… Mas o melhor de tudo é crer em Cristo! Luís Vaz de Camões (c. 1524 — 1580)

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

"O Peregrino", João Bunyan, Capítulo 2



JOÃO BUNYAN

O Peregrino

Capítulo 2

Cristão começou a correr na direção que Evangelista lhe havia indicado. Porém sua mulher e seus filhos, quando o viram atrás dele fugindo, correram atrás dele pedindo-lhe que voltasse para casa e esquecesse aquela loucura. Mas ele não lhes deu atenção (Lc 14:26) e continuou a correr com mais velocidade, enquanto gritava: "Vida eterna, vida eterna, quero alcançar a vida eterna!".

Sem olhar para trás (Gn 19:17), Cristão continuou correndo pelo meio da planície. Enquanto isso alguns vizinhos se juntaram aos seus parentes (Jr 20:10). Uns zombavam dele, outros ameaçavam-no e outros gritavam que ele voltasse. Entre esses últimos havia dois que se dispuseram a correr atrás dele a fim de agarrá-lo e trazê-lo à força para casa. Chamavam-se Obstinado e Vacilante. Apesar de Cristão já star muito longe, esses dois vizinhos redobraram os esforços e conseguiram alcançá-lo.

— O que é que vocês querem de mim?, perguntou Cristão.

— Queremos que volte conosco para sua casa, respondeu Obstinado.

— Impossível. A cidade em que moramos e onde eu nasci e me criei é a Cidade da Destruição. Se vocês morrerem lá, serão sepultados em um lugar mais fundo do que a própria sepultura, onde ardem eternamente o fogo e o enxofre. Portanto vizinhos, vocês é que devem mudar de idéia e vir comigo.

— Quer dizer que nós teremos de abandonar nossa família, nossos amigos, nossos bens nosso conforto e fugir da cidade?

— Sim amigos, porque tudo isso não é nada se compararmos com os bens que alcançaremos na eternidade(Rm 8:18). Se vocês me acompanharem gozarão de tudo isto, porque no lugar para onde estou me dirigindo há o suficiente para todos (Lc 15:17). Venham e comprovem.

— Mas que coisas são essas que você procura, em troca das quas está abandonado tudo o que há no mundo?

— Procuro uma herança incorruptível, que não pode se contaminar nem murchar (1Pe 1:4), reservada com segurança no céu (Hb 11:16) para ser dada no devido tempo, aos que buscarem esforçadamente. Assim está escrito neste livro, a Bíblia. Se vocês o lerem, encontrarão em suas páginas a confirmação de tudo quanto lhes digo.

— Ora, deixe esse negócio de ler esse livro para outra ocasião! Você vai ou não vai voltar conosco para sua casa?

— Não, não voltarei jamais, pois já coloquei a mão sobre o arado (Lc 9:62).

— Nesse caso, vizinho Vacilante, vamos deixá-lo embora e voltemos para casa. Existem certas pessoas que quando ficam doidas e se agarram a uma idéia, passam a se achar mais sábias do que os sete sábios da Grécia.

— Nada de insultos, Obstinado - replicou Vacilante; não concordo com o seu ponto de vista. Se o Cristão diz é verdade, não pode haver dúvida de que as coisas que ele busca açcançar são incomparavelmente superiores às que possuímos. O meu coração me diz que ele está muitíssimo certo no que afirma, e eu confesso que estou com vontade de acompanhá-lo.

— Então você enlouqueceu também, Vacilante? Ora, deixe disso e vamos voltar para casa. Sabe lá para onde esse doido seria capaz de levar você? Volte e seja sábio.

— Não escute o que Obstinado diz, amigo Vacilante. Acompanhe-me, e você comprovará que o que eu lhe disse é verdadeiro. Se você aindo tem alguma dúvida da veracidade de minhas palavras, leia este livro. A garantia de que as palavras nele escritas são verdadeiras nos é dada pelo próprio sangue do seu Autor (Hb 9:17-28).

— Obstinado, estou decidido: vou acompanhar este homem e unir a minha sorte à sua. Amigo Cristão, você sabe qual é o caminho que conduz a esse lugar que buscamos?

— Era um louco, agora sçao dois. Podem ir que eu vou voltar para minha casa. Adeus.

— Continue a não ligar para as palavras que ele diz, Vacilante. Quem me indicou o caminho foi um homem chamado Evangelista. Ele me disse que mais adiante encontraremos uma Porta Estreita. Lá nos ensinarão por onde devemos seguir.

— Então vamos embora!

E os dois começaram a caminhar. Por sua vez, Obstinado voltou sozinho para a cidade, zombando da loucura e da fantasia dos dois vizinhos.

Enquanto caminhavam pela planície, Cristão e Vacilante conversavam:

— Amigo Vacilante, você não imagina quanta satisfação me causa a sua companhia! Se Obstinado pudesse imaginar os terrores do futuro que o aguardam e comtemplar a grandeza das coisas que nos esperam, certamente teria continuado essa viagem conosco.

— Cristão, agora que estamos sós, explique-me melhor o que são essas coisas sobre as quais você me falou, como poderemos gozá-ças e para onde estamos indo.

— Tenho mais facilidade em compreendê-las com o entedimento do que em explicá-las com palavras. Porém, já que você deseja saber mais sobre elas, ouça o resumo da leitura que tenho feito deste livro. Tudo o que necessitamos saber sobre a nossa salvação está nele, e o seu Autor é Aquele que não pode mentir (Tt 1:2).

— Muito bem. Estou pronto para ouvir tudo o que você tem a dizer sobre o que leu neste livro.

— Aqui está escrito que vamos morar em uma cidade que não terá fim, alcançaremos a vida eterna e ficaremos na companhia do Senhor desse Reino para sempre (Is 65:17; 10:27-29). Lá receberemos coroas de glória e vestidos tão resplandecentes como o sol no firmamento (Mt 13:43; 2Tm 4:8; Ap 22:5). Lá não haverá pranto nem dor ([[Is 25:8; Ap 7:16,17 e 21:4), porque o Soberano daquele Reino enxugará de nossos olhos toda lágrima.

— Que quadro belo e magnífico! E aquem teremos por companheiros?

— Além de termos conosco a incontável multidão dos salvos que, como nós conseguiram alcançar a vida eterna com Deus, estaremos também em companhia de anjos, arcanjos, querubins e serafins (Is 6:2; 1Ts 4:16,17; Ap 5:11), criaturas cujo brilhos nos deslumbrará. E viveremos na presença de Deus para sempre. Lá veremos os anciãos com suas vestes brancas e coroas de ouro (Ap 4:4), e os 144 mil seguidores do Cordeiro entoando suaves cânticos ao som de harpas (Ap 14:1-5), homens a quem o mundo esquartejou, queimou, jogou diante das feras para ser devorados por elas, ou foram lançados nas profundezas dos mares por amor do Senhor daquele Reino. Porém hoje todos eles vivem felizes, revestidos da imortalidade (Jo 12:25; 2Co 5:2,3,5).

— A simples descrição desse lugar me enche de entusiasmo e alegrai. nós usufruiremos mesmo de tudo isso? E o que devemos fazer para conseguir o direito de morar nesta cidade?

— O Senhor desse Reino declara neste livro (Is 55:1-3; Jo 7:37; Ap 22:17) quais são esses requisitos. Além de aceitá-lo como Salvador, os requisitos para moramos lá se resumem nestas palavras: "Se verdadeiramente desejarmos de toda a nossa alma e de todo o nosso coração morar naquela cidade, Ele nos concederá de graça".

— Muito bem, amigo Cristão. O meu coração canta de alegria ao ouvir tudo isso. Continuemos a nossa viagem e apressemos o passo para chegarmos mais depressa nesse maravilhoso lugar.

— Infelizmente não posso andar tão rápido como gostaria, amigo Vacilante, porque este fardo de pecados que eu carrego às costas é pesadíssimo.

Os dois conversavam com entusiasmo, e assim conversando chegaram à beira de um pântano que havia no meio da planície. Por estarem distraídos, ambos caíram no lamaçal. Era o Pântano do Desânimo. Coitados! Atolaram-se no lodo. Por estra carregando aquele fardo pesado, Cristão começou a afundar rapidamente.

— Que lugar é este?, perguntou Vacilante.

— Não sei, respondeu Cristão.

— Então esta é a felicidade de que você estava me falando? Se começarmos assim a nossa viagem, imagine como vamos terminá-la! Mas dou-lhe a minha paalvra que se eu conseguir sair vivo dessa, dispensarei de bom grado a parte que podia me pertencer nesse tal lindo país.

Fazendo um pequeno esforço, Vacilante conseguiu voltar e alcançar a margem do pântano que ficava na direção da cidade de onde ele viera. Logo que se viu fora do pântano, começou a correr para casa, e Cristão nunca mais o viu.

Entendendo que havia sido abandonado pelo companheiro de viagem, Cristão começou a se debater no meio do lodo, esforçando-se para chegar à margem oposta. Mas o pesado fardo que ele transportava dificultava os seus movimentos e o empurravam cada vez mais para baixo. Quando Cristão já achava que aquele seria o seu fim, apareceu um homem chamado Auxílio que lhe perguntou como caiu no lodaçal.

— Senhor, explicando-se Cristão, um homem chamado Evangelista indicou-me esta estrada dizendo que se eu seguisse por ele chegaria à Porta Estreita e lá me ensinariam como me livrar desse fardo e escapar da ira de Deus que cairá sobre os pecadores no futuro. Porém, enquanto eu caminhava para lá, caí aqui inesperadamente.

— Mas por que você não caminhou pisando sobre aquelas pedras que foram colocadas ali para tornar mais fácil a travessia do pântano?

— Eu estava tão distraído e com tanta pressa de chegar diante da Porta Estreita que escolhi o caminho mais curto, não vi as pedras e caí no lodaçal.

— Vamos. Dê-me a sua mão que eu vou tirá-lo daí.

Como coração saltando de alegria, Cristão quase viu os céus abertos. Segurou na mão de Auxílio e saiu daquele lugar terrível. Em seguida prosseguiu na sua viagem, seguindo a direção que Auxílio lhe havia indicado.

Então no meu sonho, aproximei-me de Auxílio e fiz a seguinte observação: "Esse caminho sai direto da Cidade da Destruição e conduz até a Porta Estreita, e são muitos os peregrinos que passam por ele. Porque então já não preparam esse trajeto com mais segurança para a comodidade dos pobres viajantes?"

"É impossível", respondeu Auxílio, "Este é o lodaçal para onde vêem todas as imundícies dos que são alcançados pela convicção do pecao; por isso se chama Pântano do Desânimo. Quando o pecador passa a reconhecer suas culpas e o seus estado de perdição, surgem em sua alma dúvidas e temores desconsoladores que se ajuntam e se condensam neste lugar. Eis a razão porque esse pântano é tão esquecido e porque é impossível melhorá-lo."

Auxílio continuou sua explicação: "Mas nunca foi da vontade do Rei que os pecadores que caíssem aqui afundassem no desânimo (Is 35:3,4). Por ordem do Rei, muitos operários têm, ao longo de vários séculos, se esforçado para melhorá-lo. É incalculável o número de saudáveis avisos e lições que para cá têm sido enviados de todas as partes e domínios de sua majestade o Rei Eterno! Porém, apesar da opinião dos entendidos que afirmam ser estes os melhores recursos e o mais adequado material para a obra do almejado saneamento desse lugar, ainda não foi possível realizá-lo, nem o será no futuro."

"O Pântano do Desânimo existe e continuará a existir. Por ordem do Legislador, foram colocadas no meio do pântano umas pedras grandes e sólidas, por onde as pessoas poderão passar mais facilmente. Porém, quando o lodaçal se agita, coisa que sempre acontece nas mudanças de tempo, exala um forte mal cheiro e dele sobre uma neblina que sufoca e atrapalha a visão dos viajantes, e estes, não vendo as pedras sobre as quais poderiam pisar, caem no atoleiro. Porém, o que salva a situação, é que, quando eles conseguem retomar o caminho que os conduzirá à porta, já estão pisando em terreno bom e firme".

Após ouvir essas explicações de Auxílio, vi quando Vacilante chegava à sua cas e como os seus vizinhos, em grande agitação, o cercavam para vê-lo e ouvi-lo contar suas experiências. Uns o chamavam de sábio por ele ter desistido daquela "aventura"; outros o chamavam de fraco por ele ter-se deixado iludir e convencer pelos argumentos de Cristão, e alguns o chamavam de inconstante e covarde por ele ter desistido de continuar a viagem assim que se deparou com a primeira dificuldade. No início Vacilante sentiu-se abatido e envergonhado diante daquelas críticas, porém, pouco a pouco foi recuperando a auto-confiança, e finalmente passou a liderar o coro dos que escarneciam Cristão.

Creio que nunca mais tornarei a falar sobre Vacilante nesta história.
 
Tradução anónima, publicada em Lisboa, em 1897
O Peregrino, por John Bunyan
 http://pt.wikisource.org/wiki/O_Peregrino/I?match=en

John Bunyan (28 de novembro de 1628 – 31 de agosto de 1688, Londres), escritor cristão e  pregador nascido em Harrowden, Elstow, Inglaterra, foi o autor de The Pilgrim's Progress (O Peregrino), provavelmente a alegoria cristã mais conhecida em todos os tempos.

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