… Mas o melhor de tudo é crer em Cristo! Luís Vaz de Camões (c. 1524 — 1580)

sábado, 7 de janeiro de 2017

Sermão n.º 52

C. H. Spurgeon
Sermão n.º 52
O livre-arbítrio: um escravo” (Free Will—A Slave), pregado no domingo, 2 de dezembro de 1855, por Charles Haddon Spurgeon, na Capela New Park Street, Southwark, Londres.

E não quereis vir a mim, para terdes vida.” (Jo 5:40, ARC, Pt)

Este é um dos poderosos canhões dos arminianos, colocado sobre as suas muralhas, e frequentemente disparado com um terrível ruído contra os pobres Cristãos chamados Calvinistas Eu pretendo silenciar esse canhão no dia de hoje, ou, melhor, dispará-lo contra o inimigo, pois nunca lhes pertenceu. O canhão não foi construído na fundição dos arminianos, e o seu objetivo, pelo contrário, era o ensino de uma doutrina totalmente oposta àquela que os arminianos sustentam. Normalmente, quando se explica este versículo, as divisões são: primeiro, o que o homem tem como vontade. Segundo, que ele é inteiramente livre. Terceiro, que os homens devem decidir por eles mesmos vir a Cristo, doutro modo, não serão salvos. Porém, nós não o dividiremos dessa maneira, mas, esforçar-nos-emos por analisar de maneira objetiva este versículo, sem concluir apressadamente que ensina a doutrina do livre-arbítrio, simplesmente, porque contém palavras tais como “querer” e “não querer.” Já se tem demonstrado além de toda a controvérsia, que o livre-arbítrio é um absurdo. A vontade não tem liberdade como tampouco a eletricidade tem peso. São coisas completamente diferentes. Podemos crer na liberdade de ação do indivíduo, porém o livre-arbítrio é algo simplesmente ridículo. Toda a gente sabe que a vontade é dirigida pelo entendimento, que é levada à ação pelos motivos, que é guiada por outras partes da alma, e que é uma potência secundária. Tanto a filosofia como a religião descartam imediatamente a ideia pura do livre-arbítrio; e eu estou de acordo com a rotunda afirmação de Martinho Lutero que diz: “Se algum homem atribui uma parte da salvação, ainda que seja a mais pequena parte, ao livre-arbítrio do homem, não sabe absolutamente nada a respeito da Graça, e não tem o devido conhecimento de Jesus Cristo.” Pode parecer um conceito duro, mas aquele que crê com plena convicção que o homem se volta para Deus pelo seu próprio livre-arbítrio, não pode ter recebido esse ensino de Deus, pois esse é um dos primeiros princípios que aprendemos quando Ele começa a trabalhar em nós: que não temos nem vontade nem poder, mas que ambos os recebemos dEle; que Ele é “o Alfa e o Ómega” na salvação dos homens.


As nossas considerações no dia de hoje serão as seguintes: Primeiro— todos os homens estão mortos, porque o versículo diz: “E não quereis vir a Mim, para terdes vida.” Segundo— que há vida em Jesus Cristo: “E não quereis vir a Mim, para terdes vida.” Terceiro— que há vida em Jesus Cristo para todo aquele que vem por ela: “E não quereis vir a Mim, para terdes vida,” implicando que todos os que venham, terão vida. E quarto— a substância do versículo radica nisto, que nenhum homem por natureza jamais virá a Cristo, pois o versículo diz: “E não quereis vir a Mim, para terdes vida.” Longe de afirmar que os homens por sua própria vontade farão alguma vez isso, nega-o de maneira aberta e categórica, dizendo: “E NÃO QUEREIS vir a Mim, para terdes vida.” Então, queridos irmãos, estou a ponto de gritar: Não estão conscientes, por acaso, todos os que acreditam no livre-arbítrio de que se estão atrevendo a desafiar a inspiração da Escritura? Não terão qualquer entendimento todos aqueles que negam a doutrina da Graça? Têm-se apartado tanto de Deus que deturpam o versículo para demonstrar o livre-arbítrio; visto que, o versículo diz: “E NÃO QUEREIS vir a Mim, para terdes vida.”



I. Então, em primeiro lugar, o nosso versículo indica QUE OS HOMENS ESTÃO MORTOS POR NATUREZA.



Nenhum ser necessita de ir buscar vida se tiver vida em si mesmo. O versículo fala de maneira muito forte quando afirma: “E não quereis vir a Mim, para terdes vida.” Ainda que não o diga com palavras, efetivamente, ele está afirmando que os homens necessitam de outra vida além daquela têm em si mesmos. Queridos leitores, todos nós estamos mortos a menos que sejamos gerados para uma viva esperança. Em primeiro lugar, todos nós, por natureza, estamos legalmente mortos— “no dia em que dele comeres, certamente morrerás,” disse Deus a Adão; e ainda que Adão não tivesse morrido nesse momento fisicamente, morreu legalmente; quer dizer, a sua morte ficou registada contra ele. Logo que no Old Bailey[1] o juiz cobre a cabeça com um quepe negro e pronuncia a sentença, o réu é considerado morto segundo a lei. Ainda que possa transcorrer um mês até que ele seja levado ao cadafalso para que se cumpra a sentença, a lei considera-o um homem morto. É impossível que esse homem realize qualquer transação. Não pode herdar nada, nem pode fazer um testamento; ele não é nada— é um homem morto. O seu país considera que ele não tem nenhuma vida. Se houver eleições— ele não pode votar porque está considerado como morto. Ele está encerrado na sua cela de condenado à morte, e é um morto vivo. Ah! E vós, pecadores ímpios, que nunca haveis tido vida em Cristo, vós estais vivos hoje, por uma suspensão temporária da sentença, mas deveis saber que estais legalmente mortos; que Deus considera-vos assim, no dia em que o vosso pai Adão tocou no fruto, e quando vós mesmos pecastes, Deus, o Eterno Juiz, põe um quepe negro de Juiz e tem-vos condenado? Vós tendes opiniões muito elevadas a respeito da vossa própria posição, e da vossa bondade, e da vossa moralidade —onde está tudo isso? A Escritura diz que “já tendes sido condenados.” Não tendes de esperar pelo dia do julgamento para escutar a sentença —ali será a execução da sentença— vós “já tendes sido condenados.” No momento em que pecastes, os vossos nomes foram inscritos no livro negro da justiça; cada um de vós foi sentenciado à morte por Deus, a menos que encontre um substituto, na pessoa de Cristo, pelos seus pecados. O que pensaríeis vós, se entrásseis em Old Bailey, na cela de um condenado à morte, e vísseis o réu sentado na sua cela, rindo-se, muito feliz? Vós diríeis: “Esse homem é um insensato, pois já foi condenado e vai ser executado; todavia, quão feliz está.” Ah! E quão insensato é o homem do mundo, o qual, ainda que tenha uma sentença registada contra si, vive numa alegria ruidosa e em hilaridade! Pensas tu que a sentença de Deus não se cumprirá? Pensas que o teu pecado, que está escrito com uma pluma de ferro sobre as rochas para sempre, não contém horrores no seu interior? Deus diz que já foste condenado. Se tão somente pudesses senti-lo, isto misturaria gotas amargas na tua doce taça de gozo; as tuas danças chegariam ao fim, a tua risada converter-se-ia em pranto, se te recordasses que já foste condenado. Todos nós deveríamos chorar se gravássemos isto nas nossas almas: que por natureza não temos vida diante dos olhos de Deus; que estamos verdadeiramente, positivamente condenados; que temos uma sentença de morte contra nós, e que somos considerados por Deus tão mortos, como se, na verdade, já tivéssemos sido lançados no Inferno; aqui, já fomos condenados pelo pecado, apenas ainda não sofremos o correspondente castigo, mas a sentença já está escrita e estamos legalmente mortos, nem podemos encontrar vida, a menos que encontremos vida legal na pessoa de Cristo, do que falaremos mais adiante.



Mas, além de estarmos legalmente mortos, também estamos mortos espiritualmente. Porque, além de que a sentença foi registada no livro, também foi registada no coração; entrou na consciência; obrou na alma, na razão, na imaginação, enfim, em tudo. “No dia que dele comeres, certamente morrerás,” cumpriu-se, não somente pela sentença que foi registada, mas por algo que ocorreu em Adão. Exatamente, como num determinado momento, quando este corpo morrer, o sangue deter-se-á, cessará de pulsar o pulso, os pulmões deixarão de respirar, assim também no dia em que Adão comeu do fruto, a sua alma morreu; a sua imaginação perdeu o seu maravilhoso poder de elevar-se para as coisas celestiais e de ver o Céu, a sua vontade perdeu o poder que tinha de escolher sempre o que fosse bom, o seu discernimento perdeu toda a habilidade anterior de discernir entre o bem e o mal, de maneira decidida e infalível, ainda que algo disso fosse retido pela consciência; a sua memória ficou contaminada, sujeita a recordar o mal e a esquecer o bom; todas as suas faculdades perderam o poder da vitalidade moral. A bondade, que era a vitalidade das suas faculdades— isso desapareceu. A virtude, a santidade, a integridade, todas estas coisas, que eram a vida do homem; mas quando elas desapareceram, o homem morreu. E agora, cada homem, está “morto nos seus delitos e pecados” espiritualmente. No homem carnal a alma não está menos morta do que está um corpo quando é depositado na sepultura; está verdadeira e positivamente morto— como se fosse uma metáfora, pois Paulo não está falando de maneira metafórica, quando afirma: “E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados.” (Ef 2:1, ARC, Pt) Porém, queridos leitores[2], novamente, queria poder pregar aos vossos corações em relação a este tema. Foi algo penoso ter de recordar-vos que a morte já está registada; mas agora tenho de falar-vos e dizer-vos que a morte já ocorreu, efetivamente, nos vossos corações. Já não sois o que antes éreis; não sois o que éreis em Adão, nem sois o que éreis quando fostes criados. O homem foi criado puro e santo. Vós não sois as criaturas perfeitas que alguns presumem ser; vós estais completamente caídos, completamente extraviados, cheios de corrupção e imundície. Oh! Por favor não escuteis o canto da sereia de quem vos fala da vossa dignidade moral, ou da vossa elevada capacidade nos assuntos da salvação. Não sois perfeitos; essa terrível palavra “ruína,” está escrita nos vossos corações; e a morte está selada no vosso espírito. Não concebas, ó homem moral, que tu serás capaz de comparecer perante Deus só com a tua moralidade, pois tu não és outra coisa que um cadáver embalsamado em legalidade, um esqueleto vestido elegantemente, mas, ainda, corrupto aos olhos de Deus. E também não o penses tu, ó possuidor duma religião natural! Que tu te podes tornar aceitável perante Deus mediante a tua própria força e poder. Vamos, homem! Tu estás morto! E tu podes maquilhar um morto tão gloriosamente como te agrade, mas não deixará de ser uma solene zombaria. Ali está a rainha Cleópatra —com uma coroa sobre a sua cabeça, vestida com os seus mantos reais, sendo velada na sala mortuária; mas que calafrios percorrem o teu corpo quando passas junto a ela. Até na sua morte, a vemos bela— mas quão desagradável é estar junto a um morto, até mesmo quando se trate duma rainha morta, muito celebrada pela sua beleza majestosa! Assim também tu podes ter uma beleza gloriosa e ser atrativo, amável e simpático; pões sobre a tua cabeça a coroa da honestidade, e te vestes com os vestidos da retidão, mas a menos que Deus te tenha dado vida, oh, homem! A menos que o Espírito tenha obrado na tua alma, és aos olhos de Deus tão obnóxio, como esse frio cadáver é desagradável para ti. Tu não escolherias viver com um cadáver que compartilhasse a tua mesa; tampouco a Deus Lhe agrada ter-te perante os Seus olhos. Ele está irado contigo em cada dia, pois tu estás em pecado— tu estás morto. Oh! Deves acreditar nisto; deixa que penetre na tua alma; aplica-o a ti, pois é muito verdade que estás morto, tanto espiritualmente como legalmente.



O terceiro tipo de morte é a consumação das outras duas. É a morte eterna. É a execução da sentença legal; é a consumação da morte espiritual. A morte eterna é a morte da alma; tem lugar depois que o cadáver foi colocado na tumba, depois que a alma saiu dele. Se a morte legal é terrível, é devido às suas consequências; e se a morte espiritual é espantosa, é devido a tudo o que vem depois. As duas mortes das quais falámos são a raiz, e essa morte que virá é a flor que nasce dessa raiz. Oh! queria ter as palavras apropriadas para poder descrever-vos o que é a morte eterna. A alma tem-se apresentado perante o seu Criador; o livro foi aberto; a sentença foi pronunciada: “apartai-vos de mim, malditos” sacudiu o universo, e obscureceu os astros com a irritação do Criador; a alma foi lançada nas profundidades, onde permanecerá, com outras, em morte eterna. Oh! Quão horrível é agora a sua condição. A sua cama é uma cama de fogo; os espectáculos que contempla são de tal natureza que aterrorizam o seu espírito; os sons que escuta são gritos assustadores, lamentações e gemidos, e lamentos dolorosos; e o seu corpo só conhece uma dor miserável! Está sumido numa dor inexprimível, numa miséria que não conhece o descanso. A alma olha para cima. A esperança não existe —foi-se. Olha para baixo cheia de terror e medo; o remorso apossou-se da sua alma. Olha para a direita —e as paredes adamantinas[3] do destino mantêm-na dentro dos seus limites para torturá-la. Olha para a sua esquerda— e ali os muros de fogo ardente proíbem a menor possibilidade de colocar uma escada para poder escapar. Procura em si mesma o consolo, mas um verme que remói dolorosamente penetrou na sua alma. Olha ao seu redor —e não encontra nenhum amigo que a possa ajudar, nem a nenhum consolador, mas só atormentadores em abundância. Não tem ao seu dispor nenhuma esperança de libertação; escutou a chave eterna do destino girar na sua terrível fechadura, e viu que Deus toma a chave e a lança no fundo do abismo da eternidade onde não poderá ser encontrada outra vez. Não tem esperança, não tem fuga, não há possibilidade de libertação; deseja ardentemente a morte, mas a morte é a sua encarniçada inimiga e não virá; anela que a não-existência a trague, mas esta morte eterna é pior que a aniquilação. Deseja a exterminação como o trabalhador anseia o seu dia de descanso; Espera ser tragado por um nada da mesma maneira que um condenado às galés anela a sua liberdade. Mas nada disto acontece —está eternamente morta. Quando a eternidade tiver percorrido muitíssimas vezes os seus ciclos eternos, a alma estará ainda morta. A eternidade não tem fim; a eternidade só pode soletrar-se com a eternidade. E depois de tudo isso, a alma verá um aviso escrito sobre a sua cabeça: “Tu estás condenada para sempre.” Escutas uivos que durarão por toda a eternidade; vês chamas que não se podem extinguir; sofres dores que não podem ser mitigadas; ouves uma sentença que não retumba como os trovões da terra, que logo se desvanecem —mas sim vai aumentando, mais e mais— sacudindo os ecos da eternidade —fazendo com que milhares de anos se sacudam novamente com o horrível trovão do seu terrível som —”Apartai-vos de mim! Apartai-vos de mim! Apartai-vos de mim! Malditos!” (Mt 25:41) Esta é a morte eterna.



II. Em segundo lugar, EM CRISTO Jesus HÁ VIDA, pois Ele diz: “ E não quereis vir a Mim para terdes vida.” Não há vida em Deus Pai para um pecador; não há vida em Deus Espírito Santo para um pecador, à parte de Jesus. A vida de um pecador está em Cristo. Se pensas que no Pai podes encontrar a vida à parte do Filho, ainda que Ele ame os Seus eleitos, e decrete que viverão, não é assim; a vida está somente no Filho. Se tomas a Deus, o Espírito Santo, à parte de Jesus Cristo, apesar de que é o Espírito que nos dá a vida espiritual, todavia a vida está em Cristo, a vida está no Filho. Nem nos atreveríamos, nem poderíamos pedir a vida espiritual a Deus, o Pai, ou a Deus, o Espírito Santo. A primeira coisa que Deus nos ordena que façamos quando nos tira do Egito é comer a Páscoa— essa é a primeira coisa. O primeiro meio pelo qual recebemos a vida é comendo a carne e o sangue do Filho de Deus; vivendo nEle, confiando nEle, crendo na Sua graça e no Seu poder. A nossa segunda consideração é —há vida em Cristo. Mostrar-lhes-emos que há três tipos de vida em Cristo, da mesma maneira como há três tipos de morte.



Em primeiro lugar há vida legal em Cristo. Da mesma maneira como todos os homens pela natureza, considerados em Adão, tinham uma sentença de condenação ditada contra eles no momento em que Adão pecou, e mais especialmente, no momento da sua própria primeira transgressão, assim também, eu, se sou um crente, e tu, se confias em Cristo, recebemos uma sentença legal absolutória, ditada, a nosso favor, por meio da obra de Jesus Cristo. Oh, pecador condenado! Tu podes estar aqui hoje, condenado como o prisioneiro do Newgate[4]; mas antes que passe este dia, podes estar tão livre de culpa como os anjos do céu. Há vida legal em Cristo, e, bendito seja Deus! Alguns de nós a temos. Sabemos que os nossos pecados são perdoados porque Cristo sofreu o castigo merecido por esses pecados; sabemos que nós mesmos não poderemos ser castigados, pois Cristo sofreu em nosso lugar. A Páscoa foi sacrificada por nós; o dintel e os postes da porta foram aspergidos e o anjo exterminador nos não pode tocar jamais. Para nós não há Inferno, ainda que ele esteja ardendo com terríveis chamas. Não importa que Tofet esteja preparado há muito tempo, e tenha um bom fornecimento de lenha e muito fumo, nós nunca iremos para lá —Cristo morreu por nós, em nosso lugar. O que importa que haja lá instrumentos de tortura horrível? O que importa se há lá uma sentença que produz os mais horríveis ecos de sons ensurdecedores? Todavia, nem os suplícios, nem o calabouço, nem o trovão, são para nós! Em Cristo Jesus fomos libertados. “Agora, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito.” (Rm 8:1)



Pecador! Estás tu, legalmente condenado esta manhã? Sentes que é assim? Então, deixa-me dizer-te que a fé em Cristo far-te-á saber que foste absolvido legalmente. Amados irmãos, não é uma fantasia que estamos condenados pelos nossos pecados, é uma realidade. Tampouco é uma fantasia que fomos absolvidos, é uma realidade. Se um homem vai morrer na forca, mas recebesse um perdão de última hora, ele sentirá que é uma grande realidade. Diria: “fui perdoado completamente, já não me podem condenar outra vez.” Assim me sinto eu.



“Livre de pecado, agora, caminho em liberdade,

O sangue do Salvador é o meu completo perdão,

Aos Seus amados pés me assento,

Para render-Lhe homenagem, sendo eu um pecador redimido.”



Irmãos, ganhamos vida legal em Cristo, e não podemos perder essa vida legal. A sentença foi ditada contra nós uma vez: mas, agora, foi anulada. Está escrito: “AGORA, POIS, NENHUMA CONDENAÇÃO HÁ,” e essa anulação é tão válida para mim dentro de cinquenta anos, como o é agora. Não importa quantos anos vivamos, sempre estará escrito: “Agora, pois, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus.”



Continuando, em segundo lugar, há vida espiritual em Cristo Jesus. Como o homem está morto espiritualmente, Deus tem uma vida espiritual para ele, pois não há nenhuma necessidade que não possa ser suprida por Jesus, não há nenhum vazio no coração, que Cristo não possa encher; não há nenhum lugar solitário que Ele não possa povoar, não há nenhum deserto que Ele não possa fazer florescer como uma roseira. Oh, vós pecadores mortos! Que estais mortos espiritualmente, há vida em Cristo Jesus, pois temo-lo visto —sim! Estes olhos o têm visto— que os mortos revivem; temos conhecido o homem cuja alma estava totalmente corrompida, mas que pelo poder de Deus tem procurado a justiça; temos conhecido o homem cuja visão era completamente carnal, cuja luxúria o dominava plenamente, e cujas paixões eram muito poderosas, mas que, de repente, por um irresistível poder do céu, consagrou-se a Cristo, e converteu-se num filho de Jesus. Sabemos que há vida em Cristo Jesus, de uma ordem espiritual; sim, e mais ainda, nós mesmos, nas nossas próprias pessoas, temos sentido essa vida espiritual. Recordamo-nos muito bem quando estávamos na casa de oração, tão mortos como o próprio assento no qual estávamos sentados. Tínhamos escutado durante muito, muito tempo o som do Evangelho, sem que surtisse qualquer efeito, quando de repente, como se os nossos ouvidos fossem abertos pelos dedos de algum anjo poderoso, um som penetrou no nosso coração. Cremos ter escutado Jesus, que dizia: “Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça.” Uma mão irresistível apertou o nosso coração até arrancar-lhe uma oração. Nunca antes tínhamos orado assim. Clamámos: “Oh Deus!, tem misericórdia de mim, pecador.” (Mt 11:15) Alguns de nós não temos sentido uma mão que nos apertava como se tivéssemos sido surpreendidos num vício, e as nossas almas derramaram gotas de angústia. Essa miséria era o sinal de uma nova vida. Quando uma pessoa se está afogando não sente tanto a dor como quando consegue sobreviver e está no processo de recuperação. Oh!, recordamos essas dores, esses gemidos, essa luta encarniçada que a nossa alma experimentou quando veio a Cristo. Ah!, podemos recordar quando recebemos a nossa vida espiritual tão facilmente como o pode fazer um homem que tenha ressuscitado do seu sepulcro. Podemos supor que Lázaro recordava a sua ressurreição, embora não recordasse todas as circunstâncias que a rodearam. Assim nós também, embora tenhamos esquecido muito, certamente recordamos quando nos entregámos a Cristo. Podemos dizer a cada pecador, sem importar quão morto esteja, que há vida em Cristo Jesus, ainda que esteja podre e cheio de corrupção na sua sepultura. O mesmo que levantou Lázaro, levantou-nos a nós; e Ele pode dizer-te, ainda, a ti, pecador: “Lázaro!, vem para fora.”



Em terceiro lugar, há vida eterna em Cristo Jesus. Oh!, e se a morte eterna é terrível, a vida eterna é abençoada; pois Ele tem dito: “E onde Eu estiver, ali também estará o Meu servidor.” “Pai, aqueles que Me deste, quero que onde Eu estou, também eles estejam Comigo, para que vejam a Minha glória.” “Eu dou-vos vida eterna; e jamais perecerão.” Então, qualquer arminiano que queira pregar a respeito desse versículo deve comprar um par de lábios de borracha da Índia que o ajude a estirar os seus lábios de maneira especial; nunca poderia dizer toda a verdade sem retorcer a sua boca de uma maneira muito misteriosa. A vida eterna —não uma vida que se possa perder, mas a vida eterna. Se perdi a minha vida em Adão, recobrei-a em Cristo; se me perdi a mesmo eternamente, encontrei-me a mim mesmo em Jesus Cristo. Vida eterna! Oh pensamento abençoado! Os nossos olhos brilham de gozo e as nossas almas ardem num êxtase ao pensar que temos a vida eterna.



Estrelas, apaguem-se! Deixai que Deus ponha o Seu dedo sobre vós —mas a minha alma viverá no gozo e na bem-aventurança. Oh Sol, obscurece o teu olho! —mas o meu olho verá “o Rei na sua formosura” enquanto que o teu olho não fará sorrir mais a Terra verde. E tu, Oh Lua, tinge-te de sangue! —mas o meu sangue nunca se tornará em nada; este espírito viverá quando tu tenhas deixado de existir. E tu, grandioso mundo! Tu podes desaparecer por completo tal como a espuma desaparece sobre a onda que a transporta— mas, eu tenho a vida eterna. Oh tempo! Tu podes ver as gigantescas montanhas morrer e esconderem-se nas suas sepulturas; podes ver as estrelas como figos muito maduros cair da árvore, mas tu, nunca, nunca, verás morrer o meu espírito.



III. Isto leva-nos ao terceiro ponto: A VIDA ETERNA É DADA A TODO AQUELE QUE VENHA À SUA PROCURA.



Nunca houve nenhuma pessoa que tenha vindo a Cristo procurando a vida eterna, a vida legal, a vida espiritual, que não a tenha recebido antes, em algum sentido, e isso foi-lhe manifestado, que a tinha, assim que ele veio. Tomemos um ou dois versículos— “pelo qual pode também salvar perpetuamente aos que por Ele se aproximam de Deus.” Todo o homem que venha a Cristo encontrará que Cristo o salva —não somente pode salvá-lo um pouco, libertá-lo dum pequeno pecado, libertá-lo de um pequeno juízo, carregá-lo por um pouco para em seguida descarregá-lo— mas pode salvá-lo completamente de todo o pecado, protegê-lo durante todo o juízo, até das maiores profundidades das suas aflições, durante toda a sua existência. Cristo diz a todo aquele que vem a Ele: “Vem, pobre pecador, não precisas perguntar se tenho poder para salvar. Eu não te vou perguntar quão tão afundado estás no pecado; Eu posso salva-te plenamente.” E não há ninguém na Terra que possa transpassar esse “plenamente[5]".



Agora, outro versículo: “quem a mim vem (notem que as promessas são quase sempre para os que vêm) não o lanço fora.” Todo aquele que venha encontrará aberta a porta da casa de Cristo —e a porta de Seu coração, também. Todo aquele que venha —digo-o no sentido mais amplo— encontrará que Cristo tem misericórdia dele. A coisa mais absurda do mundo é querer ter um Evangelho mais amplo que aquele que está contido na Escritura. Eu prego que todo homem que crê será salvo— que todo o homem que vem achará misericórdia.


O povo pergunta-me: “Mas suponhamos que um homem que não é eleito vem, será salvo?” Tu estás supondo um contra-senso e não te vou responder a isso. Se um homem não é eleito, nunca virá. Quando, com efeito, vem, essa é a melhor prova da sua eleição. Alguém diz: “Suponhamos que alguém vem a Cristo sem ser chamado pelo Espírito.” Detém-te, meu irmão, essa não é uma suposição válida, pois algo assim não pode acontecer; dizes isso só para me enredar, e não o vais lograr. Eu afirmo que todo aquele que vem a Cristo será salvo. Posso dizer isso como calvinista ou como hiper-calvinista, tão simplesmente como tu. Eu não tenho um Evangelho mais limitado que o teu; o meu único Evangelho está colocado sobre um alicerce sólido, enquanto que o teu está construído sobre areia e podridão. “Todo aquele que venha será salvo; porque nenhuma pessoa pode vir a Mim se o Pai o não trouxer.” (Jo 6:44)



“Mas,” objecta alguém, “suponhamos que todo o mundo queria vir, recebê-los-ia Cristo, a todos?” Certamente que sim, se viessem todos; mas não querem vir. Digo-vos que a todos os que venham— ai, até se fossem tão maus como os diabos, Cristo recebê-los-á; se toda a espécie de pecado e de sujidade fluísse dos seus corações como de um esgoto comum utilizado por todo mundo, Cristo recebê-los-á. Outro diz: “Quero saber sobre o resto das pessoas. Posso sair e dizer-vos —Jesus Cristo morreu por cada um de vós? Posso dizer: —há justiça para cada um de vós, há vida para cada um de vós?” Não; não podes. Podes dizer: há vida para todo aquele que vem. Mas se tu dizes que há vida para algum desses que não crêem, estarias dizendo uma mentira muito perigosa. Se lhes dizes que Jesus Cristo foi castigado pelos seus pecados, e todavia se perdem, estarias dizendo uma vil falsidade. Pensar que Deus pôde castigar a Cristo e em seguida castigá-los a eles —surpreende-me que te atrevas à impudência de dizeres isso! Um bom homem pregava uma vez que havia harpas e coroas no Céu para toda a sua congregação; e, logo concluiu, da maneira mais solene: “Meus queridos amigos, há muitos para quem estão preparadas estas coisas que nunca lá chegarão.” De facto, inventou essa história lamentável, e pôde ter sido outra qualquer história. Mas dir-vos-ei por quem ele devia ter chorado —devia ter chorado pelos anjos do Céu e por todos os santos, pois isso arruinaria o céu completamente.



Quando te reúnes no Natal, tu sabes, que se tiveres perdido o teu irmão David e o seu assento está vazio, dirás: “Bem, sempre desfrutámos do Natal juntos, mas agora não é igual; o pobre David está morto e enterrado!” Imaginai os anjos dizendo: “Ah!, este é um Céu formoso, mas nós não gostamos de ver todas essas coroas que estão acolá cobertas de teias de aranhas; não podemos suportar essa rua desabitada: não podemos contemplar aqueles tronos vazios.” E então, pobres almas, talvez começásseis a falar entre vós, dizendo: “nenhuma de nós está segura aqui, pois a promessa foi: ‘Eu dou às minhas ovelhas a vida eterna,’ e há muitas dessas ovelhas no Inferno, às quais Deus deu vida eterna. Há muitas pessoas pelas quais Cristo derramou o Seu sangue que estão ardendo no abismo, e se elas podem ser enviadas para ali, nós também podemos ser. Se não podermos confiar numa promessa, tampouco podemos confiar na outra.” Assim o céu perderia os seus alicerces, e cairia. Fora daqui com esse Evangelho que não tem sentido! Deus dá-nos um Evangelho seguro e sólido, construído sobre um pacto selado com factos e bem ordenado nas suas relações, sobre eternos propósitos e cumprimentos seguros.



IV. Chegamos agora ao quarto ponto, QUE POR NATUREZA NENHUM HOMEM VIRÁ A CRISTO, pois o versículo diz: “E não quereis vir a Mim, para terdes vida.” Eu afirmo, com apoio na autoridade da Escritura, por meio deste versículo, que não quereis vir a Cristo, para que possais ter vida. Digo-vos, poderia pregar-vos por toda a eternidade, poderia pedir emprestada a eloquência de Demóstenes ou do Cícero, mas vós não quereríeis vir a Cristo. Poderia pedir-vos de joelhos, com lágrimas nos meus olhos, e mostrar-vos os horrores do Inferno e os gozos do Céu, a suficiência de Cristo, e vossa própria condição perdida, mas nenhum de vocês quererá vir a Cristo por vós mesmos a menos que o Espírito que descansou em Cristo vos traga. É uma verdade universal que os homens na sua condição natural não querem vir a Cristo.



Mas parece-me que escuto a um destes enganadores que faz uma pergunta: “Mas, não poderiam vir se quisessem?” Meu amigo, vou responder-te noutra ocasião. Esse não é o tema que estamos analisando hoje. Estou falando de se querem, não, a respeito de se podem. Dai-vos conta, sempre que falam sobre o livre-arbítrio, que o pobre Arminiano em dois segundos começa a falar sobre o poder, mesclando dois conceitos que devem manter-se separados. Nós não vamos tratar desses dois temas conjuntamente; recusamos ter de pelejar com dois temas duma vez, se me permitirem isso. Noutra ocasião vou pregar sobre este versículo: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer.” (Jo 6:44, ACF) Mas hoje só estamos falando sobre o querer; e é um facto que os homens não querem vir a Cristo, para que possam ter vida. Poderíamos demonstrar isto por meio de muitos versículos da Escritura, mas só vamos tomar uma parábola. Vós recordais a parábola em que um certo rei preparou uma festa para o seu filho, e convidou um grande número de pessoas para que viessem; os bois e os animais cevados para a matança foram mortos e enviou os seus mensageiros para convidarem muitos para a ceia. Foram à festa os convidados? Ah, não; mas todos eles, como se se tivessem posto de acordo, começaram a dar desculpas. Um disse que se havia casado, e portanto não poderia assistir, ainda que ele poderia ter trazido a sua esposa com ele. Outro tinha comprado uma junta de bois e queria ver como trabalhavam; mas a festa era à noite, e não podia experimentar os seus bois na escuridão. Outro tinha comprado um pedaço de terreno, e queria vê-lo; mas é difícil pensar que ele tenha ido vê-lo com uma lanterna. Assim que todos deram desculpas e não quiseram assistir. Mas o rei estava decidido a ter a festa; por isso, disse: “Ide pelos caminhos e pelos valados e” convidai-os —alto! — não os convidai— forçai-os a entrar;” pois nem ainda mesmo os mendigos esfarrapados nos valados teriam querido vir se não tivessem sido forçados. Tomemos outra parábola: Um certo homem tinha uma vinha; e no momento oportuno enviou um dos seus servos para cobrar a sua renda. O que lhe fizeram? Golpearam o servo. Então enviou outro servo; e apedrejaram-no. Ainda enviou outro e mataram-no. E, finalmente, disse: “Enviarei o meu filho amado; possivelmente quando o virem a ele, ter-lhe-ão respeito.” Mas o que fizeram? Disseram: “Este é o herdeiro; vinde, matemo-lo, e apoderemo-nos da sua herança.” E assim o fizeram. O mesmo acontece com todos os homens por natureza. Veio o Filho de Deus, e todavia os homens rejeitaram-No. “E não quereis vir a Mim para que tenhais vida.” Tomaria muito tempo mencionar mais provas da Escritura. Não obstante, vamos referir-nos agora à grande doutrina da queda. Alguém que creia que a vontade do homem é inteiramente livre, e que pode ser salvo por meio dessa vontade, não crê na queda. Como já vos repeti muitas vezes, muito poucos pregadores da religião crêem, na verdade, completamente na doutrina da queda, ou crêem que quando Adão caiu fraturou o seu dedo mindinho, e não partiu o pescoço, arruinando toda a sua raça. Pois bem, amados irmãos, a queda destruiu o homem completamente. Não deixou de afetar a nenhuma faculdade; todas foram feitas em pedaços, todas foram contaminadas e envilecidas; como se fosse, num grandioso templo, ainda estão ali os pilares, partes da nave, alguma pilastra e uma ou outra coluna ainda permanecem também ali; mas tudo está destruído, ainda que alguns elementos ainda retenham a sua forma e a sua posição. A consciência do homem, algumas vezes, retém muito da sua sensibilidade, mas isso não significa que não esteja caída. A vontade tampouco escapou. E embora seja o “Alcaide[6] de Alma humana,” como Bunyan lhe chama, o Senhor Alcaide desencaminhou-se. O Senhor “Obstinado” esteve continuamente fazendo o mal. A vossa natureza caída não funciona; a vossa vontade, entre outras coisas, apartou-se claramente de Deus. Porém, dir-vos-ei a melhor prova disso; é o grande facto de que nunca haveis conhecido durante a vossa vida um cristão que vos tenha dito que veio a Cristo sem que primeiro mencionasse que Cristo veio a ele. Atrever-me-ia a dizer que vós tendes ouvido muitos bons sermões arminianos, mas nunca haveis ouvido uma oração arminiana, pois quando os santos oram, são a mesma coisa em palavra, obra e mente. Um arminiano posto de joelhos orará tão desesperadamente igual a um calvinista. Não pode orar sobre o livre-arbítrio: não há espaço para isso. Imaginai-o orando assim: “Senhor, dou-Te graças porque não sou como esses pobres calvinistas presumidos. Senhor, eu nasci com um glorioso livre-arbítrio; eu nasci com o poder de ir a Ti pela minha própria vontade; eu aproveitei a minha graça. Se todos tivessem feito o mesmo com a sua graça como eu o tenho feito, todos poderiam ter sido salvos. Senhor, eu sei que Tu não podes fazer-nos querer, se nós mesmos assim não o quisermos. Tu dás graça a todos; alguns não a utilizam, mas eu, sim. Há muitos que irão para o Inferno apesar de terem sido comprados com o sangue de Cristo, como eu fui; a eles, também, lhes foi dado o Espírito Santo; tiveram uma oportunidade muito boa, e foram tão abençoados como o fui eu. Não foi a Tua graça a que fez a diferença; aceito que serve de muito, mas fui eu que fiz a diferença; eu fiz bom uso do que me foi dado, por outro lado, os outros não fizeram assim; essa é a principal diferença entre eles e eu.” Essa é uma oração diabólica, pois ninguém mais que Satanás poderia orar assim. Ah!, quando eles estão pregando e falando cuidadosamente, podem entremeter a doutrina errónea; mas, quando se trata de orar, a verdade salta, não podem evitá-lo. Se um homem falar muito devagar, pode fazê-lo muito bem; mas, quando fala rapidamente, o velho acento do seu sotaque, de onde nasceu, revela-se. Pergunto-vos outra vez, haveis conhecido, alguma vez, algum cristão que tenha dito: “Eu vim a Cristo sem o poder do Espírito?” Se, com efeito, alguma vez haveis conhecido um homem assim, não deveis ter a menor hesitação em perguntar-lhe: “Meu prezado senhor, eu também verdadeiramente creio, mas também creio que te afastaste do poder do Espírito, e que não sabes nada sobre o tema do poder do Espírito, e que estás em fel de amargura e no laço da iniquidade.” Será que ouço algum cristão, dizendo: “Eu procurei Jesus antes que Ele me buscasse? “Não, amados irmãos; cada um de nós deve pôr a sua mão sobre o seu coração e dizer:



“A graça ensinou a orar a minha alma,

E também fez com que os meus olhos derramassem lágrimas;

Foi a graça que sempre me guardou,

E nunca me abandonará.”



Há alguém aqui, apenas um só, homem ou mulher, jovem ou velho, que possa dizer: “Eu procurei Deus antes que Ele me buscasse?” Não; e até tu que és um pouco arminiano vais cantar:



“Oh, sim!, amo verdadeiramente a Jesus,

Apenas porque Ele me amou primeiro.”



E agora outra pergunta. Acaso não nos damos conta, até depois de termos vindo a Cristo, que a nossa alma não é livre, mas que é guardada por Cristo? Acaso não nos damos conta, até mesmo agora, que o querer não está presente em nós? Há uma lei nos nossos membros, que está em guerra contra a lei das nossas mentes. Agora, os que estão espiritualmente vivos sentem que a sua vontade é contrária a Deus, o que diremos do homem que está “morto em delitos e pecados”? Seria uma coisa maravilhosamente absurda pôr ambos ao mesmo nível; e seria até ainda mais absurdo pôr ao que está morto antes do que está vivo. Não; o versículo é verdadeiro, a experiência imprimiu-o nos nossos corações. “E não quereis vir a Mim, para terdes vida.”



Agora, devemos dizer-vos as razões pelas quais os homens não querem vir a Cristo. Primeiro, porque nenhum homem por natureza pensa que necessita de Cristo. Por natureza, o homem concebe que não necessita de Cristo; pensa que está vestido com um manto de justiça própria, que está bem vestido, que não está nu, que não necessita que o sangue de Cristo o lave, que não está vermelho nem negro, e que não necessita de qualquer graça para o purificar. Nenhum homem se dá conta da sua necessidade espiritual antes que Deus lha mostre; e até que o Espírito Santo lhe tenha revelado a necessidade que ele tem de perdão, nenhum homem procurará o perdão. Posso pregar a Cristo eternamente, mas a menos que sintais que necessitais de Cristo, jamais vireis a Ele. Pode ser que um médico tenha um consultório muito bom, e uma farmácia bem sortida, mas ninguém comprará os seus remédios até que sinta a falta deles[7].



A razão seguinte é que os homens não gostam da maneira como Cristo os salva. Um diz: “Eu não gosto porque Ele me torna santo; não posso beber ou jurar se Ele me salvar.” Outro afirma: “Requer de mim que seja tão preciso e puritano, e eu gosto de ter um pouco mais de liberdade.” Outro não gosta porque é muito humilhante; não gosta porque a “porta do Céu” não é suficientemente alta para ele passar por ela com a cabeça erguida, e não gosta de ter de se inclinar. Essa é a razão principal pela qual não quereis vir a Cristo, porque não podeis ir a Ele com as cabeças erguidas; pois Cristo faz inclinar-vos quando vindes a Ele. Outro não gosta que a salvação seja um assunto da graça desde o começo até ao fim. “Oh!” diz: “Se eu pudesse ter um pouco da honra.” Mas, quando se inteira que é tudo de Cristo ou nada de Cristo, um Cristo completo ou sem Cristo, diz: “não vou,” e gira sobre os seus talões e vai-se embora. Ah!, pecadores orgulhosos, vós não quereis vir a Cristo. Ah!, pecadores ignorantes, vós não quereis vir a Cristo, porque não sabeis nada a respeito dEle. E essa é a terceira razão.



Os homens desconhecem o Seu valor, pois se O conhecessem, quereriam vir a Ele. Por que é que nenhum marinheiro foi à América antes que Cristóvão Colombo fosse? Porque não criam que a América existisse. Colombo tinha fé, e, portanto, ele, sim, foi. O que tem fé em Cristo vem a Ele. Mas vós não conheceis Jesus; muitos de vós nunca vistes o Seu formosíssimo rosto; nunca vistes o quão valioso é Seu sangue para um pecador, quão grande é Sua expiação; e como os Seus méritos são absolutamente suficientes. Portanto “vós não quereis vir a Ele.”



E oh!, queridos leitores[8], a minha última consideração é muito solene. Preguei que vós não quereis vir. Mas alguns dirão: “é por causa dos seus pecado que eles não vêm.” ASSIM É. Vós não quereis vir, mas, então essa vossa vontade de não vir é uma vontade pecaminosa. Alguns pensam que estamos tratando de pôr “colchões de plumas” na consciência quando pregamos esta doutrina, mas não o fazemos. Nós não afirmamos que é parte da natureza original do homem, porém dizemos que pertence à sua natureza decaída. É o pecado que te trouxe a esta condição de não querer vir. Se não tivesses caído, quererias vir a Cristo no momento em que Ele te é pregado; mas não vens por causa dos teus pecados e crimes. As pessoas desculpam-se a si mesmas porque têm um coração mau. Essa é a desculpa mais fraca do mundo. Acaso o roubo e o furto não vêm de um coração mau? Suponde que um ladrão diz a um juiz: “Não pude evitá-lo, porque tenho um mau coração.” O que diria o juiz? “Patife!, se o teu coração é mau, vou dar-te uma sentencia mais pesada, pois tu és certamente um vilão. A tua desculpa não serve para nada.” O Todo-Poderoso vai-Se “rir deles, e tê-lo-á em irrisão.” Nós não pregamos esta doutrina para vos desculpar, porém para que vos humilheis. A posse de uma má natureza é tanto minha culpa como minha terrível calamidade[9]. É um pecado que sempre será atribuído[10] aos homens. Quando não quereis vir a Cristo é o pecado o que vos afasta. Quem não prega isto, temo-me[11] que não é fiel a Deus, nem à sua consciência. Ide para casa, em seguida, com este pensamento; “Sou por natureza tão perverso que não quero vir a Cristo, e essa perversidade ímpia da minha natureza é o meu pecado. Mereço ir para o[12] Inferno por isso.” E se este pensamento não te humilha, apesar do Espírito o estar usando, nenhuma outra coisa o poderá fazer. Na pregação de hoje não exaltei a natureza humana, mas rebaixeia-a. Que Deus nos humilhe a todos. Ámen.



ORAI AO ESPÍRITO SANTO PARA QUE USE ESTE SERMÃO A FIM DE TRAZER MUITOS AO CONHECIMENTO SALVÍFICO DE JESUS CRISTO.



[1] Famoso tribunal criminal de Londres
[2] Hearers (lit.) Ouvintes
[3] Adamantine (lit.) adj adamantino, inquebrável, inflexível, impenetrável
[4] Famosa prisão de Londres para os condenados à morte
[5] C. H. Spurgeon usa a palavra “uttermost."
[6] Lorde-maior (de Londres, Dublin, York e dalgumas outras cidades importantes. Corresponde atualmente ao presidente das nossas câmaras municipais.
[7] Ou noutra tradução: ‘que precisa deles’.
[8] De novo, hearers (lit.) ouvintes
[9] Outra tradução: ‘Possuir uma má natureza é tanto minha culpa, como uma terrível calamidade para mim.’
[10] Outra tradução: ‘cobrado’
[11] Outra tradução: ‘duvido’, ‘receio-me.’
[12] Outra tradução: ‘ser lançado no’


Notas e Tradução de Carlos António da Rocha

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Esta tradução é de livre utilização, desde que a sua ortografia seja respeitada na íntegra porque já está traduzida no Português do Novo Acordo Ortográfico e que não seja nunca publicada nem utilizada para fins comerciais; seja utilizada exclusivamente para uso e desfruto pessoal.

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