou a palavra “Deidade”, e um marinheiro que o escutava inclinou-se
para diante e disse-lhe: “Desculpe, senhor, rogo-lhe que me diga quem é o
senhor Deidade. Refere-se ao Deus Todo-Poderoso?” “Sim”, respondeu-lhe o Sr.
Kilpin, “refiro-me a Deus, e não devia ter usado uma palavra que o senhor não
pudesse compreender.” “Agradeço-lhe muito, senhor”, respondeu o marinheiro, o
qual pareceu devorar todo o resto do sermão, demonstrando um profundo interesse
até ao fim.
Agora, esse pequeno incidente é simplesmente um índice do
que prevalece em qualquer lugar. A pregação deve ser simples. Uma doutrina da
expiação que não seja simples, uma doutrina que nos chega da Alemanha, que
requeira que um homem seja um grande erudito antes de que possa compreendê-la,
e que seja ainda um adepto maior antes de que possa compartilhá-la com outros,
tal doutrina, obviamente, não é de Deus, já que não é adequada para as
criaturas de Deus. Poderá ser fascinante para um entre mil, mas não é adequada
para os pobres deste mundo que são ricos na fé; não é adequada para as crianças
a quem Deus revelou as coisas do reino, enquanto que as escondeu aos sábios e
entendidos. Oh, vós podeis sempre julgar uma doutrina desta forma. Se não é uma
doutrina simples, não vem de Deus; se vos deixar perplexos, se é uma doutrina
que não podeis ver claramente imediatamente, devido à misteriosa linguagem que
a envolve, podeis começar a suspeitar que é uma doutrina humana, e não a
Palavra de Deus. E a doutrina da expiação não deve ser louvada somente pela sua
simplicidade, mas além de adequar-se ao entendimento, também é adequada para a
consciência. Não há língua que possa descrever como satisfaz a consciência!
Quando um homem desperta e a sua consciência o atormenta, quando o Espírito de
Deus lhe tem mostrado o seu pecado e a sua culpa, não há nada que lhe possa
trazer a paz, senão só o sangue de Cristo.
Pedro, posto de pé na proa do bote, e tendo dito ao vento e
às ondas: “Paz, não vos moveis”, mas estes elementos deveriam ter rugido sem
deter-se com inquebrantável fúria. O Papa de Roma, que pretende ser o sucessor
de Pedro, pode alçar-se com as suas
cerimónias e dizer à consciência atormentada: “Paz, tem tranquilidade”, mas não
cessará a sua terrível agitação. O espírito imundo que traz para a consciência
tanta agitação grita ao Papa: “A Jesus conheço, conheço a Sua cruz, mas quem és
tu?” Sim, e não poderá ser lançado fora. Não há absolutamente nenhuma
oportunidade de encontrar-se um travesseiro para a cabeça dorida pela ação do
Espírito Santo, salvo a expiação e a obra terminada de Cristo.
Quando o senhor Robert Hall foi pregar
pela primeira vez a Cambridge, quase todos seus habitantes eram Unitários[4].
Assim que ele pregou a respeito da doutrina da obra terminada de Cristo, alguns
dos seus ouvintes aproximaram-se dele e disseram-lhe: “Senhor Hall, isto não
deveria ter sido dito.” “Por que não?”, perguntou ele, “Pois porque o seu
sermão é adequado somente para anciãs.” “E porque é adequado somente para
anciãs?”, inquiriu o senhor Hall. “Porque elas
estão cambaleantes nas fronteiras da sepultura e procuram consolo, e, portanto, é muito
adequado para elas, mas não para nós.” “Muito bem”, disse o senhor Hall, “inconscientemente vós tendes-me pago todo
o cumprimento que eu posso pedir; se isto é bom para anciãs à beira da
sepultura, deve ser bom para vós que estais na plenitude da vossa consciência,
pois todos nos encontramos à beira da sepultura.” Aqui encontramos, certamente,
uma das principais características da expiação, que nos consola perante o
pensamento da morte. Quando a consciência é despertada pelo sentido da culpa, a
morte projectará certamente a sua pálida sombra sobre todas as nossas
perspectivas e porá um círculo ao redor de todos os nossos passos com escuros
presságios da sepultura. Os alarmes da consciência geralmente são acompanhadas
dos pensamentos do juízo que se aproxima, mas a paz dada pelo sangue é à prova
de consciência, à prova de enfermidade, à prova de morte, à prova do diabo, à
prova de juízo e será à prova de eternidade. Poder-nos-emos alarmar com todas as revoltas de ocupação
e de toda a lembrança da corrupção passada, mas permite apenas que os nossos olhos
descansem na Tua amada cruz, ó Jesus, e que a nossa consciência tenha paz com
Deus e possamos descansar e estar tranquilos. Agora, perguntamo-nos se algum
destes sistemas modernos de teologia pode aquietar uma consciência atormentada?
Nós gostaríamos de compartilhar com eles, alguns casos com os quais nos
encontramos algumas vezes —alguns casos
desesperados— e dizer-lhes:
“Agora, aqui, lança fora a este demónio, se podes fazê-lo”, e penso que eles se
darão conta de que este tipo de demónios não pode ser lançado para fora, senão
só por meio das lágrimas, dos gemidos e da morte de Jesus Cristo, do sacrifício
de expiação. Um Evangelho sem expiação pode funcionar muito bem para mocinhas e
cavalheiros que não estão conscientes de que alguma vez fizeram algo mau. Será
adequada simplesmente para a gente apática que não tem um coração visível para
os demais; pessoas que sempre têm sido muito morais, direitas e respeitáveis;
que se sentiriam insultadas se lhes dissesses que merecem ser enviadas para o
Inferno; que nem por um momento admitiriam poder ser criaturas depravadas ou
caídas. O evangelho destes modernos, atrevo-me a repeti-lo, será muito adequado
para este tipo de pessoas; mas nada mais deixa que um homem seja realmente
culpado e o saiba; deixa que verdadeiramente esteja consciente da sua condição
perdida, e eu vos asseguro de que nada senão Jesus— nada senão Jesus, nada senão o Seu
precioso sangue, poderá dar-lhe paz e descanso. Estas duas coisas, então, são excelentes recomendações da doutrina da
expiação, já que se adequa ao entendimento dos menos dotados e aquieta a
consciência do mais aflito.
Mais ainda, esta doutrina tem a particular característica de
abrandar o coração. Há na história do sacrifício de Cristo um misterioso poder
para abrandar e derreter. Conheço uma apreciada mulher cristã que amava os seus
pequenos filhos e procurava a salvação deles. Quando orava por eles,
considerava correto usar os melhores meios para ganhar a sua atenção e
despertar as suas mentes. Espero que todos vós procedais da mesma maneira.
Todavia, o meio que ela tinha considerado como o mais efetivo para o seu objetivo
era o dos terrores do Senhor. Ela costumava ler aos seus filhos, capítulo após
capítulo, o livro “Alarme para os Inconversos” de Alleine. Oh, esse livro!
Quantos sonhos provocou no seu filho nas noites, acerca de devoradoras chamas e queimaduras
permanentes! Entretanto, o coração do moço foi-se endurecendo, como se se fosse
recozendo, em vez de derreter-se no forno do medo. O martelo soldou o seu
coração para o pecado, mas não o partiu.
Mas, ainda então, estando endurecido o coração do moço,
quando escutava sobre o amor de Jesus pelo Seu povo, se bem que temia não
contar-se entre eles, ainda costumava chorar ao pensar que Jesus pudesse amar a
alguém com essas características. Até agora, que alcançou a idade adulta, a lei
e os terrores matam-no, sem o perturbar, mas ao Teu sangue, Jesus, à Tua agonia
no Getsêmane e sobre o madeiro, não pode resistir; derretem-no; a sua alma
derrama-se em lágrimas através dos olhos; chora até ficar vazio, com amor
agradecido por Ti, por tudo o que tens feito. Ai daqueles que negam a expiação!
Tiram o aguilhão do sofrimento de Cristo; e então, ao tirá-lo, suprimem a ponta
por meio da qual os sofrimentos de Cristo traspassam e exploram e penetram no
coração. Posto que Cristo sofreu por meus pecados e foi condenado, eu posso ser
absolvido e não ser condenado por causa da minha culpa: é isto o que faz com que
os Seus sofrimentos sejam um bálsamo para o meu coração.
“Olha como no
sangrento madeiro
O ilustre
sofredor pende,
Pelos tormentos
que te correspondiam;
Ele suportou as
terríveis dores
E saldou ali a
pavorosa soma
De todos os
pecados presentes, passados e que hão-de vir.”
Neste mesmo instante há congregações reunidas nos teatros
de Londres, e há pessoas que lhes estão pregando, não sei precisamente sobre o
quê, mas eu sei qual deveria ser o seu tema. Se querem alcançar o intelecto dos
que vivem na periferia, se querem tocar as consciências dos que são ladrões e
bêbados, se querem derreter os corações dos que se têm tornado teimosos e duros
durante anos de concupiscência e iniquidade, sei que apenas o que pode obtê-lo
é a morte no Calvário, as cinco feridas, o flanco sangrando, o vinagre, os
pregos e a lança. Há ali um enternecedor poder para obtê-lo que não se pode
encontrar em nenhuma outra parte do mundo.
Determo-nos-emos uma vez mais neste ponto. Nós elogiamos
a doutrina da expiação porque sabemos que, além de adequar-se ao entendimento, de
aquietar a consciência e de derreter o coração, tem poder para afectar a vida
exterior. Nenhum homem pode crer que Cristo sofreu pelos seus pecados e ainda
viver em pecado. Nenhum homem pode crer que as suas iniquidades mataram a
Cristo, e, apesar disso, acariciá-las no seu peito. O efeito certo e seguro de
uma verdadeira fé no sacrifício de expiação de Cristo, é o de limpar a velha
levedura, o dedicar a alma Àquele que a comprou com o Seu sangue, e o
compromisso de vingar-se daqueles pecados que cravaram a Cristo no madeiro. O
melhor é que isto pode-se comprovar. Vá a qualquer bairro na Inglaterra onde
viva um teólogo filósofo que tenha eliminado completamente a expiação da sua
pregação, e se não encontrar mais prostitutas e ladrões e bêbados do que o
usual, então estou completamente equivocado; mas, por outro lado, vá a outro
bairro onde se prega a expiação, com rígida integridade e seriedade amorosa, e
se não encontras as cervejarias ficando vazias e as lojas fechadas aos domingos
e o povo vivendo com honestidade e retidão, então terei observado o mundo em
vão.
Conheci, numa
ocasião, uma povoação que era possivelmente a pior das povoações da Inglaterra
por muitas razões: muitas destilarias ilícitas estavam produzindo o seu nocivo
licor para um fabricante que não pagava impostos ao governo e onde, em conexão
com o mesmo, abundava toda a classe de desordem e de iniquidade. A esse povo
chegou um jovem, que não era mais que um moço, sem muita educação formal, tosco
e algumas vezes até vulgar. Começou a pregar ali, e quis Deus sacudir a esse
povo. Em muito pouco tempo a pequena capela com teto de palha estava lotada e
os maiores vagabundos da povoção estavam chorando mares de lágrimas e aqueles
que tinham sido a maldição da aldeia converteram-se na sua bênção; e onde antes
houve todo tipo de roubos e maldades em toda a vizinhança, já não as houve
mais, porque os homens que as faziam se encontravam na casa de Deus, alegres ao
escutar de Jesus crucificado. Escutai-me com atenção, não vos estou dizendo agora uma
história exagerada, nenhuma coisa que eu não saiba. Mas esta coisa lembro-a
claramente para louvor da graça de Deus, porque o Senhor quis fazer sinais e
maravilhas no nosso meio. Ele mostrou o poder do nome do Jesus e fez-nos testemunhas
desse Evangelho que ganha almas, que atrai corações relutantes e molda de
maneira nova a vida e a conduta dos homens. Há alguns irmãos aqui que vão aos
refúgios e lares para falar com essas pobres moças caídas que foram resgatadas.
Pergunto-me o que fariam se não levassem consigo o Evangelho a essas moradas da
miséria e da vergonha. Se levassem consigo uma folha arrancada de um manual de
teologia e fossem e lhes falassem com palavras e com filosofias ribombantes,
que benefício lhes poderiam proporcionar? Pois bem, o que não é bom para elas
não é bom para nós. Queremos algo que possamos entender, algo em que possamos
confiar, algo que possamos sentir; algo que dê forma ao nosso caráter e à nossa
conversação, e que nos faça semelhantes a Cristo.
II. Em segundo lugar, um ou dois pontos A MODO DE
EXORTAÇÃO.
Homem
cristão, crês que os teus pecados têm sido perdoados e que Cristo tem feito uma
expiação completa por eles. O que te diremos a ti? A ti, dir-te-emos, em
primeiro lugar, que deves ser um cristão jovial! Que deves viver por cima das
provas e dos problemas comuns do mundo! Já que o teu pecado tem sido perdoado,
que importância tem o que te aconteça agora? Lutero dizia: “Golpeia-me, Senhor,
golpeia-me, porquanto o meu pecado foi perdoado. Se Tu te dignaste perdoar-me,
golpeia-me tão duramente como queiras.” Era como se um menino sentisse que
tinha feito algo mau, e não se importasse que o seu pai o pudesse chicotear, se
no fim o perdoava. Penso que tu podes dizer: “Envia-me enfermidade, pobreza,
perdas, cruzes, calúnias, perseguição, o que queiras, Tu tens-me perdoado e a
minha alma está contente e o meu espírito regozija-se.” E então, Cristão, se és
salvo e Cristo realmente tomou o teu pecado, enquanto és feliz, sê agradecido e
cheio de amor. Aferra-te a essa cruz que limpou o teu pecado; serve a Quem te
serviu. “Rogo-vos,
pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em
sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional.” (Rm
12:1 ARC, Pt) “Amo o meu Deus
com um zelo tão grande, que poder-Lhe-ia dar tudo” Mas não cantes estas
palavras, a menos que as sintas verdadeiramente. Oh, sente-las a
sério! Não há nada que faças na tua vida porque pertences a Cristo? Não estás
ansioso, alguma vez, por mostrar o teu amor com algumas mostras[5]
expressivas? Amas aos irmãos dAquele que te amou a ti. Se houver algum
Mefiboseth em algum lado que coxeia ou está aleijado, ajuda-o por causa de
Jónatas. Se há algum pobre crente aflito, tenta chorar com ele, e leva a sua
cruz por causa dAquele que chorou por ti e levou os teus pecados.
E ainda mais, Cristão, se for certo que há uma expiação
feita pelo pecado, proclama-a, proclama-a, proclama-a; “nem todos podemos
pregar,” dirás tu; não, mas proclama-a, proclama-a. “Não poderia preparar um
sermão”; proclama-a, conta a história, comenta o mistério e a maravilha do amor
de Cristo. “Mas nunca terei uma congregação”; conta-a em tua casa, comenta-a
junto à chaminé. “Mas só tenho meninos muito pequenos”; então conta-a a eles e
deixa-os conhecer o doce mistério da cruz e a bendita história dAquele que
viveu e morreu pelos pecadores. Conta-a, porque não sabes em que ouvidos possa
cair. Conta-a frequentemente, porque assim terás uma maior esperança de
converter os pecadores a Cristo. Se careceres de talento, se não tens os dons
da oratória, sê alegre das tuas
carências e glorifica-te na tua debilidade para que o poder de Cristo descanse
sobre ti, mas de todas as maneiras, conta-a. Às vezes, alguns jovens lançam-se
a pregar, mas fariam melhor controlando as suas línguas, há muitos outros que
possuem dons e habilidades que poderiam utilizar para Cristo, mas parece-nos
que têm a língua amarrada. Tenho dito frequentemente que se alistas um jovem no
exército, ele tem sempre algo que fazer, e ele põe o seu coração nisso; mas se
o mesmo jovem se une a uma igreja, então o seu nome fica no livro de registos,
e ele foi baptizado, e assim sucessivamente, e ele pensa que não tem nada mais
que fazer a esse respeito. Irmãos, eu não gosto de ter membros na igreja que
sintam que podem descarregar a responsabilidade nuns quantos, enquanto eles
mesmos se sentam tranquilos. Essa não é a maneira de ganhar batalhas. Se na
batalha do Waterloo, nove de cada dez dos nossos soldados houvessem dito: “Bem,
não precisamos de batalhar; deixaremos que lutem uns poucos, ali estão;
deixemo-los que vão e façam tudo.” Se eles tivessem dito isto, logo teriam sido
feitos em pedaços. Todos têm de assumir o seu turno, a cavalaria e a infantaria
e a artilharia; homens com armas ligeiras e toda a classe de homens; devem
partir para a refrega; sim, e até os guardas, se são mantidos como reserva até
ao fim, ainda podem vir a ser chamados,
—“Guardas,
preparados e à carga”; e se houver alguns entre vós aqui que sejam como anciãos
ou anciãs que pensam que são como os guardas que devem ser dispensados do
conflito pesado, ainda assim, preparados e à carga, pois agora o mundo
necessita de todos vós, e posto que Cristo vos comprou com o Seu sangue,
suplico-vos que não estejais tranquilos até que tenhais brigado por Ele, e
tenhais obtido a vitória por meio de Seu nome. Proclamai a expiação; proclamai-a,
proclamai-a; com voz de trovão, proclamai-a; sim, com muitas vozes misturadas
como o som de águas rugientes; proclamai-a até que os habitantes do mais remoto
deserto tenham escutado a sua proclamação. Proclamai-a, até que não haja jamais,
nem uma choça na montanha onde não se saiba dela, nem um navio sobre o mar onde
a história não tenha sido contada. Proclamai-a, até que não haja nem mais um
beco escuro que não tenha sido iluminado pela sua luz, nem uma guarida
detestável que não tenha sido limpa pelo seu poder. Proclamai a história de
Cristo que morreu pelos ímpios.
Concluirei este sermão com uma palavra de aplicação prática
para os incrédulos. Oh incrédulo, se Deus não pode perdoar, e não perdoará os
pecados de homens arrependidos, se Cristo não assume o Seu castigo, tem a
certeza que Ele te trará a juízo. Se Cristo, o Filho de Deus, foi golpeado por
Deus ao imputar-se-Lhe o pecado, como não terá de te golpear a ti, que és Seu
inimigo, e tendo os teus próprios pecados sobre a tua cabeça? Deu a impressão
que Deus fez um juramento no Calvário —pecador,
escuta-o! —, parece que
Ele fez um juramento dizendo: “Juro pelo sangue de Meu Filho que o pecado deve
ser castigado”, e se não é castigado em Cristo por conta de vós, será castigado
em vós por causa de vós mesmos. Cristo é teu, pecador? Morreu por ti? Puseste a
tua confiança nEle? Se o tens feito, Ele morreu por ti. Dizes “Não, eu não pus
a minha confiança nEle”? Então, recorda, que se vives e morres sem fé em
Cristo, por cada palavra vã e por cada acto ilícito que tenhas feito, ponto por
ponto, e golpe por golpe, a vingança deve castigar-te.
Uma palavra adicional de aplicação prática para vós. Se
Deus tem feito a expiação em Cristo e tem aberto um caminho de salvação, qual
não será a culpa dos que tratam de abrir outro caminho; dos que dizem “Serei
bom e virtuoso; assistirei às cerimónias; eu me salvarei a mim mesmo”? Que
louco és, tens insultado a Deus no Seu ponto mais delicado, posto que tens
insultado o Seu Filho. Tens dito “Posso resolver isso, sem esse sangue”; de
facto, tens pisoteado[6] o
sangue de Cristo e tens dito “Não necessito dele”. Oh, se o pecador que se
arrepender não será condenado, com quantos terrores acumulados será condenado o
que, além da sua impenitência, empilha afrontas sobre a Pessoa de Cristo, ao
querer estabelecer a sua própria justiça. Deixa-a; deixa os teus farrapos,
nunca poderás fazer um vestido com eles; abandona o teu tesouro aos poucos
roubado; é uma falsificação; renuncia a ele. Aconselho-te que compres de Cristo
um vestido fino, para que possas estar devidamente vestido, e também ouro fino
para que possas ser rico.
E considerai isto, cada um de vós que me está ouvindo! Se
Cristo tem feito expiação pelos ímpios, então permiti que esta pergunta
circule, permiti que circule pelos corredores e pela galeria, e que ressoe em cada coração, e que seja repetida por
cada lábio: “E por que não para mim também?” “E por que não para mim também?”
Tem esperança, pecador, tem esperança; Ele morreu pelos ímpios. Se se dissesse
que morreu pelos piedosos, não haveria esperança para ti. Se estivesse escrito
que morreu pelos bons, pelos excelentes e pelos perfeitos, então não terias
nenhuma oportunidade. Mas Ele morreu pelos ímpios, e tu és um deles. Que razão
podes argumentar para concluir que Ele não morreu por ti? Escuta-me, homem;
isto é o que Cristo te diz: “Crê, e serás salvo”; isto é, confia, e serás salvo.
Põe a tua alma nas mãos dAquele que levou a tua carga sobre a cruz; confia nEle
agora. Ele morreu por ti; a tua fé é a melhor evidência para nós, e para ti é a
prova de que Cristo te comprou com o Seu sangue. Não te demores; não esperes
por chegar a casa para ofereceres uma prece. Confia agora em Cristo com toda a
tua alma. Não tens nada mais em que confiar; apoia-te nEle. Vais para baixo;
vais para baixo. As ondas estão formando redemoinhos ao teu redor e logo te vão
tragar, e ouvirás o seu gorgolejo quando te estejas afundando. Olha, Ele
estende-te a Sua mão. “Pecador,” diz-te Ele, “Eu sustentar-te-ei; ainda que as
ondas ardentes do Inferno colidam contra ti, eu livrar-te-ei delas, confia, só,
em Mim.” O que dizes a isto, pecador? Confiarás nEle? Oh minha alma, recorda o
momento em que confiei nEle pela primeira vez! Há gozo no Céu quando um pecador
se arrepende, mas dificilmente creio que seja um gozo maior ao gozo do pecador
arrependido quando encontra a Cristo pela primeira vez. Para mim foi tão
simples e tão fácil quando o soube. Só tinha de olhar e viver, só tinha de
confiar e ser salvo. Ano após ano tinha estado correndo daqui para lá, tratando
de fazer o que já tinha sido feito, para estar preparado para aquilo que não
requeria nenhuma preparação. Oh, quão feliz foi o dia em que me aventurei a
passar pela porta aberta de Sua misericórdia, sentar-me à mesa preparada de Sua
graça, e comer e beber sem perguntar nada! Oh alma, faz o mesmo! Anime-te.
Confia em Cristo, e se Ele te rechaça havendo tu confiado nEle—então a minha alma pela tua, quando nos
encontrarmos à frente, no tribunal de Deus; eu serei a tua prenda e a tua
promessa no último grande dia, se o necessitares; mas Ele não pode rechaçar,
nem rechaçará a ninguém que venha a Ele por meio da fé. Que Deus nos aceite e
nos abençoe a todos, por meio de Jesus Cristo! Ámen.
[1] Christ has no sin of his own (lit.) – “Cristo
não tem Ele próprio nenhum pecado.”
[2] s. m.
verdade banal, evidente; trivialidade. (Do ing. truism, «id.»)
[3] adj.
2 gén. que ferve; (fig.) fervoroso; ardente; tempestuoso. (Do lat. fervente,
«id.», part. pres. de fervôre, «ferver»)
[4] protestante que rejeita o
dogma da Trindade.
[5] Sinais, testemunhos
[6] transitivo direto 1. calcar
ou esmagar com os pés Ex.: pisoteou as frutas; transitivo directo 2. desqualificar
moralmente; humilhar Ex.: A sua falta de gosto pisoteia os mais sensíveis.
Notas e Tradução de Carlos
António da Rocha
****
Esta tradução é de
livre utilização, desde que a sua ortografia seja respeitada na íntegra porque
já está traduzida no Português do Novo Acordo Ortográfico e que não seja nunca
publicada nem utilizada para fins comerciais; seja utilizada exclusivamente
para uso e desfruto pessoal.
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