JOÃO BUNYAN
O Peregrino
Capítulo 2
Cristão começou a correr na direção
que Evangelista lhe havia indicado. Porém sua mulher e seus filhos, quando o
viram atrás dele fugindo, correram atrás dele pedindo-lhe que voltasse para
casa e esquecesse aquela loucura. Mas ele não lhes deu atenção (Lc 14:26) e
continuou a correr com mais velocidade, enquanto gritava: "Vida eterna,
vida eterna, quero alcançar a vida eterna!".
Sem olhar para trás (Gn 19:17),
Cristão continuou correndo pelo meio da planície. Enquanto isso alguns vizinhos
se juntaram aos seus parentes (Jr 20:10). Uns zombavam dele, outros
ameaçavam-no e outros gritavam que ele voltasse. Entre esses últimos havia dois
que se dispuseram a correr atrás dele a fim de agarrá-lo e trazê-lo à força
para casa. Chamavam-se Obstinado e Vacilante. Apesar de Cristão já star muito
longe, esses dois vizinhos redobraram os esforços e conseguiram alcançá-lo.
— O que é que vocês querem de mim?,
perguntou Cristão.
— Queremos que volte conosco para sua
casa, respondeu Obstinado.
— Impossível. A cidade em que moramos
e onde eu nasci e me criei é a Cidade da Destruição. Se vocês morrerem lá,
serão sepultados em um lugar mais fundo do que a própria sepultura, onde ardem
eternamente o fogo e o enxofre. Portanto vizinhos, vocês é que devem mudar de
idéia e vir comigo.
— Quer dizer que nós teremos de abandonar
nossa família, nossos amigos, nossos bens nosso conforto e fugir da cidade?
— Sim amigos, porque tudo isso não é
nada se compararmos com os bens que alcançaremos na eternidade(Rm 8:18). Se
vocês me acompanharem gozarão de tudo isto, porque no lugar para onde estou me
dirigindo há o suficiente para todos (Lc 15:17). Venham e comprovem.
— Mas que coisas são essas que você
procura, em troca das quas está abandonado tudo o que há no mundo?
— Procuro uma herança incorruptível,
que não pode se contaminar nem murchar (1Pe 1:4), reservada com segurança no
céu (Hb 11:16) para ser dada no devido tempo, aos que buscarem esforçadamente.
Assim está escrito neste livro, a Bíblia. Se vocês o lerem, encontrarão em suas
páginas a confirmação de tudo quanto lhes digo.
— Ora, deixe esse negócio de ler esse
livro para outra ocasião! Você vai ou não vai voltar conosco para sua casa?
— Não, não voltarei jamais, pois já
coloquei a mão sobre o arado (Lc 9:62).
— Nesse caso, vizinho Vacilante, vamos
deixá-lo embora e voltemos para casa. Existem certas pessoas que quando ficam
doidas e se agarram a uma idéia, passam a se achar mais sábias do que os sete
sábios da Grécia.
— Nada de insultos, Obstinado -
replicou Vacilante; não concordo com o seu ponto de vista. Se o Cristão diz é
verdade, não pode haver dúvida de que as coisas que ele busca açcançar são
incomparavelmente superiores às que possuímos. O meu coração me diz que ele
está muitíssimo certo no que afirma, e eu confesso que estou com vontade de
acompanhá-lo.
— Então você enlouqueceu também,
Vacilante? Ora, deixe disso e vamos voltar para casa. Sabe lá para onde esse
doido seria capaz de levar você? Volte e seja sábio.
— Não escute o que Obstinado diz, amigo
Vacilante. Acompanhe-me, e você comprovará que o que eu lhe disse é verdadeiro.
Se você aindo tem alguma dúvida da veracidade de minhas palavras, leia este
livro. A garantia de que as palavras nele escritas são verdadeiras nos é dada
pelo próprio sangue do seu Autor (Hb 9:17-28).
— Obstinado, estou decidido: vou
acompanhar este homem e unir a minha sorte à sua. Amigo Cristão, você sabe qual
é o caminho que conduz a esse lugar que buscamos?
— Era um louco, agora sçao dois. Podem
ir que eu vou voltar para minha casa. Adeus.
— Continue a não ligar para as
palavras que ele diz, Vacilante. Quem me indicou o caminho foi um homem chamado
Evangelista. Ele me disse que mais adiante encontraremos uma Porta Estreita. Lá
nos ensinarão por onde devemos seguir.
— Então vamos embora!
E os dois começaram a caminhar. Por
sua vez, Obstinado voltou sozinho para a cidade, zombando da loucura e da
fantasia dos dois vizinhos.
Enquanto caminhavam pela planície,
Cristão e Vacilante conversavam:
— Amigo Vacilante, você não imagina
quanta satisfação me causa a sua companhia! Se Obstinado pudesse imaginar os
terrores do futuro que o aguardam e comtemplar a grandeza das coisas que nos
esperam, certamente teria continuado essa viagem conosco.
— Cristão, agora que estamos sós,
explique-me melhor o que são essas coisas sobre as quais você me falou, como
poderemos gozá-ças e para onde estamos indo.
— Tenho mais facilidade em
compreendê-las com o entedimento do que em explicá-las com palavras. Porém, já
que você deseja saber mais sobre elas, ouça o resumo da leitura que tenho feito
deste livro. Tudo o que necessitamos saber sobre a nossa salvação está nele, e
o seu Autor é Aquele que não pode mentir (Tt 1:2).
— Muito bem. Estou pronto para ouvir tudo
o que você tem a dizer sobre o que leu neste livro.
— Aqui está escrito que vamos morar em
uma cidade que não terá fim, alcançaremos a vida eterna e ficaremos na
companhia do Senhor desse Reino para sempre (Is 65:17; 10:27-29). Lá
receberemos coroas de glória e vestidos tão resplandecentes como o sol no
firmamento (Mt 13:43; 2Tm 4:8; Ap 22:5). Lá não haverá pranto nem dor ([[Is
25:8; Ap 7:16,17 e 21:4), porque o Soberano daquele Reino enxugará de nossos
olhos toda lágrima.
— Que quadro belo e magnífico! E aquem
teremos por companheiros?
— Além de termos conosco a incontável
multidão dos salvos que, como nós conseguiram alcançar a vida eterna com Deus,
estaremos também em companhia de anjos, arcanjos, querubins e serafins (Is 6:2;
1Ts 4:16,17; Ap 5:11), criaturas cujo brilhos nos deslumbrará. E viveremos na
presença de Deus para sempre. Lá veremos os anciãos com suas vestes brancas e
coroas de ouro (Ap 4:4), e os 144 mil seguidores do Cordeiro entoando suaves
cânticos ao som de harpas (Ap 14:1-5), homens a quem o mundo esquartejou,
queimou, jogou diante das feras para ser devorados por elas, ou foram lançados
nas profundezas dos mares por amor do Senhor daquele Reino. Porém hoje todos
eles vivem felizes, revestidos da imortalidade (Jo 12:25; 2Co 5:2,3,5).
— A simples descrição desse lugar me
enche de entusiasmo e alegrai. nós usufruiremos mesmo de tudo isso? E o que
devemos fazer para conseguir o direito de morar nesta cidade?
— O Senhor desse Reino declara neste
livro (Is 55:1-3; Jo 7:37; Ap 22:17) quais são esses requisitos. Além de
aceitá-lo como Salvador, os requisitos para moramos lá se resumem nestas
palavras: "Se verdadeiramente desejarmos de toda a nossa alma e de todo o
nosso coração morar naquela cidade, Ele nos concederá de graça".
— Muito bem, amigo Cristão. O meu
coração canta de alegria ao ouvir tudo isso. Continuemos a nossa viagem e
apressemos o passo para chegarmos mais depressa nesse maravilhoso lugar.
— Infelizmente não posso andar tão
rápido como gostaria, amigo Vacilante, porque este fardo de pecados que eu
carrego às costas é pesadíssimo.
Os dois conversavam com entusiasmo, e
assim conversando chegaram à beira de um pântano que havia no meio da planície.
Por estarem distraídos, ambos caíram no lamaçal. Era o Pântano do Desânimo. Coitados!
Atolaram-se no lodo. Por estra carregando aquele fardo pesado, Cristão começou
a afundar rapidamente.
— Que lugar é este?, perguntou
Vacilante.
— Não sei, respondeu Cristão.
— Então esta é a felicidade de que
você estava me falando? Se começarmos assim a nossa viagem, imagine como vamos
terminá-la! Mas dou-lhe a minha paalvra que se eu conseguir sair vivo dessa,
dispensarei de bom grado a parte que podia me pertencer nesse tal lindo país.
Fazendo um pequeno esforço, Vacilante
conseguiu voltar e alcançar a margem do pântano que ficava na direção da cidade
de onde ele viera. Logo que se viu fora do pântano, começou a correr para casa,
e Cristão nunca mais o viu.
Entendendo que havia sido abandonado
pelo companheiro de viagem, Cristão começou a se debater no meio do lodo,
esforçando-se para chegar à margem oposta. Mas o pesado fardo que ele
transportava dificultava os seus movimentos e o empurravam cada vez mais para
baixo. Quando Cristão já achava que aquele seria o seu fim, apareceu um homem
chamado Auxílio que lhe perguntou como caiu no lodaçal.
— Senhor, explicando-se Cristão, um
homem chamado Evangelista indicou-me esta estrada dizendo que se eu seguisse
por ele chegaria à Porta Estreita e lá me ensinariam como me livrar desse fardo
e escapar da ira de Deus que cairá sobre os pecadores no futuro. Porém,
enquanto eu caminhava para lá, caí aqui inesperadamente.
— Mas por que você não caminhou
pisando sobre aquelas pedras que foram colocadas ali para tornar mais fácil a
travessia do pântano?
— Eu estava tão distraído e com tanta
pressa de chegar diante da Porta Estreita que escolhi o caminho mais curto, não
vi as pedras e caí no lodaçal.
— Vamos. Dê-me a sua mão que eu vou
tirá-lo daí.
Como coração saltando de alegria,
Cristão quase viu os céus abertos. Segurou na mão de Auxílio e saiu daquele
lugar terrível. Em seguida prosseguiu na sua viagem, seguindo a direção que
Auxílio lhe havia indicado.
Então no meu sonho, aproximei-me de
Auxílio e fiz a seguinte observação: "Esse caminho sai direto da Cidade da
Destruição e conduz até a Porta Estreita, e são muitos os peregrinos que passam
por ele. Porque então já não preparam esse trajeto com mais segurança para a
comodidade dos pobres viajantes?"
"É impossível", respondeu
Auxílio, "Este é o lodaçal para onde vêem todas as imundícies dos que são
alcançados pela convicção do pecao; por isso se chama Pântano do Desânimo.
Quando o pecador passa a reconhecer suas culpas e o seus estado de perdição, surgem
em sua alma dúvidas e temores desconsoladores que se ajuntam e se condensam
neste lugar. Eis a razão porque esse pântano é tão esquecido e porque é
impossível melhorá-lo."
Auxílio continuou sua explicação:
"Mas nunca foi da vontade do Rei que os pecadores que caíssem aqui
afundassem no desânimo (Is 35:3,4). Por ordem do Rei, muitos operários têm, ao
longo de vários séculos, se esforçado para melhorá-lo. É incalculável o número
de saudáveis avisos e lições que para cá têm sido enviados de todas as partes e
domínios de sua majestade o Rei Eterno! Porém, apesar da opinião dos entendidos
que afirmam ser estes os melhores recursos e o mais adequado material para a
obra do almejado saneamento desse lugar, ainda não foi possível realizá-lo, nem
o será no futuro."
"O Pântano do Desânimo existe e
continuará a existir. Por ordem do Legislador, foram colocadas no meio do
pântano umas pedras grandes e sólidas, por onde as pessoas poderão passar mais
facilmente. Porém, quando o lodaçal se agita, coisa que sempre acontece nas
mudanças de tempo, exala um forte mal cheiro e dele sobre uma neblina que
sufoca e atrapalha a visão dos viajantes, e estes, não vendo as pedras sobre as
quais poderiam pisar, caem no atoleiro. Porém, o que salva a situação, é que,
quando eles conseguem retomar o caminho que os conduzirá à porta, já estão
pisando em terreno bom e firme".
Após ouvir essas explicações de
Auxílio, vi quando Vacilante chegava à sua cas e como os seus vizinhos, em
grande agitação, o cercavam para vê-lo e ouvi-lo contar suas experiências. Uns
o chamavam de sábio por ele ter desistido daquela "aventura"; outros
o chamavam de fraco por ele ter-se deixado iludir e convencer pelos argumentos
de Cristão, e alguns o chamavam de inconstante e covarde por ele ter desistido
de continuar a viagem assim que se deparou com a primeira dificuldade. No
início Vacilante sentiu-se abatido e envergonhado diante daquelas críticas,
porém, pouco a pouco foi recuperando a auto-confiança, e finalmente passou a
liderar o coro dos que escarneciam Cristão.
Creio que nunca mais tornarei a falar
sobre Vacilante nesta história.
Tradução anónima, publicada em Lisboa,
em 1897
O Peregrino, por John Bunyan
http://pt.wikisource.org/wiki/O_Peregrino/I?match=en
John Bunyan (28 de novembro de 1628 –
31 de agosto de 1688, Londres), escritor cristão e pregador nascido em Harrowden, Elstow,
Inglaterra, foi o autor de The Pilgrim's Progress (O Peregrino), provavelmente
a alegoria cristã mais conhecida em todos os tempos.
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