Os mortos bem-aventurados
Sermão de Jonathan Edwards
O apóstolo Paulo apresenta uma razão por que ele
continuava com tamanha coragem e firmeza imóveis. no meio a tantas labutas,
sofrimentos e perigos, no serviço do Senhor, pelos quais os seus inimigos, os
falsos mestres entre os coríntios, às vezes reprovavam-no por estar fora de si
e impulsionado por um tipo de loucura. Na parte final do capítulo precedente,
ele informa os coríntios cristãos que a razão por que agia assim, era que ele
cria firmemente nas promessas que Jesus fizera aos seus servos fiéis de uma
recompensa gloriosa e eterna, e sabia que estas aflições presentes eram leves e
apenas momentâneas em comparação àquele mui excedente e eterno peso de glória.
Neste capítulo, ele prossegue insistindo na razão da sua constância no
sofrimento e exposição à morte na obra do ministério, até mesmo o estado mais
feliz que ele esperava depois da morte. Este é o assunto do texto.
A alma do cristão, quando deixa o corpo, vai para estar com Cristo. Isto
ocorre nos seguintes aspectos:
I. A alma do cristão vai habitar com a natureza humana glorificada de
Cristo no mesmo domicílio abençoado.
Há um lugar, uma região particular da criação exterior, para onde Cristo
foi e permanece. Este lugar é o céu dos céus, um lugar além de todos os céus
visíveis. “Ora, isto — ele subiu — que é, senão que também, antes, tinha
descido às partes mais baixas da terra? Aquele que desceu é também o mesmo que
subiu acima de todos os céus, para cumprir todas as coisas” (Ef 4: 9,10). É o
mesmo lugar que o apóstolo chama de terceiro céu: computando o céu aéreo como o
primeiro céu, o céu estrelado como o segundo e o céu mais alto como o terceiro.
Este é o domicílio dos anjos santos; eles são chamados “os anjos dos céus”, “os
anjos que estão no céu”, “os anjos de Deus no céu.” Está escrito que eles
sempre vêem a face do “Pai que está no céu.”
Noutra passagem, eles são representados estando diante do trono de Deus
ou rodeando o Seu trono no céu, e de lá enviados, descendo com mensagens para
este mundo. É para lá que a alma do santo é conduzida quando morre. Ela não
fica num domicílio distinto do céu superior, um lugar de descanso, no qual é
guardada até ao dia do juízo, o que uns chamam o Hades dos felizes; mas vai
diretamente para o céu. Esta é a casa dos santos, sendo a casa de seu Pai. Eles
são “peregrinos e estrangeiros” na terra, e esta é a “outra e melhor pátria”
para a qual estão viajando. Esta é a cidade à qual eles pertencem: “A nossa
cidade [cidadania, como significa corretamente a palavra] está nos céus...” (Fp
3-20). Este é indubitavelmente o lugar ao qual o apóstolo se refere quando diz:
“Nós estamos dispostos a abandonar a nossa primeira casa, o corpo, e habitar na
mesma casa, cidade ou país, em que Cristo habita”, que é a significação
adequada das palavras no original. O que pode ser esta casa, cidade ou país,
senão a casa que é falada noutra passagem como a sua casa, a casa do seu Pai, a
cidade e país aos quais eles adequadamente pertencem, para a qual eles estão viajando
o tempo em que continuam neste mundo, e a casa, cidade e país, onde sabemos que
está a natureza humana de Cristo. Este é o descanso dos santos, aqui o seu
coração está enquanto vivem na terra, e aqui está o seu tesouro, a “herança
incorruptível, incontaminável e que se não pode murchar, guardada nos céus para
vós”, que está designada para eles, reservada no céu (1Pe 1:4). Eles nunca
podem ter o seu descanso adequado e pleno até que cheguem ali. Sem dúvida a
alma, quando ausente do corpo (as Escrituras representam-na num estado de
descanso perfeito), chega ali.
Os dois santos, Enoch e Elias, que deixaram este mundo para, sem morrerem,
entrarem no descanso no outro mundo, foram para o céu. Elias foi visto subindo
ao céu, como Cristo; e há toda razão para pensarmos que foram para o mesmo
lugar de descanso, para o qual os santos vão quando pela morte deixam o mundo.
Moisés, quando morreu no topo do monte, subiu para o mesmo domicílio glorioso
com Elias, que subiu sem morrer. Eles são companheiros no outro mundo, conforme
apareceram juntos na transfiguração de Jesus. Eles estavam juntos naquele
momento com Cristo no monte, quando houve uma representação da sua glória no
céu. Não há que duvidar de que eles também estavam juntos com Ele mais tarde, quando
com efeito Ele foi glorificado no céu. Lá, incontestavelmente, estava a alma de
Estêvão, que subiu quando ele expirou. As circunstâncias da sua morte demonstram
este facto, segundo o relato que temos. “Mas ele, estando cheio do Espírito
Santo e fixando os olhos no céu, viu a glória de Deus e Jesus, que estava à
direita de Deus, e disse: Eis que vejo os céus abertos e o Filho do
Homem [ou seja, Jesus na sua natureza humana], que está em pé à mão direita de
Deus. Mas eles gritaram com grande voz, taparam os ouvidos e arremeteram
unânimes contra ele. E, expulsando-o da cidade, o apedrejavam. [...] E
apedrejaram a Estêvão, que em invocação dizia: Senhor Jesus, recebe o meu
espírito'' (At 7: 55-59). Antes da sua morte, ele teve uma visão extraordinária
da glória que o Salvador havia recebido no céu, não só para si
próprio, mas para todos os seus seguidores fiéis, de modo que Estêvão se
encorajasse com a esperança desta glória para alegremente entregar a vida por
Ele. Por conseguinte, ele morre nessa esperança, dizendo: “Senhor Jesus, recebe
o meu espírito''. Com estas palavras ele irrefutavelmente queria dizer: “Recebe
o meu espírito, Senhor Jesus, para estar contigo nessa glória em que te vejo
agora no céu à mão direita de Deus.”
Para lá foi a alma do ladrão penitente na cruz. Cristo disse-lhe: “Em verdade
te digo que hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23:43). O paraíso é o terceiro
céu mencionado em 2 Coríntios 12: 2-4. O que no versículo 2 é chamado o
terceiro céu, no versículo 4 é chamado paraíso. As almas dos apóstolos e
profetas estão no céu, como está claro pelas palavras: “Alegra-te sobre ela, ó
céu, e vós, santos apóstolos e profetas” (Ap 18.20). A Igreja de Deus é de vez
em quando diferenciada nas Escrituras com estas duas partes: a parte que está
no céu e a que está na terra — “Jesus Cristo, do qual toda a família nos céus e
na terra toma o nome” (Ef 3:14,15). “E que, havendo por ele feito a paz pelo
sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas,
tanto as que estão na terra como as que estão nos céus” (Cl 1:20). Que “coisas
que estão nos céus” são essas pelas quais a paz foi feita mediante o sangue da
cruz de Cristo, e que por Ele reconciliou a Deus, senão os santos nos céus? Do
mesmo modo lemos sobre Deus “tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na dispensação
da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra”
(Ef 1.10). Os “espíritos dos justos aperfeiçoados” estão na mesma “cidade do
Deus vivo” com os “muitos milhares de anjos” e “Jesus, o Mediador de uma nova
aliança”, como é evidente. A Igreja de Deus é chamada na Escritura pelo nome de
Jerusalém, e o apóstolo fala da Jerusalém “que é de cima” ou 'que está nos céus”
como a mãe de todos nós; mas se nenhuma parte da Igreja está no céu, ou
ninguém, senão Enoque e Elias, então não é provável que a Igreja fosse chamada
a Jerusalém que está no céu.
II. A alma do cristão vai habitar à vista imediata, plena e constante de
Cristo.
Quando estamos ausentes de nossos queridos amigos, eles estão-nos fora
de vista, mas quando estamos com eles, temos a oportunidade e satisfação de
vê-los. Enquanto os santos estão no corpo e ausentes do Senhor, sob vários
aspectos Ele está fora da nossa vista. “O qual, não o havendo visto, amais; no
qual, não o vendo agora, mas crendo, vos alegrais com gozo inefável e glorioso”
(1Pe 1:8). Eles têm neste mundo uma visão espiritual de Cristo, mas vêem “por espelho
em enigma” e com grandes interrupções; mas no céu eles o vêem “face a face.”
São bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus. A visão
beatífica que eles têm de Deus está em Cristo, que é o brilho ou fulgência da
glória de Deus, pela qual a sua glória brilha no céu, à vista dos santos e
anjos lá como também aqui na terra. Este é o Sol da Justiça, que não só é a luz
deste mundo, mas também o sol que ilumina a Jerusalém celestial, por cujos raios
luminosos a glória de Deus brilha, para a iluminação e felicidade de todos os
habitantes gloriosos. “A glória de Deus a tem alumiado, e o Cordeiro é a sua
lâmpada” (Ap 21:23) Ninguém vê Deus Pai imediatamente. Ele é o Rei eterno,
imortal, invisível. Cristo é a imagem desse Deus invisível pela qual Ele é
visto por todas as criaturas eleitas. O Filho unigénito que está no seio do
Pai, Ele O declarou e O manifestou.
Ninguém jamais viu o Pai, somente o Filho; e ninguém mais vê o Pai de
outro modo senão pela revelação que o Filho faz dEle. No céu, os espíritos dos
justos tornados perfeitos vêem-nO como Ele é. Eles vêem a Sua glória. Eles vêem
a glória da Sua natureza divina, que consiste em toda a glória da deidade, a
beleza de todas as Suas perfeições; a Sua grande majestade e poder
Todo-poderoso; a Sua sabedoria, santidade e graça infinitas. Eles vêem a beleza
da Sua natureza humana glorificada e a glória que o Pai Lhe deu, como
Deus-Homem e Mediador. Para este fim, Jesus desejou que os santos estivessem
com Ele, para que vissem a Sua glória.
Quando a alma do santo deixa o corpo para ir estar com Cristo, ela vê a
glória da obra de Redenção que “os anjos desejam bem atentar.” Os santos no céu
têm a visão mais clara da profundidade insondável da sabedoria e conhecimento
de Deus e das demonstrações mais brilhantes da pureza e santidade de Deus que
aparecem nessa obra. Eles vêem de uma maneira muito mais clara do que os santos
aqui “qual seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade e
conhecer o amor de Cristo, que excede todo o entendimento” (Ef 3:18,19). Assim
como eles vêem as riquezas e a glória indizíveis da graça de Deus, eles
entendem claramente o amor eterno e imensurável de Cristo por eles em
particular. Em resumo, eles vêem tudo em Cristo, o que tende a acender e
satisfazer o amor da maneira mais clara e gloriosa, sem escuridão ou ilusão,
sem impedimento ou interrupção. Agora os santos, enquanto no corpo, vêem um
pouco da glória e do amor de Cristo; como nós, no alvorecer da manhã, vemos um pouco
da luz refletida do sol misturada com a escuridão. Mas quando separados do
corpo, eles vêem o Redentor glorioso e amoroso, assim como vemos o sol quando ele
está acima do horizonte, pelos seus raios diretos num hemisfério claro e com
dia perfeito.
III. A alma do cristão é levada a uma conformidade perfeita com Cristo e
união com Ele.
A sua conformidade espiritual começou enquanto a alma estava no corpo.
Aqui, “refletindo, como um espelho, a glória do Senhor, [ela é transformada] de
glória em glória, na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor” (2Co 3:18).
Mas quando a alma do cristão vai vê-lo como Ele é no céu, então torna-se como
Ele em outro modo. Essa visão perfeita aniquilará todos os restos da
deformidade e dissemelhança pecadora, assim como toda a escuridão é aniquilada diante
do pleno resplendor da luz meridiana do sol. É impossível que o menor grau de
obscuridade permaneça diante de tal luz; assim, é impossível que o menor grau
de pecado e deformidade espiritual permaneça diante de tamanha visão da beleza
espiritual e glória de Cristo, como a que os santos desfrutam no céu. Quando
vêem o Sol da Justiça sem nuvens, eles mesmos brilham como o sol e serão como
sóis sem mancha. Então Cristo apresenta os santos para si mesmo em beleza
gloriosa, “sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e
irrepreensível” (Ef 5:27), e tendo santidade sem mancha. Então a união deles
com Cristo é aperfeiçoada. Esse processo também é iniciado neste mundo. A união
relativa é iniciada e aperfeiçoada imediatamente quando a alma aceita Jesus
pela fé. A verdadeira união, que consiste na união do coração e do afeto, é
iniciada neste mundo e aperfeiçoada no seguinte.
A união do coração do crente com Cristo é iniciada quando o coração é
atraído a Cristo pela descoberta primeira da sua excelência divina na conversão.
Consequente a isto, é estabelecido uma união vital com Cristo por meio da qual
o crente se torna um ramo vivo da videira verdadeira, vivendo pela comunicação
da seiva e líquido vital do tronco e da raiz; um membro do Corpo místico de
Cristo, que vive pela comunicação das influências vitais e espirituais da
cabeça e pela participação da própria vida de Cristo. Mas, enquanto os santos
estão no corpo, há grande distância remanescente entre Cristo e eles. A união
vital é muito imperfeita e, assim, é a comunicação da vida espiritual e da
influência vital. Há muito entre Cristo e os crentes que os mantêm separados,
muito pecado residente; muita tentação; um corpo de molde pesado e delicado; e
um mundo de objetos carnais para manter afastada a alma de Cristo e dificultar
uma coalescência perfeita. Mas quando a alma deixa o corpo, todos estes impedimentos
são removidos. Todo muro de separação é derrubado, todo impedimento é retirado
do caminho e toda a distância acaba; o coração é completa e perfeitamente
atraído e firme e eternamente unido a Cristo mediante uma visão perfeita da sua
glória. A união vital é levada à perfeição. A alma vive perfeitamente em
Cristo, sendo perfeitamente cheia com o seu Espírito e animada pela sua
influência vital, vivendo como se fosse somente pela vida de Cristo, sem
qualquer lembrança da morte espiritual ou da vida carnal.
IV. A alma do cristão desfruta um intercurso e convivência gloriosas e imediatas
com Cristo.
Enquanto estamos presentes com os nossos amigos, temos oportunidade de
convivência livre e imediata com eles, a qual não temos quando ausentes. Então,
por causa do intercurso muito mais livre, perfeito e imediato com Cristo que os
santos desfrutam quando ausentes do corpo, eles são representados adequadamente
a estar presentes com Ele.
O intercurso mais íntimo torna-se a relação na qual os santos se firmam
em Jesus Cristo, e sobretudo torna-se a reunião perfeita e gloriosa para a qual
eles serão levados com Ele no céu. Eles não são meramente seus servos, mas seus
amigos, irmãos e companheiros; sim, eles são o Cônjuge de Cristo. Eles são os
esposados ou noivos de Cristo enquanto no corpo, mas quando vão para o céu,
chega a hora do casamento com Ele, e o Rei leva-os para o seu palácio. Cristo,
quando estava neste mundo, conversou da maneira mais amigável com os discípulos
e permitiu que um deles se inclinasse no seu peito, mas eles terão a permissão
muito mais completa e livre de conversar com Ele no céu.
Embora Cristo esteja ali num estado de exaltação gloriosa, reinando na
majestade e glória do soberano Senhor e Deus do céu e da terra, dos anjos e
homens, contudo esta condição não impedirá a intimidade e liberdade do
intercurso, mas, antes, a promoverá. Ele foi exaltado, não só para si mesmo,
mas para eles. Ele é o Cabeça sobre todas as coisas no interesse deles, para
que eles sejam exaltados e glorificados; e, quando eles forem para o céu, onde
Ele está, eles serão exaltados e glorificados com Ele e não serão mantidos a
maior distância. Eles estarão indizivelmente mais aptos para esta situação, e
Cristo estará em circunstâncias mais adequadas para lhes dar esta
bem-aventurança. A visão da grande glória do seu Amigo e Redentor não vai infundir-lhes
temor respeitoso e mantê-los a certa distância, deixando-os com medo de se
aproximarem; mas, pelo contrário, com mais vigor os atrairá, os animará e os
enredará à liberdade santa. Eles saberão que Ele é o seu Redentor e Amigo
amado, o mesmo que os amou com um amor agonizante e, pelo seu sangue, os remiu
para Deus. “Sou eu; não temais” (Mt 14:27). “Não temas; eu sou [...] o que
vive; fui morto, mas eis aqui estou vivo” (Ap 1:17,18). A natureza desta glória
de Cristo que eles verão será tamanha que os atrairá e os encorajará, pois eles
não só verão a majestade e grandeza infinitas, mas também a graça, condescendência,
gentileza e doçura infinitas, iguais à sua majestade. Ele aparece no céu como “o
Leão da tribo de Judá” (Ap 5.5), e também como “o Cordeiro que está no meio do
trono.” Este Cordeiro será o pastor que “os apascentará e lhes servirá de guia
para as fontes das águas da vida” (Ap 7:17).
A visão da majestade de Cristo não lhes causará terror, mas só servirá
para exalçar o prazer e a surpresa. Quando Maria Madalena estava a ponto de
abraçar Jesus, cheia de alegria por vê-Lo vivo depois da crucificação, Jesus
proibiu-a que o fizesse naquele momento, porque Ele ainda não havia ascendido. “Disse-lhe
Jesus: Maria! Ela, voltando-se, disse-lhe: Raboni (que quer dizer Mestre)!
Disse-lhe Jesus: Não me detenhas, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai
para meus irmãos e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e
vosso Deus” (Jo 20:16,17). Foi como se Ele tivesse dito: “Não é este o tempo e
o lugar para essa liberdade que o teu amor deseja de mim. Isso está designado para
o céu, depois de minha ascensão. Eu vou para lá, e tu que és minha verdadeira
discípula deves, assim como meus irmãos e companheiros, logo estar lá comigo na
minha glória.” Esse é o lugar designado para as expressões mais perfeitas de
complacência e estima. Por conseguinte, os santos no céu encontram Jesus
manifestando essas riquezas infinitas de amor para com eles, as quais Ele
sentia desde a eternidade; e eles são capazes de expressar o amor que têm por
Ele de uma maneira infinitamente melhor do que quando estavam no corpo. Assim,
eles serão eternamente envolvidos pelos raios incalculavelmente luminosos,
brandos e doces do amor divino, recebendo eternamente a luz e para sempre refletindo-a
para a fonte.
V. A alma do cristão é recebida numa comunhão gloriosa com Cristo na sua
bem-aventurança.
Os santos no céu têm comunhão com Cristo na sua glória e bem-aventurança
no céu nos seguintes aspectos:
1. Os santos no céu participam com Ele das delícias inefáveis que Ele tem
no céu no prazer do seu Pai.
Quando Cristo ascendeu ao céu, Ele foi recebido a uma bem-aventurança peculiar
no prazer do Pai que, na paixão, se escondeu da face de Jesus; este prazer
tornou-se relação na qual Ele estava com o Pai; e era uma recompensa satisfatória
pelo grande e difícil serviço que Ele executara na terra. Então Deus mostrou-Lhe
o caminho da vida, e trouxe-O à sua presença, onde há abundância de alegrias,
para se assentar à sua mão direita, onde há prazeres eternamente, como está
escrito acerca de Cristo (veja SI 16:11). Então o Pai fê-Lo o mais abençoado
para sempre; Ele fê-Lo muitíssimo contente com o seu semblante. Os santos pela
união com Cristo participam da relação filial dEle com o Pai e são herdeiros
com Ele da felicidade no prazer do Pai, como parece estar insinuado pelo
apóstolo e pelo salmista: “Eles se fartarão da gordura da tua casa, e os farás
beber da corrente das tuas delícias; porque em ti está o manancial da vida; na
tua luz veremos a luz” (SI 36:8,9). Os santos terão prazer participando com Cristo
no seu prazer e verão luz na sua luz. Eles participarão com Cristo do mesmo rio
de prazer, beberão da água da vida e do mesmo vinho novo no Reino do Pai. Esse
vinho novo é especialmente aquela alegria e felicidade que Cristo e os verdadeiros
discípulos participarão juntos na glória; que é a compra do sangue de Cristo ou
a recompensa da sua obediência até a morte. Cristo, na sua ascensão ao céu,
recebeu prazeres perpétuos à mão direita do Pai no prazer do amor do Pai como
recompensa da sua obediência até a morte. Mas a mesma retidão é considerada
tanto para a Cabeça quanto para os membros: e ambos terão comunhão na mesma
recompensa, cada um de acordo com sua capacidade distinta.
Os santos, no céu, participaram com Cristo do seu prazer com o Pai. Este
facto manifesta a excelência transcendente da felicidade deles e a realidade
deles serem admitidos a um privilégio imensamente mais elevado em glória do que
os anjos.
2. Os santos no céu participam com Cristo da glória daquele domínio ao qual
o Pai o exaltou.
Os santos, quando ascendem ao céu e são levados a sentarem-se junto com
Cristo nas regiões celestiais, são exaltados para reinar com Ele. Por meio dEle
são feitos reis e sacerdotes, e reinam com Ele e nEle sobre o mesmo Reino. Como
o Pai lhe designou um Reino, assim Ele o designou para eles. O Pai designou o
Filho para reinar sobre seu próprio Reino, e o Filho designa os seus santos
para reinar no seu. Os santos no céu estão com os anjos, os ministros do Rei,
por quem Ele administra os assuntos do Reino e que estão subindo e descendo
continuamente do céu à terra e são empregados dia-a-dia como espíritos
ministradores a cada membro individual da Igreja; ao lado da ininterrupta
subida de almas dos santos que morrem de todas as partes da Igreja militante.
Então os santos têm vantagem muito maior de verem o estado do Reino de Cristo e
as obras da nova criação, do que tinham quando estavam neste mundo, como alguém
que sobe ao topo de uma alta montanha tem maior vantagem de ver a face da terra
neste mundo, do que tinha quando estava num vale profundo ou numa floresta
espessa, cercado por todos os lados com as coisas que impedem e limitam a
visão.
Outrossim os santos não vêem tudo como espectadores indiferentes ou
desinteressados mais que o próprio Cristo é um espectador desinteressado. A
felicidade dos santos no céu consiste, em grande parte, cm ver a glória de Deus
que aparece na obra da Redenção, pois é principalmente por isso que Deus
manifesta sua glória, a glória da sua sabedoria, santidade, graça e outras
perfeições, aos santos e anjos, conforme é evidente por muitas escrituras. Por
conseguinte, não há que duvidar que muito da felicidade deles consiste em ver o
progresso desta obra em sua aplicação, sucesso e os passos pelos quais o poder
e sabedoria infinitos os levam à sua meta. Eles estão com vantagens
indescritivelmente maiores de desfrutarem o progresso desta obra do que nós,
visto que eles estão em maiores vantagens de ver e entender os passos
maravilhosos que a sabedoria divina dá em tudo o que é feito e o fim glorioso
que Ele obtém; bem como a oposição que Satanás faz e como ele é confundido e
vencido. Eles vêem melhor a conexão de um evento com outro e a ordem de todas
as coisas que sucedem na Igreja, em épocas diferentes, que nos parecem confusas.
Não apenas vêem estas coisas e regozijam-se nelas como visão gloriosa e bela,
mas o fazem como pessoas interessadas, assim como Cristo está interessado,
possuindo estas coisas em Cristo e reinando com Ele no seu Reino. O sucesso de
Cristo na sua obra de redenção, em trazer as almas para si mesmo, aplicando os
benefícios salvadores pelo seu Espírito e o avanço do Reino de graça no mundo,
é a recompensa prometida a Ele pelo Pai no concerto de redenção, pelo serviço
duro e difícil que Ele executou quando na forma de servo. Mas os santos
participarão com Ele da alegria desta recompensa, pois esta obediência, que é
recompensada dessa forma, lhes é computada, visto que são seus membros.
Assim Abraão desfruta estas coisas quando acontecem, as quais lhe foram
há muito prometidas, vistas por ele de antemão e nas quais se regozijou. Ele
desfrutará o cumprimento da promessa de que todas as famílias da terra serão
abençoadas na sua semente, quando esta for completa. Todos os antigos
patriarcas que morreram crendo nas promessas das coisas gloriosas a serem
cumpridas neste mundo, que não tinham recebido as promessas, mas as
vislumbravam, foram persuadidos por elas e as abraçaram, desfrutam-nas de facto
quando são cumpridas. Davi contemplou e desfrutou o cumprimento dessa promessa
em seu devido tempo, que lhe fora feita muitas centenas de anos antes e era
toda a sua salvação e todo o seu desejo. Assim Daniel se levantará em sua sorte
no fim dos dias apontados por sua própria profecia. Assim os santos de outrora que
morreram na fé, sem terem recebido a promessa, são aperfeiçoados e têm a fé
coroada pelas coisas melhores realizadas nestes últimos dias do Evangelho, que
eles vêem e desfrutam em seus dias.
3. Os santos no céu têm comunhão com Cristo no serviço bem-aventurado e
eterno de glorificar o Pai.
Quando Cristo instituiu a Ceia do Senhor e comeu e bebeu com os discípulos
à mesa, dando-lhes nesse particular uma representação e penhor do futuro
banquete com Ele e da bebida do novo vinho no Reino do Pai celeste, nesse
momento Ele os conduziu em seus louvores a Deus no hino que cantaram. Não há
que duvidar que da mesma forma Ele conduz os discípulos glorificados ao céu.
Davi, como o amado salmista de Israel, conduziu a grande congregação do povo de
Deus nos cânticos de louvor. Nisto, como em outras coisas inumeráveis, ele
tipifica a Cristo, frequentemente mencionado na Escritura pelo nome de Davi.
Muitos dos salmos que Davi escreveu eram cânticos de louvor que ele, pelo
espírito de profecia, proferiu em nome de Cristo, como Cabeça da Igreja e
conduzindo os santos nos louvores. Cristo no céu conduz a assembleia gloriosa
nos louvores a Deus como Moisés conduziu a congregação de Israel pelo mar Vermelho,
o que está implícito nas palavras: “Eles cantam o cântico de Moisés e o cântico
do Cordeiro.” João nos fala que ouviu uma voz sair do trono dizendo: “Louvai o
nosso Deus, vós, todos os seus servos, e vós que o temeis, tanto pequenos como
grandes” (Ap 19:5). Quem proferiu esta voz que saiu do trono, senão “o Cordeiro
que está no meio do trono” conclamando a assembleia gloriosa dos santos a
louvar o seu Pai e Pai deles, o seu Deus e Deus deles? Qual seja a consequência
desta voz, ficamos sabendo nas seguintes palavras: “E ouvi como que a voz de
uma grande multidão, e como que a voz de muitas águas, e como que a voz de grandes
trovões, que dizia: Aleluia! Pois já o Senhor, Deus Todo-poderoso, reina” (Ap
19:6).
O assunto que estamos considerando pode ser utilmente aplicado a modo de
exortação. Que sejamos todos exortados seriamente a buscar esse grande
privilegio do qual falamos, que quando ''[deixamos] este corpo, [vamos] habitar
com o Senhor” (2Co 5:8). Não podemos permanecer para sempre neste tabernáculo
terrestre. Ele é muito frágil e logo se deteriorará e cairá, e está
continuamente sujeito a ser vencido por inumeráveis meios. Nossa alma em breve
tem de deixar o corpo e entrar no mundo eterno. Quão infinitamente grande será
o privilégio e felicidade dos que, naquele momento, irão estar com Cristo na
sua glória, da maneira como foi representada! O privilégio dos doze discípulos
era grande por estarem constantemente com Cristo como sua família no estado de
sua humilhação. O privilégio dos três discípulos era grande por estarem com Ele
no monte da Transfiguração, onde lhes foi mostrado uma ténue semelhança da
futura glória dEle no céu, como eles viram seguramente no atual estado fraco, frágil
e pecador. Eles ficaram grandemente encantados com o que viram e desejosos de
fazer tabernáculos para morar neles e não descer mais do monte. Também foi
grande o privilégio de Moisés quando esteve com Cristo no monte Sinai e lhe
pediu que mostrasse a sua glória, e ele o viu pelas costas quando Ele passou e
o ouviu proclamar seu nome. Mas o privilégio de que falamos não é infinitamente
maior? O privilégio de estarmos com Cristo no céu onde Ele se assenta no trono,
como o Rei dos anjos e o Deus do universo, brilhando como o Sol daquele mundo
de glória — para habitarmos na visão plena, constante e perpétua da sua beleza
e brilho, conversarmos com Ele livre e intimamente e desfrutarmos seu amor inteiramente,
como amigos e irmãos, compartilharmos com Ele no prazer e gozo infinitos que
Ele tem no prazer do Pai, assentarmo-nos com Ele no trono, reinarmos com Ele na
posse de todas as coisas, participarmos com Ele da glória da sua vitória sobre
os inimigos e o progresso do seu Reino no mundo e unirmo-nos com Ele nos
alegres cânticos de louvor ao seu Pai e nosso Pai, ao seu Deus e nosso Deus,
para sempre e sempre. Não é este um privilégio digno de ser buscado?
Agora, como execução veemente desta exortação, eu tiraria lições proveitosas
dessa dispensação aflitiva da providência santa de Deus, que é a ocasião de
nossa reunião neste momento — a morte do eminente servo de Jesus Cristo, cujo
enterro deve ser cuidado neste dia. juntamente com o que era observável nele,
na vida e na morte.
Nesta dispensação da providência, Deus nos faz lembrar da nossa mortalidade
e nos avisa que o tempo está próximo, quando então estaremos “ausentes do corpo”
e “devemos comparecer”, como o apóstolo observa dois versículos mais à frente
no texto: “Porque todos devemos comparecer ante o tribunal de Cristo, para que
cada um receba segundo o que tiver feito por meio do corpo, ou bem ou mal” (2Co
5:10).
Nele, cuja morte somos chamados a considerar e tirar lições proveitosas,
temos não só uma instância de mortalidade, mas também, como possuímos toda
razão imaginável para concluir, uma instância de alguém que, estando ausente do
corpo, está presente com o Senhor. Disto ficaremos convencidos se considerarmos
a natureza da experiência na ocasião de sua conversão, a natureza e curso dos
exercícios interiores a partir daquela data, sua conversação exterior e prática
de vida, ou a estrutura e comportamento durante todo o longo tempo em que ele
encarou a morte frente a frente.
Suas convicções de pecado que precedem suas primeiras consolações em
Cristo, como consta num relato escrito que ele deixou dos exercícios e experiências
interiores, eram sumamente profundas e completas. Suas dificuldades e tristezas
que surgem de um senso de culpa e miséria eram muito grandes e continuamente
longas, mas, não obstante, sãs e racionais, não consistindo em pavores
instáveis, violentos e irresponsáveis e perturbações da mente; mas surgindo das
mais sérias considerações e de uma iluminação clara da consciência para
discernir e considerar o verdadeiro estado das coisas. A luz entrou em sua
mente na conversão, e as influências e exercícios para os quais sua mente foi
sujeita naquele momento mostram-se muito agradáveis à razão e ao Evangelho de
Jesus Cristo. A mudança foi muito grande e notável, contudo sem a aparência de impressões
fortes na imaginação, de voos súbitos de afetos ou de emoções veementes da
natureza animal. Isso foi assistido com visões justas da suprema glória do Ser
divino, consistindo na dignidade e beleza infinitas das perfeições da sua
natureza e da excelência transcendente do caminho de salvação por Cristo Jesus.
Isto sucedeu cerca de oito anos atrás, quando ele tinha vinte e um anos de
idade.
Deus santificou e formou para seu uso este vaso, que Ele designou fazer
eminentemente um vaso de honra na sua casa e o qual fizera de grande
capacidade, dotando-o de habilidades e dons naturais muito incomuns. Ele era
instância singular de uma invenção pronta, eloquência natural, expressão
fluente, apreensão vivaz, discernimento rápido, memória forte, génio
penetrante, pensamento profundo e claro e juízo perspicaz. Ele tinha um
discernimento exato; sua compreensão era, se posso expressá-la, de um faro
rápido, forte e distintivo; sua aprendizagem era muito considerável. Ele tinha
grande gosto em aprender e se aplicava aos estudos de maneira tão íntima quando
estava na faculdade, que muito lhe prejudicou a saúde e foi obrigado, por conta
disso, durante algum tempo, a deixar a faculdade, desistir de seus estudos e
voltar para casa. Ele era reputado alguém que excedia em aprendizagem naquela
sociedade.
Ele tinha conhecimento extraordinário das pessoas, como também das
coisas, e perspicácia incomum da natureza humana. Excedia muitos que já conheci
no poder de comunicar os pensamentos e tinha talento peculiar de acomodar-se às
capacidades, temperamentos e circunstâncias daqueles a quem instruía ou
aconselhava.
Ele tinha dons extraordinários para o púlpito. Nunca tive oportunidade de
ouvi-lo pregar, mas muitas vezes o ouvi orar. Acho que sua maneira de se
dirigir a Deus e de se expressar diante dEle era quase inimitável, facto que
raramente vi igual. Ele se exprimia com propriedade e pertinência exatas em
expressões significantes, fluentes e pungentes, com tamanha demonstração de
sinceridade, reverência e solenidade, e tão grande distância de toda afetação,
quanto a esquecer a presença da audiência e estar na presença imediata de um
grande e santo Deus, que poucas vezes vi paralelo. Seu modo de pregar, sobre o
qual muitas vezes ouvi bons juizes referirem-se, era não menos excelente, sendo
claro, instrutivo, natural, vigoroso, comovente, penetrante e convincente. Ele repugnava
o ruído afetado e a impetuosidade violenta no púlpito, e contudo tinha grande
aversão de uma entrega tediosa e fria, quando o assunto requeria afeição e
avidez. Suas experiências das influências santas do Espírito de Deus foram
grandes não só primeiramente na conversão, mas também continuaram assim num
curso permanente. Este facto evidencia-se num diário que ele mantinha de seus
exercícios interiores desde o tempo em que se converteu até o momento em que
ficou incapacitado pela queda de forças poucos dias antes de morrer. A mudança
que ele estimava como sua conversão foi não só uma grande mudança de suas
visões, afetos e estrutura de pensamento, mas, evidentemente, o começo dessa
obra de Deus no seu coração, que Deus continuou fazendo de maneira muito maravilhosa
desde aquele tempo até o dia em que morreu.
Assim como seu aspecto interior mostrou-se ser do tipo certo e era muito
notável quanto ao grau, seu comportamento e prática externas eram igualmente
agradáveis. Em toda a sua trajetória, ele agiu como alguém que tinha vendido
tudo por Cristo, dedicado-se completamente a Deus, feito a glória dEle o seu
mais alto fim e estava determinado a gastar todo o tempo e força neste
propósito. Ele era ativo na religião da maneira certa, não meramente ou
principalmente em sua língua, para professá-la e falar dela, mas ativo na obra
e matéria da religião. Ele não era um daqueles que procuram esquivar-se da cruz
para alcançar o céu na indulgência da facilidade e indolência. São
provavelmente sem paralelo hoje em dia nesta parte do mundo sua vida de labor e
abnegação, os sacrifícios que fez e a prontidão e constância com que despendeu
suas forças e todo o seu ser para promover a glória do Redentor. Muito disso
pode ser percebido por aquele que lê seu jornal impresso, porem muito mais se
aprendeu através de longas e estreitas relações com ele e examinando o diário
desde sua morte, o qual ele de propósito escondeu no que publicou.
Não menos extraordinário era sua constante tranquilidade, paz, certeza e
alegria em Deus, durante o longo tempo em que olhava a morte face a face sem a
menor esperança de recuperação, continuando sem interrupção até os últimos
momentos em que a enfermidade muito sensivelmente atacava dia a dia seus órgãos
vitais e muitas vezes o levava ao estado no qual ele se considerava — e outros
também — estar morrendo. Os pensamentos da aproximação da morte nunca pareciam
ao menos desalentá-lo, mas antes o encorajavam e divertiam-lhe o humor. Quanto
mais perto a morte chegava, mais desejoso ele parecia de morrer. Pouco tempo
antes de morrer, ele disse que “a consideração do dia da morte e o Dia do Juízo
há muito tinha[lhe] sido peculiarmente doce.”
Ele parecia ter extraordinários exercícios de resignação à vontade de Deus.
Certa vez, ele me contou que “Tinha ansiado pelo derramamento do Espírito Santo
de Deus e pelos tempos gloriosos da Igreja e esperado a sua proximidade; e
desejaria viver para promover a religião nesta época, se essa tivesse sido a
vontade de Deus.” “Mas”, disse ele, “estou propenso que as coisas sejam como
são; nem por dez mil mundos eu não teria a escolha de fazer sozinho.”
Com frequência ele falava dos diferentes tipos de vontade de morrer, e mencionava
como algo ignóbil e vil a vontade de morrer, por estar propenso a morrer só
para se livrar da dor, ou ir para o céu a fim de receber honra e promoção. Seu
desejo da morte parecia ser de um tipo totalmente diferente e para fins mais
nobres. Quando foi tomado pela primeira vez com um dos últimos e mais fatais
sintomas da doença, ele disse: “Agora o tempo glorioso está chegando! Almejei
servir a Deus perfeitamente e Deus satisfará esse desejo.” Uma vez ou outra na
fase final de sua enfermidade, ele articulou estas expressões: “Meu céu é
agradar a Deus, glorificá-lo, dar tudo a Ele e ser dedicado completamente à sua
glória. Este é o céu que desejo, esta é a minha religião, esta é a minha
felicidade e sempre foi, desde que supus ter a verdadeira religião. Todos os
que são dessa religião me encontrarão no céu.” “Eu não vou para o céu para ser
promovido, mas para dar honra a Deus. É de pouca importância onde serei
posicionado no céu, se tenho um assento alto ou baixo, mas vou amar, agradar e
glorificar a Deus. Se eu tivesse mil almas, se elas valessem algo, eu as daria
todas a Deus. Mas não tenho nada a oferecer quando tudo terminar.”
Depois que seu estado o deixou tão prostrado que já não tinha a menor
esperança de recuperação, sua mente vislumbrou o futuro com zelosa preocupação
pela prosperidade da Igreja de Deus na terra. É mais do que evidente que isto é
proveniente de um amor puro e desinteressado de Cristo e um desejo de sua
glória. A prosperidade de Sião era um tema no qual ele se demorava muito e do
qual muito falava, e cada vez mais assim que a morte se aproximava dele. Quando
estava perto do fim, ele me contou que nunca, em toda a vida, teve a mente
induzida a desejos e orações sérias pelo florescimento do Reino de Cristo na
terra, quanto desde que ficou extremamente prostrado em Boston. Ele parecia se
perguntar por que os ministros e as pessoas não manifestavam mais a disposição
de orar pelo desenvolvimento da religião por todo o mundo.
Mas pouco antes de morrer, ele me contou quando entrei no quarto: “Meus
pensamentos estavam no querido velho tema: a prosperidade da Igreja de Deus na
terra. Enquanto eu acordava, fui levado a chorar pelo derramamento do Espírito
de Deus e o progresso do Reino de Cristo, pelo qual o querido Redentor morreu e
tanto sofreu. É sobretudo isso que me faz desejar muito a prosperidade da
Igreja de Deus na terra.”
Alguns dias antes de morrer, ele quis que cantássemos um salmo relacionado
à prosperidade de Sião, que ele denotou ter engajado seus pensamentos e desejos
acima de todas as coisas. A seu pedido, cantamos parte do Salmo 102. Quando
terminamos, embora estivesse tão prostrado que mal podia falar, ele se esforçou
e fez uma oração, muito audivelmente, na qual, além de pedir pelos presentes e
pela própria congregação, orou solicitamente pelo avivamento e florescimento da
religião no mundo. Sua congregação tem lugar especial em seu coração. Era frequente
ele falar dela e, quando o fazia. era com ternura peculiar, de forma que sua
fala era interrompida e afogada em lágrimas.
Assim, propus-me a representar algo do caráter e comportamento deste
excelente servo de Cristo, cujo sepultamento deve ser cuidado agora. Embora o
tenha feito muito imperfeitamente, contudo empreendi fazê-lo com fidelidade e
como na presença e temor de Deus, sem lisonja, o que seguramente deve ser de
nenhum valor aos ministros do Evangelho, quando falam “como mensageiros do
Senhor dos Exércitos.” Tal razão temos de satisfazer para que a pessoa de quem
tenho falado, agora “ausente do corpo”, está “presente com o Senhor”, não
apenas isso, mas também com ele está uma coroa de glória de brilho distinto.
Quanto há na consideração de tal exemplo e de tão abençoado fim para
encorajar os que ainda estamos vivos com a maior diligência e seriedade, a fim
de que tiremos lições proveitosas do tempo de vida e também possamos ir estar
com Cristo quando deixarmos este corpo! O tempo está chegando e logo virá, não
sabemos quão próximo está, quando teremos de nos despedir eternamente de todas
as coisas deste mundo para entrarmos num estado permanente e inalterável no
mundo eterno. Quanto vale a pena laborarmos, sofrermos e negarmos a nós mesmos
para guardarmos um bom fundamento de sustentação e provisão contra esse tempo!
Quão preciosa é essa paz, quando ouvimos falar que vale a pena tais momentos!
Quão escuro seria estarmos em tais circunstâncias, sob as aflições externas de
uma estrutura consumada e dissolvente, e encarando a morte a cada dia, com
corações imundos e pecados não perdoados, sob uma carga terrível de culpa e ira
divina, tendo muita tristeza e raiva em nossa enfermidade, e nada para consolar
e apoiar nossa mente, nada diante de nós senão um iminente comparecimento
perante o tribunal de um Deus Todo-poderoso e infinitamente santo e irado, e
uma eternidade para sofrermos sua ira sem piedade ou misericórdia! A pessoa de
quem estamos falando tinha um grande senso desta realidade. Ele afirmou, não muito
tempo antes de morrer: “Me e doce pensar na eternidade. Sua infinidade a torna
doce. Mas, o que direi quanto à eternidade dos ímpios? Não posso mencionar, nem
pensar! O pensamento é muito terrível!” Em outro momento, falando de um coração
dedicado a Deus e sua glória, ele disse: “Quanto é importante ter tal estrutura
de mente, tal coração como esse, quando vamos morrer! É isso que me dá paz
agora.”
Quanto há, em particular, nas coisas que foram observadas deste eminente
ministro de Cristo para nos impelir — os que somos chamados para a mesma e
grande obra do ministério do Evangelho — ao cuidado e esforços diligentes, a
fim de que da mesma maneira sejamos fiéis em nosso trabalho, como também cheios
do mesmo espírito, animados com a mesma chama pura e ardente do amor a Deus e
tenhamos o mesmo interesse sério pela promoção do Reino e glória de nosso
Senhor e Mestre e da prosperidade de Sião! Estes princípios o tornaram
muitíssimo amado na vida e muito bem-aventurado no seu fim!
Que as coisas que foram vistas e ouvidas sobre esta pessoa
extraordinária — a santidade, consagração, trabalho duro e abnegação de vida; sua
tão excepcional devoção de si e do seu tudo, no coração e na prática, para a
glória de Deus; e a maravilhosa estrutura de pensamento manifestada de maneira
tão firme sob a expectativa da morte e com dores e agonias que a acompanharam.
Que isso nos encoraje a todos nós, ministros e povo, a um senso adequado da
grandeza da obra que temos de fazer no mundo, da excelência e afabilidade da
religião total na experiência e na prática, da bem-aventurança do fim daqueles
cuja morte encerra tal vida e do valor infinito da recompensa eterna, quando “ausente
do corpo e presente com o Senhor'; e efetivamente nos leve a empenhos
constantes e eficazes que, à semelhança de tal vida santa, entremos afinal para
tão bem-aventurado fim! Ámen.
Este sermão foi pregado por Jonathan
Edwards no funeral do afamado missionário dos índios, David Brainerd (20
de abril de 1718– 9 de outubro de 1747), que morreu na casa de Edwards, em
Nonhampton, em 1747, e cujo diário, é hoje um clássico missionário e que foi
publicado por Edwards. Este sermão fúnebre é a declaração pujante da esperança
do cristão concernente aos que já dormiram.
In “Grandes Sermões do Mundo”, de Clarence E.
Macartney, Editor
BIOGRAFIA SUCINTA DE
JONATHAN EDWARDS
Jonathan Edwards, o mais famoso dos teólogos e filósofos americanos,
nasceu em South Windsor. Connecticut, em 5 de outubro de 1703, e morreu em
Princeton, Nova Jersey, em 22 de março de 1758. O seu pai era ministro e
formado pela Universidade de Harvard, e sua mãe, uma mulher de mentalidade e
devoção extraordinárias. Quando criança, Edwards deu indicações certas das suas
realizações futuras. Com a idade de dez anos, ele escreveu um ensaio sobre a
imaterialidade da alma e aos doze escreveu o que ficou conhecido por excelente
tratado sobre aranhas-voadoras. Pela época da sua formatura na Universidade de
Yale, em 1720, ele já tinha imergido profundamente no poço da filosofia. Depois
de breve serviço numa igreja presbiteriana em Nova Iorque e alguns anos como
professor particular da Universidade de Yale, ele tornou-se ministro da Igreja
Congregacional em Northampton. Massachusetts. Ali casou-se com Sarah Pierrepont (1710-1758), uma tetraneta do célebre Thomas Hooker.
Desde o início de seu ministério, Edwards enfatizou
a alta visão calvinista da soberania de Deus na salvação do homem. Com a sua
pregação, iniciou-se o excepcional avivamento em Northampton, espalhando-se
pelas colónias da Nova Inglaterra que ficou conhecido como o Grande Avivamento.
Edwards foi o líder e defensor desse famoso avivamento. Em 1749, depois de uma
disputa que se levantara sobre a questão da disciplina sobre a participação dos
crentes na Santa Ceia, Edwards foi deposto do púlpito e da congregação. De
Northampton, ele foi para Stockbridg e ai foi pastor da igreja e missionário entre
os índios. Foi ali que, em quatro meses, ele escreveu um dos “maiores” livros
do mundo e a principal contribuição dos Estados Unidos para a filosofia, The
Freedom of the Will (A liberdade da vontade), no qual procura refutar a
doutrina do livre arbítrio. Esteve ali uns sete anos antes de ser nomeado
presidente da Universidade de Princeton, mas mal tinha começado os seus
trabalhos ali quando lhe sobreveio a morte por uma reação à vacina contra a
varíola. Morreu em 22 de março de 1758.
O seu sermão mais conhecido é “Pecadores nas Mãos de um Deus Irado”,
sobre o versículo: “Ao tempo em que resvalar o seu pé” (Dt 32:35). O sermão foi
pregado em Enfield, Connecticut, como advertência e repreensão por causa do
crescimento da imoralidade. Edwards pregou muitas vezes sobre a bondade e o
amor de Deus; mas sempre que o seu nome é mencionado, este é o sermão que as
pessoas associam a ele. Há muito no sermão que ofende a sensibilidade religiosa
dos nossos dias, sobretudo a descrição de Deus segurando o pecador acima do
inferno, como alguém que segura uma aranha ou inseto sobre o fogo. Ninguém
poderia pregar nesses termos hoje. Mas o pêndulo oscilou muito longe para a
outra direção, e a pregação de hoje, residindo exclusivamente no amor de Deus,
dificilmente é de natureza a produzir arrependimento ou inteirar os homens de
que Deus é de olhos muito puros para ver a iniquidade. Relatos contemporâneos
da pregação daquele sermão falam da profunda impressão causada e como o
pregador teve de parar diversas vezes para pedir silêncio por parte dos
arrependidos, que na sua angústia choravam em voz alta.
Carlos António da Rocha
Este texto é de livre utilização, desde que a sua
ortografia seja respeitada na íntegra porque já está escrito com o Português do
Novo Acordo Ortográfico e que não seja nunca publicado nem utilizado para fins
comerciais; seja utilizado exclusivamente para uso e desfruto pessoal.
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