C. H. Spurgeon
Sermão n.º 7 e n.º 8
“Cristo Crucificado” (Christ Crucified), pregado na manhã de
domingo, 11 de fevereiro de 1855, por Charles Haddon Spurgeon, no Púlpito da
Capela New Park Street, em Exeter Hall, Strand, Londres.
“Mas nós pregamos a
Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos.
24Mas, para os que são chamados, tanto judeus como gregos, lhes pregamos a
Cristo, poder de Deus, e sabedoria de Deus.” (1Co 1:23-24, ARC, Pt)
Quanto desdém derramou Deus sobre a sabedoria deste mundo!
Como a reduziu a nada, fazendo com que se mostre sem valor. Permitiu-lhe que ela
elabore as suas próprias conclusões, e que demonstre a sua própria insensatez.
Os homens gabavam-se de ser sábios; diziam que podiam descobrir a Deus de modo
perfeito; e para que a sua loucura pudesse ser refutada de uma vez por todas,
Deus deu-lhes a oportunidade de assim o fazerem. Ele disse: “Sabedoria mundana,
vou-te provar. Tu afirmas que és poderosa, que o teu intelecto é vasto e
completo, que o teu olho é penetrante, que podes decifrar todos os segredos;
agora, olha, Eu provo-te: apresento-te um grande problema para que o resolvas.
Aqui está o universo; as estrelas conformam a sua abóbada, os campos e as
flores adornam-no, e as correntes percorrem a sua superfície; o meu nome está
escrito ali; as coisas invisíveis de Deus fazem-se claramente visíveis, sendo
entendidas por meio das coisas feitas. Filosofia, ponho-te este dilema:
encontra-Me. Aqui estão minhas obras: encontra-Me. Descobre no maravilhoso
mundo que criei, a maneira de Me adorares aceitavelmente. Dou-te o espaço
suficiente para que o faças: há dados suficientes. Contempla as nuvens, a Terra
e as estrelas. Dou-te tempo suficiente; dar-te-ei quatro mil anos, e não
interferirei; tu farás como queiras no teu próprio mundo. Dar-te-ei homens em
abundância, pois farei grandes e vastas mentes, a quem chamarás senhores da
Terra; terás oradores, e terás filósofos. Encontra-Me, ó razão, encontra-Me, ó
sabedoria; descobre a Minha natureza, se puderes: encontra-Me de modo perfeito,
se és capaz; e se não o és, então fecha a tua boca para sempre, e Eu vou
ensinar-te que a sabedoria de Deus é mais sábia do que a sabedoria do homem;
sim, que a loucura de Deus é mais sábia do que a dos homens.”
E, como resolveu o problema, a razão do
homem? Como cumpriu a sua proeza? Olha para nações pagãs; ali verás o resultado
das investigações da sabedoria. No tempo de Jesus Cristo, poderias haver visto
a Terra coberta com a lama da corrupção: uma Sodoma em grande escala, corrupta,
imunda, depravada, entregando-se a vícios que nem nos atrevemos a mencionar,
gozando-se em lascívias demasiado abomináveis para que a nossa imaginação se
pause nelas, ainda que seja por um instante. Encontramos os homens
prostrando-se ante blocos de madeira e de pedra, adorando a dez mil deuses mais
viciosos do que eles mesmos.
Encontramos, de facto, que a razão
escreveu a sua própria depravação com um dedo coberto de sangue e imundície, e
que ela se privou a si mesma de toda a sua glória pelas vis obras que levou a
cabo. Não quis cultuar a Deus. Não quis inclinar-se ante Ele, que é “claramente
visível,” mas que adorou a qualquer criatura; o réptil que se arrasta, o
crocodilo, a víbora, alguma coisa podia ser um deus, mas não, verdadeiramente,
o Deus do Céu. O vício podia ser transformado numa cerimónia, e o maior crime
podia ser exaltado numa religião; mas, da verdadeira adoração não conheciam
nada.
Pobre razão! Pobre sabedoria! Como caíste do Céu! Como
Lúcifer, filho da manhã, estás perdida. Tu tens escrito a tua conclusão, mas, é
uma conclusão de consumada insensatez. “Visto como na sabedoria de Deus o mundo
não conheceu a Deus pela Sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela
loucura da pregação.”
A sabedoria tinha tido o seu tempo, e
tempo suficiente; fazia tudo o que podia, e isso foi muito pouco; tinha feito o
mundo pior do que o que ele era antes que o pisasse, e agora Deus diz: “A
loucura vencerá a sabedoria; agora a ignorância, como vós a chamais, vai varrer
com a vossa ciência; agora, a fé humilde, como a de um menino, vai esmigalhar
em pó todos os sistemas colossais que as vossas mãos amontoaram.” Ele chama o
Seu exército. Cristo leva a trombeta à Sua boca, e vêm todos os guerreiros,
vestidos com roupas de pescadores, com o sotaque típico das margens do lago da
Galileia: uns pobres marinheiros humildes. Aqui estão os guerreiros, ó
sabedoria, que te vão confundir! Estes são os heróis que vencerão os teus
orgulhosos filósofos! Estes homens vão plantar o seu estandarte sobre as
muralhas em ruínas das tuas fortalezas, e ordenar-te-ão que as derrubes para
sempre; estes homens, e os seus sucessores, vão exaltar um Evangelho no mundo
do qual vós vos podereis rir como de algo absurdo, que podereis desprezar como
uma loucura, mas que será exaltado sobre os montes, e será glorioso até os mais
altos Céus.
Desde esse dia, Deus tem levantado
sempre sucessores dos apóstolos. Eu afirmo que sou um sucessor dos apóstolos,
não por descendência de linhagem, mas, porque cumpro o mesmo papel e gozo do
privilégio de qualquer apóstolo, e sou tão chamado a pregar o Evangelho como o
próprio Paulo: e se não sou tão abençoado na conversão de pecadores, até agora,
em alguma medida tenho sido abençoado por Deus; e, portanto, aqui estou, louco
como Paulo o poderia ser, néscio como Pedro, ou como qualquer um desses
pescadores, mas, sem embargo, com o poder de Deus sustento a espada da verdade:
tendo vindo aqui para “pregar a Cristo crucificado, que é escândalo para os
Judeus, e loucura para os Gregos. Mas para os que são chamados, tanto Judeus
como Gregos, lhes pregamos a Cristo, poder de Deus, e sabedoria de Deus.”
Antes de entrar no nosso versículo,
permitam-me que vos diga brevemente o que eu creio que significa pregar a
Cristo crucificado. Meus amigos, eu não creio que pregar a Cristo crucificado
seja dar à nossa gente uma boa dose de filosofia cada domingo pela manhã e à
noite, descurando-se a verdade deste Santo Livro. Não creio que pregar a Cristo
crucificado seja deixar de lado as doutrinas cardeais da Palavra de Deus, e pregar
uma religião que é toda ela neblina e bruma, sem verdades definidas de nenhum
tipo. Eu entendo que quem pode finalizar um sermão sem ter mencionado o nome de
Cristo nem sequer uma vez, não prega a Cristo crucificado; tampouco prega a
Cristo crucificado quem deixa de fora a obra do Espírito Santo, que nem sequer
menciona uma só palavra sobre o Espírito Santo, de tal forma, que, na verdade,
os seus ouvintes podem dizer: “Nós nem ainda ouvimos que haja Espírito Santo.”
E eu tenho a minha própria opinião pessoal,
que não se pode pregar a Cristo crucificado a menos que pregueis o que hoje em
dia se deu em chamar Calvinismo. Eu tenho as minhas próprias ideias que sempre
expresso com valor. Chamar a essas doutrinas Calvinismo é pôr-lhes uma alcunha;
Calvinismo é o Evangelho e nada mais. Eu não creio que possamos pregar o
Evangelho, se não pregamos a justificação pela fé sem obras; se não pregamos a
soberania de Deus na Sua dispensação de graça; se não exaltamos o amor de Jeová
que escolhe, que é inalterável, eterno, imutável e conquistador; tampouco,
creio, que possamos pregar o Evangelho, a menos que o apoiemos na redenção
peculiar que Cristo levou a cabo pelo Seu povo eleito; não posso compreender um
Evangelho que deixa que os santos se percam depois que foram chamados, e que
aceita que os filhos de Deus se queimem nos fogos da condenação apesar de
haverem crido. Eu aborreço um Evangelho assim. O Evangelho da Bíblia não é esse
Evangelho. Nós pregamos a Cristo crucificado de uma maneira diferente, e a
todos os adversários respondemos: “Mas vós não aprendestes assim a Cristo.”
Há três temas no versículo. Primeiro,
um Evangelho rejeitado: “Cristo crucificado, para os Judeus certamente tropeço,
e para os gentios loucura”; em segundo lugar, um Evangelho triunfante: “Para os
chamados, assim Judeus como Gregos”; e, em terceiro lugar, um Evangelho
admirado: é para os que são chamados, “poder de Deus, e sabedoria de Deus.”
I. Em primeiro lugar, temos aqui UM
EVANGELHO REJEITADO. Poder-se-ia ter esperado que quando Deus enviou o Seu
Evangelho aos homens, todos os homens escutariam com mansidão, e receberiam as
Suas verdades com humildade. Poderíamos ter pensado que os ministros de Deus
não deviam senão proclamar que a vida é trazida à luz pelo Evangelho, e que
Cristo veio para salvar os pecadores, e todo o ouvido estaria atento, os olhos
olhariam com fixidez, e cada coração estaria totalmente aberto para receber
essa verdade. Poderíamos ter dito, julgando favoravelmente os nossos
companheiros, que não poderia existir no mundo um monstro tão vil, tão
depravado, tão imundo, capaz de pôr pedras no caminho do progresso da verdade;
não poderíamos ter concebido algo assim; sem embargo, essa conceção é a
verdade.
Quando o Evangelho foi pregado, em
lugar de ser aceite e admirado, um universal silvo subiu ao Céu; os homens não
podiam suportá-lo; eles arrastaram o seu primeiro Pregador até ao cume do monte
e tê-Lo-iam despenhado de ali, se tivessem podido: sim, fizeram mais do que
isso, cravaram-No na cruz, e ali deixaram-No elanguescer em agonia a Sua vida
moribunda, uma agonia que ninguém experimentou desde então. Todos os Seus escolhidos
ministros têm sido odiados e aborrecidos pelos homens do mundo; em vez de os
escutarem, zombam deles; estes têm sido tratados como se fossem o lixo de todas
as coisas, e o refugo da humanidade. Olhai para os homens santos da
antiguidade, como foram expulsos de cidade para cidade, perseguidos, afligidos,
atormentados, apedrejados até à morte, em qualquer parte onde o inimigo tivesse
o poder de fazê-lo.
Esses amigos dos homens, esses verdadeiros filantropos,
que chegavam com corações cheios de amor e mãos cheias de misericórdia, com
lábios cheios de fogo celestial e almas que ardiam com uma santa influência;
esses homens eram tratados como se fossem os espiões do acampamento, como se
fossem desertores da causa comum da humanidade; como se fossem inimigos e não,
como em realidade o eram, os melhores amigos.
Não suponhais, meus amigos, que os
homens gostam mais do Evangelho agora do que então. Existe a ideia de que nos
estamos tornando melhores. Eu não o creio. Estamos tornando-nos piores. Talvez,
em certas coisas os homens possam estar melhores: melhores no exterior; mas o
seu coração no interior continua sendo o mesmo. Se hoje se fizesse uma
dissecação ao coração humano, seria igualzinho ao coração humano de há mil
anos: o fel de amargura dentro desse vosso peito, será precisamente tão amargo
como o fel de amargura naquele Simão de antigamente. Temos nos nossos corações
a mesma latente oposição à verdade de Deus; e por esta razão descobrimos que os
homens são iguais aos do passado, que desprezam o Evangelho.
Falando do Evangelho rejeitado, vou
esforçar-me por assinalar as duas espécies de pessoas que desprezam de maneira
igual a verdade. Os Judeus fazem dele um tropeço, e os Gregos consideram-no
loucura. Agora, estes dois respeitáveis cavalheiros —o Judeu e o Grego—, estes
antigos indivíduos, não serão objeto de minha condenação, mas vou considerá-los
como membros de um grande parlamento, representantes de um grande círculo
eleitoral, e vou tentar mostrar-vos que ainda que toda a raça dos Judeus fosse
erradicada, haveria ainda um número muito grande no mundo que responderia ao
nome de Judeus, para quem Cristo é um tropeço; e que se a Grécia fosse tragada
por um terramoto, e cessasse de ser uma nação, haveria ainda Gregos para quem o
Evangelho seria uma loucura. De maneira simples vou introduzir o Judeu e o
Grego, e vou deixá-los falar-vos por um momento, para que possais ver os
cavalheiros que vos representam; os homens representativos; as pessoas que vos
simbolizam, que ainda não foram chamadas pela graça divina.
O primeiro é o Judeu; para ele, o
Evangelho é um tropeço. O Judeu era um homem respeitável no seu tempo. Toda a
religião formal estava concentrada na sua pessoa; ele ia ao templo com muita
devoção; dava dízimos de tudo o que possuía, incluindo a hortelã e o cominho.
Podias vê-lo jejuando duas vezes por semana, com o seu rosto muito marcado pela
tristeza e pela aflição. Se o olhavas, tinha a lei entre os seus olhos; ali
estavam as filactérias, e as franjas dos seus vestidos eram de uma largura
impressionante para que não se pudesse supor jamais que era um cão Gentio; que
ninguém pudesse conceber jamais que ele não era um Hebreu de raça pura. Ele tinha
uma linhagem santa; procedia de uma família piedosa; ele era um bom homem correto.
Não podia suportar a esses Saduceus que não tinham religião. Ele era um homem
religioso cabal; apoiava a sua sinagoga; não aceitava esse templo no monte
Gerizim; não podia suportar os Samaritanos, e não tinha entendimentos com eles;
era um zeloso de primeira magnitude da religião, um homem excecional; um
espécime de homem moralista, amante das cerimónias da Lei.
Portanto, quando ele ouviu acerca de Cristo, perguntou
quem era Cristo. “O Filho de um Carpinteiro.” “Ah!” “O filho de um carpinteiro,
e o nome de sua mãe era Maria, e o de seu pai José.” “Isso em si mesmo, é
suficientemente presunçoso,” comentou ele, “prova positiva, de facto, de que
ele não pode ser o Messias.” E, O que é que diz? Bem, pois ele diz: “Ai de vós,
escribas e fariseus, hipócritas!” “Isso não dará resultado.” Além disso, ele
acrescenta, “Não é pelas obras da carne que alguém pode entrar no reino dos
Céus.” O Judeu amarrava imediatamente um duplo nó nas suas filactérias; ele
pensava que teria de ter as franjas do seu vestido ampliadas para o dobro. Ele inclinar-se
ante o Nazareno! Não, não; e se simplesmente um discípulo atravessava a rua,
ele considerava o lugar poluído,
e não continuava nos seus passos. Pensais vós que ele abandonaria a religião do
seu velho pai, a religião que veio do Monte Sinai, essa antiga religião que se
encontrava na Arca e sob a sombra dos querubins? Renunciar a isso? Ele não. Um
vil impostor: era isso que Cristo era aos seus olhos. O Judeu pensava assim! “Um
tropeço para mim! Não posso ouvir falar disso! Não o quero escutar.” Por
conseguinte, ele fez ouvidos moucos a toda a eloquência do Pregador e não
escutava nada.
Adeus, velho Judeu! Tu dormes com os
teus pais, e a tua geração é uma raça errante, que ainda caminha pela Terra.
Adeus! Já terminei de falar contigo. Ai!, pobre infeliz, esse Cristo que era o
teu tropeço, será o teu Juiz, e sobre a tua cabeça recairá essa sonora
maldição: “O Seu sangue seja sobre nós, e sobre os nossos filhos.” Mas eu
encontro o senhor Judeu aqui, em Exeter Hall: pessoas que encaixam nessa
descrição, para quem Jesus Cristo é um tropeço. Permitam-me que vos faça uma
descrição de vós mesmos, de alguns de vós. Também sois membros de uma família
piedosa, não é assim? Sim. E tendes uma religião que amais: amai-la tanto quanto
à crisálida, à parte externa, à coberta, à casca. Não quisestes que se
alterasse nenhuma regra, nem que nenhum desses velhos arcos amados fosse
eliminado, nem que os vitrais se mudassem por nada do mundo; e se alguém
dissesse uma palavra contra tais coisas, catalogá-lo-íeis imediatamente como
herege.
Ou,
talvez, não assistais num lugar de adoração assim, mas, amais um lugar de
reunião muito antigo e simples, aonde os vossos ancestrais adoraram, ou seja,
uma capela dissidente. Ah!, é um formoso lugar singelo; vós amai-lo, amais as
suas ordenaças, amais o seu exterior; e se alguém falasse contra esse lugar,
sentir-vos-íes muito vexados. Credes que o que fazeis ali, deveria fazer-se em
toda a parte; de facto, a vossa igreja é uma igreja modelo; o lugar
aonde ides, é exatamente o tipo de lugar que é bom para toda a gente; e se eu
vos perguntasse por que tendes a esperança de ir para o Céu, talvez
respondêsseis: “Porque sou Batista,” ou, “Porque pertenço à Igreja Episcopal,”
ou a qualquer outra denominação a que pertençais. Já vos tenho descrito. Eu sei
que Jesus Cristo será um tropeço para vós.
Se eu viesse e te dissesse que todas as
tuas idas à casa de Deus não te servem de nada; se eu te dissesse que todas
essas vezes que estiveste cantando e orando, passaram desapercebidas aos olhos
de Deus, porque tu és um hipócrita e um formalista. Se eu te dissesse que o teu
coração não tem a relação correta com Deus, e a menos que a tenhas, tudo o que é
exterior não te serve de nada, eu sei o que responderias: “Não vou ouvir mais a
esse jovem.” É um tropeço. Mas se entrasses num qualquer lugar onde escutasses
que se exalta o formalismo; se te dissesse “deves fazer isto, e deves fazer
aquilo, e então serás salvo,” isso sim aprová-lo-ias de bom grado.
Mas quantas pessoas há que são
religiosas no exterior, irrepreensíveis de carácter, ainda que nunca tenham
tido a influência regeneradora do Espírito Santo; que nunca tenham sido
conduzidas a prostrar-se com a sua face no chão ante a cruz do Calvário; que
nunca voltaram um olho anelante para o Salvador crucificado; que nunca puseram
a sua confiança nEle, que foi sacrificado a favor dos filhos dos homens. Eles
amam uma religião superficial, mas quando um homem fala algo mais profundo do
que isso, declaram que é um discurso arrevesado.
Vós podeis amar tudo que é exterior
acerca da religião, da mesma maneira como podeis admirar um homem pela sua
roupa: sem que para nada vos importe o próprio homem. Se é assim, eu sei que
pertenceis ao grupo dos que rejeitam o Evangelho. Ouvistes pregar-me; e
enquanto eu fale de coisas externas, ouvir-me-eis com atenção; enquanto eu
promova a moralidade, e argumente contra a bebedeira, ou mostre a atrocidade do
descumprimento do repouso do dia de domingo, tudo irá muito bem; mas se disser
uma vez mais: “Se não vos converterdes e não vos fizerdes como meninos, de modo
algum entrareis no reino dos céus”; se vos digo alguma vez que deveis ser
eleitos por Deus, que deveis ser comprados com o sangue do Salvador, que deveis
ser convertidos pelo Espírito Santo, direis: “és um fanático! Fora daqui com
ele! Fora daqui com ele! Não queremos ouvir mais nada disso.” Cristo
crucificado é para o Judeu, o ritualista, um tropeço.
Mas pode-se encontrar outro espécime
deste Judeu. Este é completamente ortodoxo nos seus sentimentos. Quanto a
formas e cerimónias, não as tem num alto conceito. Assiste num lugar de
adoração onde aprende sã doutrina. Não quer escutar nada que não seja a
verdade. Gosta que façamos boas obras e tenhamos moralidade. É um bom homem, e
ninguém lhe pode encontrar uma falta. Está aqui presente, assistindo como
sempre ao serviço dominical. Na praça caminha ante os homens com toda a
honestidade: isso supondes vós. Perguntai-lhe acerca de qualquer doutrina, e
pode dar-vos uma disquisição acerca disso. De facto, poderia escrever um
tratado completo sobre qualquer assunto relativo à Bíblia, e também acerca de
muitas outras coisas. Sabe quase tudo; e aqui, nestas escuras águas-furtadas da
cabeça, a sua religião estabeleceu-se; tem uma excelente sala de visitas no seu
coração, mas a sua religião nunca vai ali: está fechada para ela. Lá ele tem o
dinheiro: Mamon, mundanidade; ou tem outra coisa: amor de si mesmo, orgulho.
Talvez ele goste escutar uma pregação prática; admira tudo; de facto ele ama
tudo o que seja correto. Mas não há nada bom dentro dele: ou melhor, tudo é som
sem substância. Gosta de escutar a sã doutrina; mas esta não penetra o seu
homem interior. Nunca o vês chorar. Prega-lhe acerca de Cristo crucificado, um
tema glorioso, e nunca verás uma lágrima rolar pelas suas faces; conta-lhe
acerca da poderosa influência do Espírito Santo: pode admirar-te por isso, mas
a mão do Espírito Santo nunca tocou a sua alma; fala-lhe acerca da comunhão com
Deus, no que consiste submergir-se no mar mais profundo da Deidade, e perder-se
na sua imensidão: o homem adora ouvir isso, mas nunca experimentou, nunca teve
comunhão com Cristo; e, portanto, quando começas a calar-lhe fundo, quando o deitas
sobre a mesa, e sacas o teu bisturi de dissecação e começas a fazer os teus
cortes e lhe mostras o seu próprio coração, e o deixas ver o que ele é por
natureza, e no que deve tornar-se pela graça, o homem sobressalta-se; não pode
suportar isso; não deseja nada disto: receber e aceitar Cristo no coração.
Ainda que O ame suficiente com o seu cérebro, é para ele um tropeço, e
rejeita-O. Reconheceis-vos aqui descritos, meus amigos? Vede-vos a vós mesmos,
como vos vêem as outras pessoas? Vede-vos a vós mesmos, como Deus vos vê? Pois
assim é, possivelmente aqui há muitas pessoas para quem Cristo é um tropeço,
como sempre o foi para outros.
Ó, vós que sois formalistas! Dirijo-me
agora a vós; Ó, vós que preferis a casca da noz, mas aborreceis o miolo da noz;
Ó, vós, quem gostais das galas e da roupagem, mas a quem não importa a formosa
virgem que está ataviada com eles: Ó, vós que admirais a pintura e o ouropel,
mas que aborreceis o ouro fino, falo para vós; pergunto-vos: dá-vos a vossa
religião um sólido conforto? Podeis olhar para a morte na cara com esse
conforto, e afirmar: “Eu sei que o meu Redentor vive”? Podeis cerrar os vossos
olhos na noite, e cantar como vosso hino de vésperas?
“Devo aguentar até ao fim,
Tão certo como o sinal que me é dado.”?
Podes bendizer a Deus na aflição? Podes
submergir-te com a pesada equipagem que carregas e nadar através das correntes
das provas? Podes marchar triunfante no esconderijo do leão, rir-te da aflição
e oferecer um desafio ao Inferno? Podes fazer isto? Não! O teu Evangelho é uma
coisa efeminado; é uma coisa de palavras e de sons, e não de poder. Lança-o
para longe de ti, isso te imploro: não vale a pena que o conserves; pois,
quando te apresentares ante o trono de Deus, descobrirás que te falhará, e
fá-lo-á de tal maneira que te impedirá de encontrares outro; pois perdido,
arruinado, destruído, dar-te-ás conta de que Cristo que agora é skandalon, “tropeço,”
então será o teu Juiz.
Tenho apanhado o Judeu em falta, e
agora vou descobrir o Grego. Ele é uma pessoa de um exterior muito diferente do
Judeu. Para o Grego as filactérias são um lixo; e despreza as franjas
estendidas dos seus mantos. As formas de religião não lhe importam; de facto,
ele sente uma intensa aversão para com os chapéus de abas largas, e para tudo o
que represente uma exposição exterior. Aprecia a eloquência; admira qualquer
formulação inteligente; ama os ditos singulares; adora a leitura do último
livro; é um Grego, e para ele, o Evangelho é uma loucura. O Grego é um
cavalheiro que pode ser encontrado hoje na maioria dos lugares: produzido
algumas vezes nas universidades, formado constantemente nas escolas, fabricado
em toda a parte. Está na casa de câmbio; no mercado; possui um armazém; anda em
carruagens; é um nobre, um cavalheiro; está em toda a parte, até na corte. É
sábio em tudo. Pergunta-lhe qualquer coisa e ele sabe-a. Pede-lhe uma citação
de qualquer dos poetas antigos, ou de qualquer outra pessoa, e ele pode
proporcionar-ta. Se tu és muçulmano e argumentas as crenças da tua religião,
ele escutar-te-á muito pacientemente. Mas se tu és Cristão, e lhe falas de
Jesus Cristo, ele responder-te-á: “Pára a tua conversa hipócrita, não quero
ouvir nada acerca disso.” Este cavalheiro Grego crê em qualquer filosofia, exceto
na verdadeira; estuda toda a sabedoria, exceto a sabedoria de Deus; busca todo
o conhecimento exceto o conhecimento espiritual; gosta de tudo o que o homem
faz, mas, não gosta de nada que venha de Deus; é uma loucura para ele, loucura
maldita. Discorre com ele apenas acerca de uma doutrina da Bíblia, e ele tapa
os ouvidos; já não deseja mais a tua companhia; é loucura.
Eu tenho-me encontrado com este
cavalheiro muitas vezes. Quando o vi, numa ocasião, ele comentou-me que não
cria em nenhuma religião; e quando lhe disse que eu sim acreditava, e que tinha
a esperança de ir para o Céu ao morrer, ele respondeu que se atrevia a dizer
que isso era muito confortador, mas que ele não acreditava na religião, e que
estava seguro de que era melhor viver conforme lhe ditasse a natureza. Noutra
ocasião ele falou bem de todas as religiões, e cria que eram muito boas e todas
elas verdadeiras, cada uma no seu lugar; e estava convencido de que se um homem
era sincero em qualquer tipo de religião, não teria problemas quando chegasse
ao fim. Eu respondi-lhe que não estava de acordo, e que eu cria que havia senão
uma só religião revelada por Deus: a religião dos escolhidos de Deus, a
religião que é o dom de Jesus. Depois ele disse-me que eu era um fanático
intolerante e despediu-se. Para ele era loucura. Ele não queria saber nada do
que lhe dizia. Ele ou aceitava todas as religiões ou não aceitava alguma.
Noutra oportunidade segurei-o pelo botão do seu saco, e
discuti com ele um pouco acerca da fé. Ele disse: “Todo isso está muito bem,
creio que essa é sã doutrina protestante.” Mas, imediatamente, eu mencionei
algo acerca da eleição, e ele comentou: “eu não gosto disso; muitas pessoas têm
pregado isso com muito maus resultados.” Então, sugeri algo acerca da graça
imerecida; mas, ele não podia suportar isso tampouco, era uma loucura para ele.
Tratava-se de um Grego muito polido, e pensava que se não era um eleito, devia
sê-lo. Nunca gostou da passagem bíblica: “Deus escolheu as coisas loucas deste
mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo
para confundir as fortes.” Ele considerava que isso era algo desonroso para a
Bíblia; e que quando o livro fosse revisado, ele não duvidava que isso seria
eliminado.
Para tal pessoa (pois está presente
aqui no dia de hoje, e veio muito provavelmente para ouvir este caniço sacudido
pelo vento), tenho de dizer isto: “Ah!, homem sábio, cheio de sabedoria do
mundo; a tua sabedoria sustentar-te-á aqui, mas o que farás tu nas enchentes do
Jordão? A filosofia pode ajudar-te para que te apoies nela enquanto caminhas
neste mundo; mas o rio é profundo, e tu vais necessitar de algo mais do que
isso.
Se não tens o braço do Altíssimo para
que te sustente na enchente e te anime com as promessas, afundar-te-ás, amigo;
com toda a tua filosofia, afundar-te-ás; com todos os teus conhecimentos,
afundar-te-ás, e serás arrastado a esse terrível oceano de tormento eterno,
onde permanecerás para sempre. Ah!, Gregos, poderá ser loucura para vós, mas
vereis o Homem, o vosso Juiz, e então lamentareis aquele dia em que dissestes
que o Evangelho de Deus era uma loucura.
II. Tendo pregado até este ponto sobre
a rejeição do Evangelho, agora vou falar brevemente sobre o EVANGELHO
TRIUNFANTE. “Mas para os chamados, assim Judeus como Gregos, Cristo poder de
Deus, e sabedoria de Deus.” Aquele homem que está acolá, rejeita o Evangelho,
despreza a graça, e ri-se de tudo isto como de um engano. Por aqui está outro
homem que se ri também; mas Deus irá levá-lo a pôr-se de joelhos. Cristo não
morreu em vão. O Espírito Santo não obrará em vão.
Deus tem dito: “Assim será a Minha
palavra, que sair da Minha boca; ela não voltará para Mim vazia, antes fará o
que Me apraz, e prosperará naquilo para que a enviei.” “Ele verá o
fruto do trabalho da Sua alma, e ficará satisfeito.” Se um pecador não é salvo, outro o será. O Judeu e o
Grego jamais despovoarão o Céu. Os coros de glória não perderão um só cantor
por causa de toda a oposição dos Judeus e dos Gregos; pois Deus o tem dito;
alguns serão chamados; alguns serão salvos; alguns serão resgatados.
“Pereça o mérito, como deve ser, aborrecido,
E o néscio com ele, que insulta o seu Senhor.
A expiação que o amor do Redentor obrou
Não é para ti; o justo não necessita dela.
Vês aquela meretriz que convida a todos os que encontra,
Essa pessoa desagradável e exausta das nossas ruas,
Oferecendo-se de manhã à noite, e da noite à manhã,
Que se aborrece a si mesmo e que vós desprezais:
A chuva de graça, imerecida e livre,
Cairá sobre ela, quando o Céu ta negue a ti.
De tudo o que dita a sabedoria, esta é a essência,
Que o homem está morto no pecado, e a vida é um dom.”
Se os justos e os bons não são salvos,
se eles rejeitam o Evangelho, há outros que serão chamados, outros que serão
resgatados, pois Cristo não perderá os méritos das Suas agonias, nem o que foi
comprado com o Seu sangue.
“Mas para nós que somos chamados.” Esta
semana recebi uma nota em que me solicitavam que explicasse a palavra “chamados;”
porque numa passagem diz-se “Porque muitos são chamados, e poucos os
escolhidos,” enquanto que noutra dá a impressão de que todos os que são
chamados devem ser escolhidos. Agora, deixai-me mencionar-vos que há duas
chamadas. Como o meu velho amigo John Bunyan afirma, “a galinha tem duas
chamadas, o cacarejo comum, que faz diariamente e a cada hora, e o cacarejo
especial que dirige aos seus pintinhos.” Da mesma maneira há uma chamada geral,
uma chamada que se faz a todo o homem; todo o homem o ouve. Muitos são chamados
por seu meio; vós sois chamados no dia de hoje nesse sentido; mas muito poucos
são escolhidos.
A outra chamada é uma chamada especial,
a chamada para os filhos. Vós sabeis como soa o sino na oficina para chamar os
homens para o trabalho: esse é uma chamada geral. Um pai vai à porta e chama: “João,
é a hora do jantar.” Essa é a chamada especial. Muitos são chamados mediante a
chamada geral, mas eles não são escolhidos; a chamada especial é unicamente
para os filhos, e isso é o que o versículo significa, “Mas para os chamados,
assim Judeus como Gregos, Cristo poder de Deus, e sabedoria de Deus.” Essa
chamada é sempre uma chamada especial.
Enquanto eu estou aqui e chamo os
homens, ninguém vem; ainda que eu pregue aos pecadores de maneira universal,
não se obtém nenhum bem; é como o relâmpago difuso que se vê algumas vezes nos
entardeceres do verão, formoso, grandioso, porém, quem ouviu que tenha caído
alguma vez sobre algum objeto? Mas, a chamada especial é como o raio bifurcado
caído do Céu; golpeia em algum lado; é a flecha que se crava por entre as
junturas da armadura. A chamada que salva é como a de Jesus, quando Ele disse, “Maria,”
e ela respondeu-Lhe, “Raboni!”
Sabes alguma coisa dessa chamada
especial, meu amado? Chamou-te Jesus pelo teu nome alguma vez? Podes recordar a
hora quando Ele sussurrou o teu nome ao teu ouvido, quando Ele te disse: “Vem a
Mim”? Se é assim, concordarás que é verdade o que vou dizer acerca disso: que é
uma chamada eficaz. É irresistível. Quando Deus chama com a Sua chamada
especial, não se pode deixar de acudir. Ah!, eu sei que eu me ria da religião;
eu desprezava-a, eu aborrecia-a; mas essa chamada! Oh!, eu não queria vir. Mas
Deus disse, “tu virás. Todo aquele que o Pai me dá, virá a Mim.” “Senhor, eu
não o irei.” “Claro que virás,” disse Deus. E eu tinha ido algumas vezes à casa
de Deus quase com uma determinação de não escutar, mas devia escutar. Ó, como a
palavra penetrou na minha alma! Tinha algum poder para resistir? Não; fui
derrubado; cada osso parecia fraturado; eu fui salvo pela graça eficaz.
Eu apelo à vossa experiência, meus
amigos. Quando Deus vos tomou pela mão, teríeis podido resistir-Lhe?
Enfrentastes o vosso ministro inumeráveis vezes. A enfermidade não vos
quebrantou; as doenças não vos conduziram aos pés de Deus; a eloquência não vos
convenceu; porém, quando Deus pôs mãos à obra, ah!, então que mudança se deu;
como Saulo, quando ia para Damasco com os seus cavalos, escutou essa voz do Céu
que dizia, “Eu sou Jesus, a Quem tu persegues.” “Saulo, Saulo, por que Me
persegues?” Nesse momento não havia forma de continuar. Essa era uma chamada
eficaz. Como essa, também, foi a a chamada que Jesus fez a Zaqueu, quando este
estava em cima na árvore: Jesus colocando-Se sob a árvore, disse, “Zaqueu,
desce depressa, porque hoje Me convém pousar em tua casa.” Zaqueu foi apanhado
na rede; ele ouviu o seu próprio nome; a chamada penetrou na sua alma; não
podia ficar na árvore, pois um impulso todo-poderoso o fez descer.
E eu poderia mencionar-vos alguns
exemplos especiais de pessoas que tem assistido na casa de Deus e têm escutado
a descrição do seu carácter retratado com perfeição, de tal forma que hão dito,
“está-me descrevendo, está-me descrevendo.” Da mesma maneira poderia dizer a
esse jovem que roubou as luvas do seu chefe ontem, que Jesus o chama ao
arrependimento. Poderá ser que aqui haja uma pessoa assim; e quando a chamada
vem a uma pessoa em particular, geralmente vem com um poder especial. Deus dá
aos Seus ministros uma broxa especial e ensina-os a como usá-la para pintar
quadros vivos, e desta maneira o pecador ouça a chamada especial. Eu não posso
fazer a chamada especial; Deus é o único que pode fazê-lo, e por isso eu
deixo-a para Ele. Alguns devem ser chamados. Judeus e Gregos poderão rir-se,
mas, mesmo assim, há alguns que são chamados, tanto Judeus como Gregos.
Então, para concluir este segundo
ponto, é uma grande misericórdia que muitos Judeus tenham sido conduzidos a
esquecer-se da sua justiça própria; muitos legalistas foram conduzidos a
abandonar o seu legalismo e a vir a Cristo, muitos Gregos inclinaram o seu
génio ante o trono do Evangelho de Deus. Nós temos uns quantos deles. Como
afirma Cowper:
“Nós jactamo-nos de alguns ricos a quem o Evangelho dobra,
E de um que leva uma coroa e ora;
Mostram-se como rebusco de uma oliveira,
Aqui e acolá vemos algum sentado no ramo mais alto.”
III. Agora chegamos ao nosso terceiro
ponto, UM EVANGELHO ADMIRADO; para os chamados por Deus, é o poder de Deus, e a
sabedoria de Deus. Agora, amados, este deve ser um assunto de pura experiência
entre as vossas almas e Deus. Se sois chamados por Deus no dia de hoje, sabê-lo-eis.
Eu sei que há momentos quando o Cristão deve dizer,
“É o ponto que anelo conhecer,
Frequentemente gera um pensamento ansioso;
Amo, ou não amo ao Senhor?
Sou Seu, ou não sou?”
Mas se um homem nunca na sua vida teve a certeza de ser Cristão,
nunca foi um Cristão. Se nunca teve um momento de fé, no qual pudesse dizer: “Eu
sei em Quem tenho crido,” penso que não estou sendo sério quando afirmo que
esse homem não pôde ter nascido de novo; pois não posso entender como um homem
possa nascer de novo e não o saiba; não entendo como um homem possa ter sido
assassinado e reviva, sem que se dê conta; como um homem possa passar da morte
para a vida, e não o saiba; como um homem possa ser chamado das trevas para uma
luz admirável e não se dê conta disso. Eu tenho a certeza que o sei, quando
grito repetidamente a minha velha estrofe,
“Agora livre de pecado caminho em liberdade,
O sangue do meu Salvador é a minha total libertação;
A Seus pés amados contente me sento,
Um pecador salvo, homenagem rendo.”
Há momentos nos quais os olhos brilham
cheios de gozo; e nos quais podemos dizer, “estamos persuadidos, confiados,
seguros.” Eu não queria angustiar a ninguém que tenha dúvidas. Frequentemente
prevalecerão pensamentos sombrios; há ocasiões nas quais vós poderíeis ter o
temor de não terdes sido chamados; quando tendes dúvidas do vosso interesse em
Cristo. Ah, que grande misericórdia é que não seja o vosso afeto por Cristo o
que vos salve, mas que Cristo vos sustente a vós! Que doce realidade é que não
depende de como vos agarrais à Sua mão, mas de como Ele Se agarra à vossa mão,
isso é que vos salva. Sem embargo, eu creio que vós deveis saber num momento ou
noutro, se sois chamados por Deus. Se é assim, seguir-me-eis na parte seguinte
do meu sermão, que é um assunto de pura experiência; para nós que somos salvos,
é “Cristo poder de Deus, e sabedoria de Deus.”
O Evangelho é para o verdadeiro crente
uma coisa de poder. É Cristo o poder de Deus. Ai, há um poder no Evangelho de
Deus que está além de toda a descrição. Uma vez eu, como Mazepa, atado sobre o
cavalo selvagem da minha luxúria, atado de pés e mãos, incapaz de resistir, ia
galopando açoitado pelos lobos do Inferno, que uivavam atrás do meu corpo e da
minha alma, como sua presa justa e legal. Mas, veio uma poderosa mão que deteve
o cavalo selvagem, cortou as minhas ataduras, baixou-me e conduziu-me à
liberdade. Há poder ali, meu amigo? Ai, há poder, e quem o haja sentido deve
reconhecê-lo.
Houve um tempo no qual eu vivia no
impenetrável castelo dos meus pecados, e confiava nas minhas obras. Mas veio um
pregoeiro à porta, e ordenou-me que a abrisse. Cheio de ira repreendi-o do
vestíbulo e disse-lhe que ele nunca entraria. Veio logo uma Personagem com bom aspeto,
com um rosto cheio de amor; as Suas mãos tinham as marcas de cicatrizes
produzidas por pregos, e os Seus pés também tinham marcas de pregos; Ele
levantou a Sua cruz, usando-a como um martelo; ao primeiro golpe, a porta de
meu preconceito sacudiu-se; ao segundo golpe, tremeu mais; ao terceiro,
derrubou-se, e Ele entrou; e disse: “Levanta-te, e põe-te de pé, pois te tenho
amado com amor eterno.” Uma coisa de poder! Ah!, é uma coisa de poder. Eu
tenho-a sentido aqui, neste coração! Tenho dentro de mim o testemunho do
Espírito, e sei que é uma coisa de poder porque me conquistou; dobrou-me.
“Unicamente a Sua graça imerecida, de principio a fim,
Ganhou o meu afeto, e tem sustentado firme a minha alma.”
Para o Cristão, o Evangelho é um
assunto de poder. O que é que faz com que o jovem se torne num missionário para
a causa de Deus, que deixe o seu pai e a sua mãe, e que vá para terras
longínquas? É uma coisa de poder a que o consegue: é o Evangelho. O que é que
constrange aquele ministro, no meio da peste da cólera, a subir essas escadas
que chiam, para estar junto do leito de alguma moribunda criatura atacada por
essa espantosa enfermidade? Deve ser um elemento de poder o que o guia a
arriscar a sua vida; é o amor pela cruz de Cristo que lhe ordena que o faça.
O que é que habilita a um homem para
que pare em frente duma multidão dos seus semelhantes, talvez sem que eles o
esperem, com a determinação de não falar de outra coisa senão de Cristo
crucificado? O que é que lhe permite clamar: Eia!, como o cavalo de Job na
batalha, movendo-se glorioso em poder? É um elemento de poder o que o faz: é
Cristo crucificado. E o que é que dá valor a essa tímida mulher para que
caminhe por esse escuro atalho no entardecer chuvoso, para se sentar junto à
vítima de uma febre contagiosa? O que é que a fortalece para atravessar essa guarida
de ladrões, e a passar junto ao libertino e ao profano? O que é que a motiva
para entrar nesse ossário de morte, e sentar-se ali e segredar palavras de
consolo? Vai ali pelo ouro? São muito pobres para que lhe possam dar ouro. Vai
ali procurando a fama? Ela nunca será conhecida, nem participará das crónicas
das mulheres poderosas desta Terra. O que é que a motiva a fazê-lo? Acaso é seu
amor ao mérito? Não; ela sabe que não tem nenhum merecimento ante o alto Céu. O
que é que a impulsa a fazê-lo? É o poder do Evangelho no seu coração; é a cruz
de Cristo; ela ama-a, e, portanto, diz:
“Se todo o reino da natureza fosse meu
Isso seria um presente muito pequeno;
Amor tão surpreendente, tão divino,
É o que requer a minha alma, a minha vida, o meu tudo.”
Mas eu contemplo outra cena. Um mártir é levado
rapidamente à fogueira; os verdugos estão ao seu redor; a turba troça, mas ele
marcha para diante com firmeza. Vede, atam-no ao poste, pondo uma cadeia à sua
cintura; empilham molhos de paus ao seu redor; a chama é acesa; escutai as suas
palavras; “Bendiz, minha alma, ao Senhor, e todo o meu ser bendiga o Teu santo
Nome.” As chamas estão ardendo ao redor das suas pernas; o fogo está
queimando-o até aos ossos; olhai-o como levanta as suas mãos enquanto diz: “Eu
sei que meu Redentor vive, e ainda que o fogo devore o meu corpo, na minha
carne hei-de ver o Senhor.” Vede-o como se agarra à estaca, e a beija como se a
amasse, e escutai-o dizer: “Por cada elo de ferro com que o homem me prenda,
Deus dar-me-á uma cadeia de ouro; por todos estes molhos de paus e esta
ignomínia e vergonha, Ele aumentará o peso de minha eterna glória.” Olhai,
todas as partes inferiores do seu corpo foram consumidas; ainda ele vive a
tortura; por fim dobra-se e a parte superior do seu corpo desaba; e, enquanto
cai ouve-lo dizer: “Em Tuas mãos entrego o meu Espírito.” Senhores, que magia
surpreendente havia nele? O que foi que fortaleceu esse homem? O que o ajudou a
suportar essa crueldade? O que o fez permanecer imóvel no meio das chamas? Foi o
elemento de poder; foi a cruz de Jesus crucificado. Pois “para os que se
salvam, isto é, para nós, é o poder de Deus.”
Mas contemplai outra cena completamente
diferente. Ali não encontramos uma multidão; é uma habitação silenciosa.
Encontramos um pobre enxergão, uma cama solitária: um médico acompanha-a. Ali
está uma jovenzita; o seu rosto está pálido pela tísica; há já algum tempo que
o verme lhe tem carcomido a bochecha, e ainda que algumas vezes lhe regresse o
seu rubor, é, contudo, o rubor da morte do enganoso destruidor. Ali jaz, pálida
e débil, descolorida, desgastada, moribunda: sem embargo, vede um sorriso no
seu rosto, como se tivesse visto um anjo. Fala, e há música na sua voz. A Joana
d’Arco da história não foi nem metade tão poderosa como essa rapariga. Ela luta
com dragões no seu leito de morte; mas, olhai a sua serenidade, e ouvi o seu
soneto agonizante:
“Jesus!, amante da minh’alma,
Deixa-me precipitar-me em Teu peito,
Enquanto arrebentam junto a mim as ondas,
Enquanto a tempestade cresce!
Esconde-me, Ó meu Salvador! Esconde-me
Até que passe a tormenta da vida!
Guia-me com segurança para o porto seguro;
Ó, recebe, no fim, a minha alma!
E com um sorriso fecha os seus olhos na
Terra, para abri-los no Céu. O que é que lhe permite morrer dessa maneira? É o
poder de Deus para a salvação; é a cruz; é Jesus crucificado.
Tenho muito pouco tempo para refletir
sobre o último ponto, e longe de mim está o querer cansá-los com um sermão
comprido e prosaico, mas, devemos dar uma olhadela à outra afirmação: Cristo é,
para os chamados, sabedoria de Deus, assim como poder de Deus. Para um crente,
o Evangelho é a perfeição da sabedoria, e se não o considera assim o ímpio, é
devido à perversão do juízo resultado da sua depravação.
Uma ideia tem possuído durante muito
tempo a mente pública, e é que um homem religioso dificilmente pode ser um
homem sábio. O costume tem sido falar dos infiéis, dos ateus e dos deístas como
homens de pensamento profundo e de vasto intelecto; e tremer por ele o
polemista Cristão, como se fosse cair com certeza às mãos do seu inimigo. Mas
isto é puramente um engano; pois o Evangelho é a soma da sabedoria; o epítome
do conhecimento; uma tesouraria da verdade; e uma revelação de secretos
mistérios. Nele vemos como a justiça e a misericórdia podem casar-se; aqui
vemos a lei inexorável inteiramente satisfeita, e ao amor soberano carregando o
pecador em triunfo. A nossa meditação sobre ele engrandece a mente; e na medida
em que se abre a nossa alma em lampejos sucessivos de glória, ficamos atónitos
ante a profunda sabedoria manifesta nele.
Ah, queridos amigos! Se procurais
sabedoria, vê-la-eis exibida em toda a sua grandeza, não no balanço das nuvens,
nem na firmeza dos alicerces da Terra; não na marcha cadenciada dos exércitos
do firmamento, nem no movimento perpétuo das ondas do mar; nem na vegetação com
todas as suas formosas formas de beleza; nem tampouco no animal com o seu
maravilhoso tecido de nervo, e de veia, e de músculo: nem no homem, essa última
e mais elevada obra do Criador. Mas voltai a vossa vista e vede este grandioso
espectáculo! Um Deus encarnado sobre a cruz; um substituto expiando a culpa
mortal; um sacrifício satisfazendo a vingança do Céu; e salvando o pecador
rebelde.
Aqui há sabedoria essencial;
entronizada, coroada, glorificada. Admirai isto, vós homens da Terra, e não
sejais cegos: e vós, que vos glorificais dos vossos conhecimentos, inclinai as
vossas cabeças em sinal de reverência, e reconhecei que toda a vossa habilidade
não pôde ter concebido um Evangelho ao mesmo tempo justo para com Deus e seguro
para com o homem.
Meus amigos, recordai duma vez que o
Evangelho é em si mesmo sabedoria, e ele também confere sabedoria aos seus
estudantes; ensina aos jovens sabedoria e discrição, e dá entendimento ao
simples. Um homem que seja um admirador crente e um amante sincero da verdade,
como o é em Jesus, está num lugar correto para seguir com benefício qualquer
outro ramo da ciência. Eu confesso que possuo na minha cabeça agora uma
prateleira para cada coisa. Sei onde pôr qualquer coisa que leio; sei onde
armazenar qualquer coisa que aprendo. Antes, quando lia livros, punha todo o
meu conhecimento aglomerado numa gloriosa confusão; mas, desde que conheci a
Cristo, pus a Cristo no centro, como meu Sol, e cada ciência gira ao redor dEle
como um planeta, enquanto que as ciências menores são satélites desses
planetas. Cristo é para mim a sabedoria de Deus. Agora, posso aprender tudo. A
ciência de Cristo crucificado é a mais excelente das ciências; é para mim a
sabedoria de Deus.
Ó, jovem amigo, constrói o teu estúdio
no Calvário! Levanta ali o teu observatório, e mediante a fé esquadrinha as
coisas elevadas da natureza. Toma uma cela de ermitão no jardim do Getesêmane,
e lava o teu rosto nas águas de Siloé. Adota a Bíblia como o teu padrão
clássico; que seja a tua última apelação em matéria de disputas. Que a sua luz
seja a tua iluminação, e então converter-te-ás em alguém mais sábio do que
Platão; mais erudito que os sete sábios da antiguidade.
E agora, meus queridos amigos, solenemente
e de todo coração, como ante os olhos de Deus, a vós apelo. Estais congregados
aqui no dia de hoje, eu sei, por diferentes motivos; alguns vieram por
curiosidade; outros são meus ouvintes regulares; alguns vieram de um lugar e
outros de outro. O que me ouviste dizer no dia de hoje? Falei-vos de duas espécies
de pessoas que rejeitam Cristo; o fanático que possui uma religião formal e
nada mais; e o homem do mundo, que chama ao nosso Evangelho uma loucura.
Agora, põe a tua mão no teu coração e
interroga-te esta manhã: “Sou eu um destes?” Se o és, então caminha pela Terra
com todo o teu orgulho; então, vai-te para donde vieste; porém, deves saber que
por tudo isto, o Senhor te levará a juízo; deves saber que os teus gozos e
delícias se desvanecerão como um sonho, “e, como a infundada trama de uma
visão,” será varrida para sempre. Deves saber isto, ó homem, que um dia nos
salões de Satanás, em baixo, no Inferno, talvez te vejas entre os milhares de
espíritos que dão voltas para sempre num círculo perpétuo com as suas mãos
sobre os seus corações. Se a tua mão for transparente, e a tua carne for
transparente, vou olhar através da tua mão e da tua carne, e vou ver o teu
coração. E, como o verei? Colocado num estojo de fogo; num estojo de fogo! E
ali dará voltas para sempre, com o verme que rói o teu coração por dentro, o
qual nunca morrerá; um estojo de fogo aprisionando o teu coração que nunca
morre, que é sempre torturado. Bom Deus!, não permitas que estes homens ainda
rejeitem e desprezem Cristo; porém, permite que este seja o momento em que
sejam chamados.
Para o resto de vós que sois chamados,
não preciso dizer nada. Quanto mais viveis, encontrareis que o Evangelho é cada
vez mais poderoso; quanto mais profundamente sejais ensinados por Cristo,
quanto mais viveis sob a constante influência do Espírito Santo, mais
reconhecereis que o Evangelho é uma coisa de poder, e mais entendereis que é
uma coisa de sabedoria. Que toda bênção desça sobre vós; e que Deus sempre
esteja connosco!
“Que os homens e os anjos cavem as minas
Onde brilha o dourado tesouro da natureza;
Colocado perto da doutrina da cruz,
Todo o ouro da natureza parece como escória.
Se vis blasfemos com desdém
Declaram as verdades de Jesus vãs
Enfrentaremos o escândalo e a vergonha
E cantaremos com triunfo em Seu nome.”
Tradução de Carlos António da Rocha
****
Esta tradução é de
livre utilização, desde que a sua ortografia seja respeitada na íntegra porque
já está traduzida no Português do Novo Acordo Ortográfico e que não seja nunca
publicada nem utilizada para fins comerciais; seja utilizada exclusivamente
para uso e desfruto pessoal.
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