C. H. Spurgeon
Sermão n.º 2767
“Jesus em Getesêmane” (Jesus In Gethsemane) pregado na
noite do domingo de 6 de março de 1881, por Charles Haddon Spurgeon, no
Tabernáculo Metropolitano, Newington, Londres, e lido também ali mesmo em 23 de
fevereiro de 1902.
“Tendo Jesus dito isto, saiu com os seus discípulos para
além do ribeiro de Cedron, onde havia um horto, no qual ele entrou e seus
discípulos. Judas, que o traía, também conhecia aquele lugar, porque Jesus
muitas vezes se ajuntava ali com os seus discípulos.” (Jo 18: 1-2, ARC, Pt)
Eu
recordo-me de ter lido em alguma parte, embora neste momento não possa recordar a
fonte, que Betânia –alguém teria pensado que o Salvador iria para esse lugar a
fim de passar a noite, em casa de Maria e da sua Irmã Marta– estava do lado
mais afastado do Monte das Oliveiras, e estava fora dos limites da cidade de
Jerusalém. Agora, na Páscoa, era obrigatório que todos os que guardavam a festa
passassem toda a noite dentro dos limites da cidade, e o nosso divino Senhor e
Mestre, que era um escrupuloso observante de cada ponto da antiga Lei de Deus,
não passou para o outro lado do monte, mas permaneceu dentro da área que estava
tecnicamente considerada como parte ou porção de Jerusalém; assim que a Sua
decisão de ir para Getesêmane era, em parte, para dar cumprimento à Lei
Cerimonial, e, por essa razão, Ele não passou mais à frente nem procurou nenhum
outro refúgio.
Nosso
Senhor sabia também que nessa precisa noite, Ele seria entregue mas mãos dos
Seus inimigos e, portanto, precisava de estar preparado mediante um tempo
especial de devoção para o terrível ordálio que estava a ponto de suportar.
Aquela noite de Páscoa ia ser uma noite memorável por esse motivo, por isso Ele
queria guardá-la de uma maneira particularmente sagrada, mas como ela ia ser
ainda mais memorável como o tempo do começo dos sofrimentos da Sua paixão,
assim Ele resolveu passar a noite inteira em oração a Seu Pai. Nesse ato Ele
recorda a Jacob junto ao vau de Jaboc, o qual, quando teve que confrontar duras
provas no seguinte dia passou a noite lutando em oração; e este Homem maior que
Jacob passou a Sua noite, não junto ao vau de Jaboque,
mas junto ao negro e pestilento ribeiro de Cedron, e
aí lutou com umas forças muito superiores às que o Patriarca teve de empregar
na sua notável resistência noturna com o Anjo do Pacto. Eu quero que tentem ir
até Getesêmane no pensamento, e creio que devem sentir-se estimulados a ir lá
já que o nosso texto diz: “Jesus muitas vezes Se ajuntava
ali com os Seus discípulos.”
I.
E, primeiramente, até onde o possamos fazer no pensamento, VEJAMOS O LUGAR.
Eu
nunca vi o horto do Getesêmane. Muitos viajantes nos informam que o viram, e
descreveram o que viram lá. A minha impressão é que nenhum deles viu jamais o
sítio real, e que não resta nenhum vestígio dele. Há certas vetustas oliveiras
dentro de um terreno demarcado que geralmente se pensa que cresceram no tempo
do Salvador; mas isso parecesse ser muito pouco provável pois Josefo comenta
que todas as árvores que havia nos arredores de Jerusalém foram derrubadas,
muitos delas para serem convertidas em cruzes para a crucificação dos judeus, e
outras para serem utilizadas na construção das fortificações com as quais o
imperador romano sitiou a cidade sentenciada à ruína. Não parece que tenha ficado
nada que pudesse ser uma relíquia verdadeira da antiga cidade, e não posso
imaginar que as oliveiras tivessem uma sorte diferente. Do que hão comentado
alguns Irmãos que foram ao famoso horto de Getesêmane eu concluo que não é
muito útil ir lá para as devoções pessoais. Uma pessoa que planeava passar lá
uma parte do seu dia de domingo e que esperava desfrutar nesse lugar de muita
comunhão com Cristo, disse que foi conduzido a aprender muito amargamente o
significado das palavras que nosso Salvador disse à mulher, junto ao poço de
Sicar: “A hora vem, em que, nem neste monte, nem em
Jerusalém, adorareis o Pai … A hora vem, e agora é,
em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade;
porque o Pai procura a tais que assim O adorem.”
Eu
não quero averiguar onde estava exatamente o Getesêmane; basta-me saber que
estava numa encosta do Monte das Oliveiras, e que era um sítio muito afastado.
O conceito que eu formo do lugar é o resultado de ter residido, durante muitos
invernos, numa pequena povoação do sul de França onde as oliveiras crescem à
vontade e onde, nas ladeiras das colinas, me tenho sentado amiúde no meio dos
olivais, e tenho dito para mim mesmo: “O Getesêmane deve ter sido um lugar
parecido a este.” Estou seguro de que o era, já que um horto de oliveiras na
ladeira de uma colina tem de ser necessariamente muito similar a outro. As
colinas estão cobertas de socalcos, uma mais alta que a outra, cada uma delas
possuindo poucas vezes uma largura superior a oito, dez ou doze pés; logo sobe,
digamos, cinco, seis, sete ou oito pés e encontra outro socalco, e assim
sucessivamente por toda a colina, e nesses socalcos crescem as oliveiras.
Um
dos encantos de um horto de oliveiras desse tipo é que logo que entras nele,
podes sentar-te ao abrigo do aterro localizado ao fundo de qualquer dos
socalcos –talvez num ângulo em que estejas protegido do vento– e estarás
completamente oculto à vista de todos os observadores. Houve pessoas que se
sentaram a uns escassos metros de mim, de cuja presença não tive nunca a menor
ideia. Num dia de domingo, depois de ter passado com outras pessoas um pouco de
tempo em oração, notei o que parecia ser uma cartola de um cidadão inglês que
se ia afastando, a uma curta distância de nós, justamente por cima de um dos
socalcos. Logo reconheci a cabeça que levava o chapéu como a de um Irmão
Cristão a quem eu conhecia, e descobri que havia estado ali caminhando de um
lado a outro estudando o seu sermão para a tarde. Ele não nos tinha notado,
exceto que tinha ouvido alguns sons que lhe tinham parecido como oração e
louvor. Muitos de vós poderíeis estar num horto de oliveiras, mas, a menos que enviásseis
alguma sinal de reconhecimento para os vossos amigos, eles não se dariam conta
de que alguém mais se encontrava ali; e sob a espessa, embora, leve folhagem,
com os brilhos da luz solar que se filtra, ou na noite, sob um tipo de cor
cinzenta e cinza, com a luz da Lua projetando através da folhagem os seus raios
de prata, não posso imaginar um lugar de retiro mais deleitoso, um lugar onde
alguém se sentiria mais seguro de estar muito isolado –mesmo que alguém pudesse
estar muito perto de ti– um lugar onde poderias sentir-te livre de expressar os
teus pensamentos e as tuas orações, porque, de qualquer maneira, para a tua
própria perceção, pareceria estares completamente sozinho.
Não
posso evitar de pensar também que o nosso Salvador gostava de estar entre as
oliveiras, devido à figura muito congenial da oliveira. Ela retorce-se e
enrola-se e contorciona-se como se estivesse numa agonia. Tem de extrair o
azeite da dura pederneira, e parecesse fazê-lo com grande trabalho e fadiga; o
próprio aspeto de muitas oliveiras parece sugerir esse pensamento. Então, um
horto de oliveiras é um lugar de doloroso prazer e de frutífero trabalho, onde
o azeite é rico e gorduroso, mas onde se tem de investir muito esforço na sua
extração do duro chão sobre o qual está plantado a oliveira. Eu creio que
outros sentiram a respeito disto o mesmo eu hei sentido, isto é, que não há
nenhuma árvore que pareça mais sugestiva de um sentimento de identificação com
um ser sofredor do que uma oliveira, nenhuma sombra que seja mais docemente
pensativa, mais apropriada para os momentos de aflição e para a hora de devota
meditação. Não me surpreende, portanto, que Jesus procurasse o horto de
Getesêmane para poder estar completamente sozinho, para derramar a Sua alma
diante de Deus, e não obstante, para poder contar com alguns companheiros a uma
curta distância sem ser incomodado pela sua presença imediata.
Uma
razão para que Ele tenha ido para esse horto em particular era porque tinha ido
ali tantas vezes que adorava estar nesse velho lugar familiar. Não sentes algo
disso no teu próprio lugar especial de oração? Eu não gosto tanto da leitura
nas Bíblias de outras pessoas como na minha própria Bíblia. Não sei a que se
deva, mas eu gosto da minha própria Bíblia de estudo mais que de nenhuma outra;
e se tiver de usar alguma Bíblia mais pequena, prefiro uma que tenha as
palavras no mesmo lugar da página que na minha Bíblia, para que possa
encontrá-las com facilidade; e eu não sei se vós sentis o mesmo, mas geralmente
posso orar melhor num determinado lugar. Há certos sítios nos quais me deleita
estar quando me aproximo de Deus; há alguma associação de anteriores
entrevistas com o meu Pai Celestial vinculadas com eles que faz que a velha
poltrona seja o melhor lugar no qual alguém possa ficar de joelhos. Assim me
parece que o Salvador gostava do Getesêmane porque tinha ido ali frequentemente
com os Seus discípulos; e, portanto, Ele converte o lugar no sítio sagrado onde
será derramada diante de Seu Pai a Sua última agonia de oração.
II.
Sem embargo, isto foi só a introdução ao tema principal das nossas meditações;
então, agora, CONTEMPLEMOS O SALVADOR EM GETESÊMANE PARA QUE POSSAMOS IMITÁ-LO.
E,
primeiramente, temos de imitar o nosso bendito Senhor nisto: em que Ele com
frequência procurou e gozou da solidão. A Sua vida era uma vida extremamente
atarefada; Ele tinha de fazer muitíssimo mais do que o que temos de fazer vós e
eu; sem embargo, Ele encontrava abundante tempo para a oração em privado. Ele
era muito mais santo do que somos qualquer um de nós; contudo, Ele dava-Se
conta da Sua necessidade de oração privada e de meditação. Ele era muito mais
sábio que o que nós jamais seremos; sem embargo, sentia a necessidade de Se
retirar para a solidão para a comunhão com Seu Pai. Ele tinha muito poder sobre
Si mesmo, podia controlar-Se e sossegar-Se muito mais facilmente do que nós
podemos; contudo, sentia que devia ficar sozinho, com frequência, no meio das
distrações do mundo. Seria bom que estivéssemos sozinhos com maior frequência;
estamos tão ocupados, tão envoltos nesta reunião de comité ou naquela outra, no
adestramento de obreiros, na escola dominical, na pregação, nas práticas, nas
visitas, nas intrigas, em todo o tipo de coisas, boas, más ou indiferentes, que
não temos nenhum tempo disponível para o devido cultivo da nossa vida espiritual!
Corremos de um lugar para outro sem ter o tempo apropriado para descansar; mas,
Irmãos e Irmãs, se queremos ser fortes, se temos a intenção de nos assemelhar a
Jesus, nosso Senhor e Salvador, temos de ter o nosso Getesêmane, o nosso lugar
de secreto retiro onde possamos estar a sós com o nosso Deus. Penso que foi
Lutero que o disse: “Hoje tenho diante de mim um duro dia de trabalho;
consumir-me-á muitas horas e haverá uma severa luta, assim tenho de dispor de
pelo menos de três horas de oração para poder acumular a energia suficiente
para desempenhar a minha tarefa.” Ah!, nós não atuamos dessa sábia maneira nos
nossos dias; sentimo-nos como se não pudéssemos encontrar um tempo para a
oração privada; mas, se tivéssemos mais comunhão com Deus, teríamos uma maior
influência nos homens.
Mas
o nosso bendito Mestre tem de ser imitado especialmente no facto de que Ele
procurou a solidão quando estava a ponto de entrar no grande conflito da Sua
vida. Justamente então, quando Judas estava a ponto de lhe dar o beijo do
traidor, quando os escribas e os fariseus estavam a ponto de acossá-Lo até à
cruz, foi então quando Ele sentiu que tinha de Se retirar para o Getesêmane e
estar sozinho em oração com Seu Pai! Que fizeste, meu querido Irmão, quando tu
receaste a prova? Pois bem, buscaste um amigo que se identificasse contigo! Não
te vou culpar por desejares as consolações da verdadeira amizade, mas não te
vou elogiar se as pões no lugar da comunhão com Deus. Temes tu, agora mesmo,
alguma calamidade iminente? O que estás tu fazendo para a enfrentar? Não te vou
sugerir que descuides certas precauções, mas aconselhar-te-ia que a primeira e
a melhor das tuas precauções seja dirigires-te ao teu Deus em oração! Assim
como os débeis coelhos encontram refúgio na rocha sólida, e assim como as
pombas se afastam voando para o seu lar no pombal, assim também quando os
Cristãos esperam alguma tribulação, deveriam voar diretamente para o seu Deus
sobre as asas do medo e da fé! A tua grande fortaleza não radica no teu cabelo,
pois, de outro modo, poderias sentir-te tão orgulhoso como Sansão nos dias das
suas vitórias! A tua grande fortaleza radica no teu Deus! Portanto, acolhe-te
pressuroso nEle e pede-Lhe ajuda nesta tua hora de necessidade!
Por
assim dizer, alguns de vós orais quando estais no Calvário, mas não em
Getesêmane. Quero dizer, orais quando vos sobrevem a tribulação, mas não quando
ela está no caminho; sem embargo, o vosso Mestre aqui vos ensina que para
vencer no vosso Calvário tendes de começar lutando no vosso Getesêmane. Quando
ainda não é senão a sombra da vossa tribulação vindoura a que abre as suas
negras asas sobre vós, clamais a Deus pedindo ajuda! Quando não estais
esvaziando ainda a amarga taça, mas estais unicamente sorvendo as primeiras
gotas do absinto e do fel, começais então a orar: “Não seja como eu quero, mas
como Tu queres, oh meu Pai!” Assim estareis melhor capacitados para beber da
taça até os seus sedimentos quando Deus a coloque na vossa mão.
Nós
podemos imitar também o nosso Senhor, até onde sejamos capazes de o fazer, no
facto de que Ele tomou os Seus discípulos com Ele. De qualquer maneira, se não
O imitamos neste sentido, certamente podemos admirá-Lo, porquanto, Ele levou os
Seus discípulos Consigo, penso, com dois propósitos em mente. Primeiro, para o
bem deles. Recordai, Irmãos e Irmãs, que o dia seguinte devia ser de tribulação
para eles assim como para Ele mesmo. Ele devia ser submetido ao juízo e ser
condenado, mas eles deviam ser provados severamente na sua fidelidade para com
Ele ao verem o seu Senhor e Mestre entregue a uma morte vergonhosa. Assim Ele
levou-os Consigo para que eles também orassem, para que aprendessem a orar
ouvindo as Suas maravilhosas orações, para que vigiassem e orassem para que não
entrassem em tentação. Agora, algumas vezes, na tua hora especial de tribulação,
eu creio que seria para o bem de outros que lhes comunicasses a história da tua
angústia, e lhes pedisses que se unissem a ti em oração concernente a ela. Como
eu tenho feito isso com muita frequência, posso exortá-los a que façais o
mesmo. Descobri que isso foi uma grande bênção, num lúgubre dia da minha vida,
quando pedi a meus filhos, se bem eles eram ainda uns adolescentes, que
entrassem no meu aposento, e que orassem com o seu pai no tempo da sua
tribulação. Sei que isso foi bom para eles, e as suas orações foram de grande
ajuda para mim; mas atuei como o fiz, em parte para que eles tomassem a sua
parte nas responsabilidades domésticas, para que chegassem a conhecer o Deus de
seu pai, e aprendessem a confiar nEle no seu tempo de tribulação.
Mas
o nosso Salvador levou também Consigo os Seus discípulos ao Getesêmane para que
eles O ajudassem a consolá-lo a Ele; e, neste sentido, devemos imitá-Lo por
causa da Sua maravilhosa humildade. Se todos esses discípulos tivessem feito
todo o possível, do que teria valido? Mas o que eles verdadeiramente fizeram
foi muito desencorajante, para Cristo, em vez de ser de alguma utilidade para
Ele. Eles ficaram adormecidos quando deveriam ter velado com o seu Senhor, e
não O ajudaram com as suas orações como poderiam havê-lo feito. É digno que se
note que Ele não lhes pediu que orassem com Ele. Ele pediu-lhes que velassem e
orassem para que não caíssem em tentação, mas Ele disse-lhes: “Então, nem uma hora pudeste velar Comigo?” Não lhes disse:
“Então, nem uma hora pudeste orar Comigo?” Eles
sabia que eles não podiam fazer isso. Que homem mortal teria podido orar numa
hora como aquela, quando grandes gotas de suor de sangue pontuavam cada
parágrafo da Sua petição? Não; eles não podiam orar com Ele, mas eles teriam podido
velar com Ele; contudo, tampouco fizeram isso.
Às
vezes, queridos amigos, quando vos sobrevier alguma tribulação muito grande,
seria bom que pedísseis a alguns Irmãos e Irmãs que não podem fazer muito, mas
que podem fazer qualquer coisa, que venham e velem convosco e orem convosco. Se
isto não vos fizer nenhum bem a vós, será bom para eles; mas isso vos fará bem
a vós também, estou seguro disso. Com muita frequência –devo confessá-lo–
quando me tenho sentido deprimido por causa da minha enfermidade mais recente,
contei com dois Irmãos que se puseram de joelhos comigo em oração, e as suas
honestas, sinceras e fervorosas orações no meu estúdio me propulsaram com
frequência até à felicidade e à paz! Eu creio que isso também lhes tem feito
bem a eles; sei que isso me tem feito bem, e estou seguro de que tu poderias
ser muitas vezes uma bênção para os outros se não te importasse confessar-lhes
que estás deprimido e triste no coração. Diz: “Entra no meu aposento, e vela
comigo uma hora”; e a essa solicitude podes adicionar esta outra: “Entra e ora
comigo”, pois alguns deles podem orar tão bem como tu o fazes e até melhor.
Então imita o Salvador esforçando-te não só em orar tu mesmo, mas também em
chamar em tua ajuda, quando for iminente uma grande tribulação, a legião dos
escolhidos de Deus que oram.
Podemos
seguir também o exemplo de nosso Senhor em outra direção, isto é, que quando
oramos em presença de uma grande tribulação é bom orar com muita importunidade.
Nosso Salvador orou três vezes em Getesêmane, usando as mesmas palavras. Ele
orou com tal intensidade de desejo que o Seu coração parecia arder de angústia.
Os canais transbordaram e as suas vermelhas correntes irromperam em gotas
sangrentas que caíram na terra naquele lugar chamado corretamente “lagar.” Ah!,
essa é a maneira de orar, se não até ao ponto de produzir um suor sangrento
—como certamente não tenhamos de o fazer, nem sejamos capazes de o fazer—
contudo com tal intensidade de um ardor sincero como nos seja possível e como o
deveríamos fazerlo quando Deus o Espírito Santo esteja obrando com poder em
nós! Não podemos esperar receber ajuda no nosso tempo de tribulação a menos que
enviemos ao Céu uma intensa oração.
Mas
imitai também a Cristo no tema da Sua oração. Estou seguro de que Ele unicamente
murmurou brandamente a prece: “Meu Pai, se é possível,
passe de Mim este cálix.” Tu também podes apresentar essa petição, mas
assegura-te de murmurá-la brandamente. Sem embargo, estou seguro de que foi com
todo o Seu poder que nosso Salvador disse: “Todavia, não
seja como Eu quero, mas como Tu queres.” Em presença ou perante a
perspetiva de uma grande tribulação, faz que esta seja a tua oração a Deus: “A
Tua vontade seja feita.” Alenta a tua alma até este ponto: havendo pedido ao
Senhor que te proteja, se assim Lhe agrade, põe-te absolutamente em Suas mãos,
e diz: “Todavia, não seja como Eu quero, mas como Tu queres!”
Quando
alguém chega até esse ponto, trata-se de uma oração prevalecente! Um homem está
preparado para morrer quando sabe como apresentar essa petição! Essa é a melhor
preparação para qualquer cruz que pudesse cair em cima dos teus ombros. Tu
poderias morrer a morte de um mártir e aplaudir até no meio do fogo, se podes,
com toda a tua alma, orar realmente como Jesus orou: “Não seja
como Eu quero, mas como Tu queres.” Este é o objetivo que ponho ante
vós, meus Irmãos e Irmãs em Cristo, que, se estais esperando uma enfermidade,
se estais temendo alguma perda, se estais antecipando um duelo, se temeis a
morte, que este seja o teu grande ultimato, ir a Deus agora, no tempo da tua
angústia, e, por meio de uma poderosa oração prevalecente, com tal
acompanhamento de oração como outros te possam brindar, murmura essa única
prece: “Faça-se a Tua vontade, oh meu Pai!” Faça-se a Tua vontade! Ajuda-me a cumpri-la!
Ajuda-me a aguentá-la! Ajuda-me a seguir adiante contudo, para Tua honra e
Glória. Que eu seja batizado com o Teu Batismo, e que eu beba da Tua taça até
os sedimentos.”
Algumas
vezes, queridos Amigos, podeis desejar em vossos corações que o Senhor vos
usasse grandemente, e, contudo, talvez, Ele talvez não o faça. Bem, um homem
que se cala quando Cristo lhe diz que o faça, está glorificando a Cristo mais
do que se abrisse a sua boca e quebrantasse o mandamento do Mestre. Há alguns
membros do povo de Deus que graças a uma manifestação tranquila, santa e
consistente do que o Senhor tem feito por eles, glorificam-No mais do que o
fariam se fossem de lugar em lugar pregando o Seu Evangelho de uma maneira que
faria com que o próprio Evangelho fosse desagradável para quem o ouvisse. Isso
é muito possível, pois algumas pessoas o fazem. Se o Senhor me põe na primeira
fila, bendito seja o Seu nome por isso, e eu tenho de pelejar por Ele aí como
melhor eu possa. Mas se Ele me diz: “Fica deitado no teu leito! Queda-te aí
durante sete anos, e não te levantes, de modo algum!”, eu não tenho nada mais
que fazer que O glorificar dessa maneira. O melhor soldado é o que faz
exatamente o que seu capitão lhe diz.
III.
Agora, em terceiro lugar, e só brevemente, A MODO DE INSTRUÇÃO PARA NÓS MESMOS,
VEJAMOS OS DISCÍPULOS EM GETESÊMANE.
Provavelmente
os discípulos haviam ido com o seu Mestre ao Getesêmane muitas vezes; eu
suponho que, algumas vezes durante o dia, e algumas vezes durante a noite,
tinham sido instruídos, em conclave secreto, no horto das oliveiras. Ele havia
sido a Academia deles! Aí tinham estado com o Mestre em oração; sem dúvida,
cada um orava e aprendia a orar melhor com o Seu exemplo divino. Queridos
Irmãos e Irmãs, eu vos recomendo que vades com frequência ao lugar onde possais
ter uma melhor comunhão com o vosso Deus.
Mas,
agora, os discípulos foram ao Getesêmane porque se abatia uma grande
tribulação. Eles foram levados ali para que velassem e orassem. Assim também,
acolhe-te ao lugar de oração neste momento de tribulação, e em todos os outros
momentos de tribulação que te sobrevenham ao longo de toda a tua vida. Sempre
que ouças o repique dos sinos anunciando todo o gozo terrestre, esse deve ser o
aviso para que te dirijas ao horto da oração! Sempre que houver a sombra de uma
tribulação que se avizinhe e se vislumbre diante de ti, isso também deve ser a
substância de uma comunhão mais intensa com Deus! Contudo, estes discípulos
eram chamados a entrar em comunhão com o seu Mestre naquele momento, na
escuridão mais densa e mais profunda que Lhe estava sobrevindo, muito mais
densa do que qualquer que lhes estivesse sobrevindo a eles. E vós sois
chamados, queridos Irmãos e Irmãs, cada um na sua própria medida, a ser
batizados em Jesus, na nuvem e no mar, para que possais ter comunhão com Ele
nos Seus sofrimentos. Não vos envergonheis de ir com Cristo até ao Getesêmane,
entrando no conhecimento do que Ele sofreu para serdes conduzidos a sofrer da
mesma maneira, segundo a vossa própria capacidade. Todos os Seus verdadeiros
seguidores têm de ir lá; alguns só têm de ficar na porta que dá para o
exterior, e velar; mas os Seus muito favorecidos têm de entrar na escuridão
mais densa, e estar mais perto do seu Senhor nas Suas maiores agonias; mas se
nós somos Seus verdadeiros discípulos, temos de ter comunhão com Ele nos Seus
sofrimentos.
A
nossa dificuldade é que a carne evade esta tribulação, e que, igualmente como
os discípulos, nós ficamos adormecidos quando deveríamos velar. Quando chega o
tempo da tribulação, se nos deprimirmos em espírito por sua causa, somos
propensos a não orar com esse ardor e esse vigor que uma maior esperança teria
engendrado; e quando chegamos a sentir algo do que o Salvador suportou, somos
demasiado propensos a ficar sobressaltados em vez de sermos estimulados por
isso; e assim, quando Ele vem a nós, Ele encontra-nos, como aos discípulos,
“dormindo por causa da tristeza.” O Mestre disse benignamente: “na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca”;
mas eu não creio que algum dos discípulos se desculpasse. Parece-me, se posso
julgá-los baseando-me na minha própria pessoa, que eu teria dito: “não poderei
perdoar-me nunca por haver ficado adormecido aquela noite; como pude ficar
adormecido havendo-nos dito Ele: ‘Velai Comigo’? E quando regressou, com o Seu
rosto vermelho pelo suor de sangue, e com esse desiludido olhar em Seu
semblante, disse: ‘Como não pudestes velar Comigo uma hora?’ Como pude ficar
adormecido uma segunda vez? E, logo, como pude ficar adormecido uma terceira
vez?” Oh, parece-me que Simão Pedro deve ter recordado sempre que seu Salvador
lhe disse: “Então, nem uma hora pudeste velar Comigo?”
Certamente não deixou de fazer a si mesmo essa pergunta durante toda a sua
vida; e Tiago e João devem ter sentido o mesmo.
Irmãos
e Irmãs, ficou adormecido algum de vós em circunstâncias similares enquanto a
Igreja de Cristo está sofrendo, enquanto a causa de Cristo está sofrendo,
enquanto o povo de Cristo está sofrendo, enquanto te está sobrevindo uma
tribulação que te ajudará a ter comunhão com Ele? Em vez de seres motivado a
uma devoção mais elevada e intensa, estás caindo num sono mais profundo? Se é
assim, Cristo, no Seu grande amor, pode desculpar-te, mas eu rogo-te que tu
mesmo não te comeces a desculpar. Não, levantai-vos, Irmãos, e “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação.”
A
amabilidade do Salvador para com os Seus discípulos deve ter repreendido
grandemente o torpor deles. Segundo entendo da narração, nosso Senhor
aproximou-Se dos Seus discípulos três vezes, e na terceira ocasião encontrou-os
ainda carregados de sono, assim que Se sentou junto deles, e lhes disse: “Dormi agora, e repousai.” Aí Se sentou Ele a aguardar
pacientemente a chegada do traidor; sem esperar nenhuma ajuda ou simpatia dos
Seus discípulos, a não ser simplesmente velando por eles como eles não velariam
com Ele, orando por eles como eles não orariam por eles mesmos, e deixando que
dormissem outro momento enquanto se dispunha a encontrar-se com Judas e com a
turba da ralé que logo O rodearia. O nosso Mestre, na Sua grande ternura,
algumas vezes nos consente sonos como esses; contudo, poderíamos ter de os
lamentar e desejar ter tido suficiente força de mente e ardor de coração para
permanecer acordados, e velar com Ele nos Seus momentos de aflição. Parece-me
que, de todos os onze discípulos bons, não houve nenhum que permanecesse
acordado. Houve um vil traidor, e ele sim estava bem acordado. Nunca ficou
adormecido; estava suficientemente acordado para vender o seu Mestre e para
atuar como guia daqueles que vieram para capturá-Lo.
Penso
também que, ao menos parcialmente, como consequência desse torpor deles, num
breve lapso, “Então, todos os discípulos, deixando-O, fugiram.”
Pareceram, por um tempo, ter perdido no sono o seu apego ao seu Senhor, e ao despertar
como de um sono perturbador com muita dificuldade sabiam o que faziam e fugiram
atropeladamente! Todas as ovelhas foram dispersadas e o Pastor ficou sozinho,
cumprindo assim a antiga profecia: “Ferirei o pastor, e as
ovelhas do rebanho se dispersarão”; e aquela outra palavra: “Eu, sozinho, pisei no lagar, e dos povos ninguém houve Comigo.”
Despertai, Irmãos e Irmãs, pois de outra maneira também vós podereis abandonar
ao vosso Mestre; e na hora em que deveríeis demonstrar mais a vossa fidelidade,
poderia ser que o vosso estado de torpor de coração vos leve à rebeldia, e a
abandonar ao vosso Senhor. Que Deus nos conceda que assim não suceda!
IV.
Agora concluo com uma palavra de advertência que já quase antecipei. VAMOS, EM
PENSAMENTO, AO GETESÊMANE PARA QUE JUDAS NOS SIRVA DE ADVERTÊNCIA. Permiti que
eu vos leia a última parte do texto: “Judas, que O traía,
também conhecia aquele lugar, porque Jesus muitas vezes Se ajuntava ali com os Seus
discípulos.”
“Judas, que O traía, também conhecia aquele lugar.” Sim,
provavelmente ele tinha passado ali toda a noite, muitas vezes, com Cristo.
Judas tinha-se sentado em círculo com os outros discípulos em torno do seu
Senhor em algum dos socalcos cobertos de oliveiras, e tinha escutado as Suas
prodigiosas palavras à ténue luz da Lua. Ele tinha ouvido orar aí ao seu Senhor
com frequência. “Judas, que O traía”, tinha-O ouvido
orar em Getesêmane. Ele conhecia os tons da Sua voz, a paixão da Sua súplica, a
intensa agonia desse grande coração de amor quando era derramado em oração. Sem
dúvida, uniu-se aos outros discípulos quando disseram: “Senhor,
ensina-nos a orar.”
“Judas, que O traía, também conhecia aquele lugar.” Ele
poderia haver-nos assinalado o sítio preciso onde o Salvador preferia estar,
esse ângulo no socalco, esse pequeno lugar afastado onde o Mestre estava
acostumado a procurar um assento para Se sentar e ensinar ao grupo escolhido em
torno Dele. Sim, Judas conhecia o lugar; e era devido a que conhecia o lugar
que foi capaz de trair a Cristo; pois, se não tivesse sabido onde estava Jesus,
não teria podido levar ali aos soldados.
Parece-me
algo muito terrível que essa familiaridade com Cristo tenha capacitado a esse
homem para se converter num traidor; e é ainda certo, algumas vezes, que a
familiaridade com a religião pode capacitar os homens a converterem-se em
apóstatas. Oh, se houvesse um Judas aqui, eu falar-lhe-ia muito solenemente! Tu
conheces o lugar; sabes tudo sobre o governo e à ordem da igreja, e podes ir
contar bonitas histórias a respeito dos erros cometidos por alguns dos servos
de Deus que não errariam se pudessem evitá-lo. Sim, tu conheces os membros da igreja;
tu sabes onde há algum defeito no caráter e alguma debilidade de espírito; tu
sabes como ir e divulgar a história deles entre os mundanos, e tu podes fazer
muito dano que não poderias fazer se não tivesses conhecido o lugar! Sim, e tu
conheces as Doutrinas da Graça, pelo menos, numa medida de conhecimento mental,
e sabes como as retorcer para as fazer ver ridículas, essas eternas Verdades de
Deus que encantam os corações dos anjos e dos redimidos dentre os homens! Como
tu as conheces tão bem, sabes como as parodiar, e como as caricaturar e como
fazer que a própria Graça de Deus pareça uma farsa!
Sim,
tu conheces o lugar; tu sentaste-te à mesa do Senhor, e ouviste os santos
quando falam dos seus arroubos e do seu êxtase; e tu pretendias fingir que participavas
deles. Assim tu sabes como regressar para o mundo e representar a verdadeira
piedade como algo que é pura dissimulação e hipocrisia; e tu fazes estranhas
brincadeiras desses segredos extremamente solenes dos quais um homem com muita
dificuldade falaria com os seus semelhantes porque são as transações privados entre
a sua alma e o seu Deus.
Dificilmente
posso fazer ideia de quão terrível será a condenação daqueles que, depois de
fazer uma profissão de religião, prostituíram o seu conhecimento da obra
interna da Igreja de Deus, e a converteram em material para novelas nas quais o
Evangelho de Cristo é exibido para escárnio! Sem embargo, houve tais homens que
não se contentaram sendo como pássaros que sujaram os seus próprios ninhos, já
que também saíram e tentaram sujar o ninho de cada coração crente que pudessem
alcançar. Que coisa tão terrível seria que algum de nós, aqui, conhecesse o
lugar e por isso traísse o Salvador! Conheces o lugar de oração privada, ou
pensas que o conheces? Conheces o lugar onde vão os homens quando a sombra de
uma tribulação vindoura se está projetando diante deles? Pensas que sabes algo
a respeito da comunhão com Cristo nos Seus sofrimentos? Mas, o que aconteceria
se a avareza do ouro dominasse, tal como o fez em Judas, esse natural apego que
sentes por Cristo e pelas melhores coisas? E o que passaria se até mesmo o
Getesêmane, como um abismo, abrisse amplamente as suas fauces para te engolir?
É algo terrível para ser contemplado mas, contudo, poderia ser verdade, pois “Judas, que O traía, também conhecia aquele lugar.”
Não
posso tolerar pensar que alguém de vós esteja familiarizado com as
interioridades deste Tabernáculo, e sem embargo, que traia a Cristo; que tu
sejas um daqueles que se congregam em torno desta mesa da comunhão, que tu
estejas familiarizado com todo o amor e as ternas expressões que costumam ser
usadas aqui, e contudo, que depois de tudo abandones a nosso Senhor e Salvador,
Jesus Cristo! Fazei circular a pergunta dos discípulos, e que cada um a formule:
“Sou eu, Senhor? Sou eu?”—
“Quando alguém se desvia
do caminho de Sião,
(Ai, quantos o fazem!)
Parece-me que ouço dizer
ao Salvador,
‘Abandonar-me-ás Tu
também?’
Ah, Senhor!, com um
coração como o meu,
A menos que me segures
firmemente,
Penso que me sinto
fraquejar,
E que comprovarei ser
como eles por fim.”
Portanto,
sustem-me, oh Senhor, e estarei seguro; guarda-me até ao fim, por Teu amado
Filho, nosso Senhor Jesus Cristo! Ámen.
Tradução de Carlos António da Rocha
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Esta tradução é de
livre utilização, desde que a sua ortografia seja respeitada na íntegra porque
já está traduzida no Português do Novo Acordo Ortográfico e que não seja nunca
publicada nem utilizada para fins comerciais; seja utilizada exclusivamente
para uso e desfruto pessoal.
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