Agostinho de Hipona
HÁ MUITO QUE DESEJO ARDENTEMENTE MEDITAR NA TUA LEI…
Há muito que desejo ardentemente meditar na tua
Lei, e nela confessar-te a minha ciência e a minha ignorância, os primeiros
vislumbres da tua iluminação e os vestígios das minhas trevas, até que a
fraqueza seja devorada pela fortaleza. E não quero que se percam em outra coisa
as horas que me ficam livres das necessidades do alimento do corpo, e da
aplicação do espírito, e do serviço que devemos aos homens, e que não devemos,
e todavia, lhes prestamos.
Senhor meu Deus, escuta a minha oração e que a
tua misericórdia atenda o meu desejo, porque não é em meu benefício somente que
ele se inflama, mas pretende ser útil ao amor fraterno: e tu vês no meu coração
que assim é. Ofereça-te eu em sacrifício o serviço do meu pensamento e da minha
língua, e dá-me tu aquilo que hei-de oferecer-te. Pois eu sou pobre e
necessitado, tu rico para com todos os que te invocam e, embora isento de
cuidados, tomas-nos a teu cuidado.
Suprime dos meus lábios, dentro e fora de mim,
toda a temeridade e toda a mentira. Que as tuas Escrituras sejam para mim
castas delícias, que eu não me engane nelas, nem com elas engane os outros.
Senhor, escuta-me, e tem compaixão de mim,
Senhor meu Deus, luz dos cegos e força dos fracos e, ao mesmo tempo, luz dos
que vêem e força dos fortes, escuta a minha alma, e ouve-a clamando do fundo do
abismo. Pois se os teus ouvidos não estiverem também presentes no abismo, para
onde iremos? Para onde dirigiremos o nosso clamor? Teu é o dia e tua é a noite:
a um aceno teu, os instantes voam.
Concede-nos, então, tempo para meditarmos nos
segredos da tua Lei e não a feches aos que batem à sua porta. Nem em vão
quiseste que se escrevessem os mistérios obscuros de tantas páginas, ou esses
bosques não têm os seus veados que neles se abrigam e recompõem, passeiam e se
apascentam, se deitam e ruminam. Ó Senhor, aperfeiçoa-me e revela-me esses
bosques. A tua voz é a minha alegria, a tua voz suplanta a afluência de
prazeres. Dá-me o que amo: pois eu amo, e isso foste tu que mo deste. Não
abandones os teus dons, nem desprezes esta tua erva sequiosa. Que eu te
confesse tudo o que encontrar nos teus Livros, e ouça a voz do teu louvor, e
possa inebriar-me de ti e sondar as maravilhas da tua Lei, desde o princípio,
em que fizeste o céu e a terra, até ao reino, contigo perpétuo, da tua Cidade
Santa.
Agostinho de Hipona
In “Confissões”
Sem comentários:
Enviar um comentário