… Mas o melhor de tudo é crer em Cristo! Luís Vaz de Camões (c. 1524 — 1580)

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Sermão n.º 849



C. H. Spurgeon

Sermão n.º 849

“Comércio espiritual insalubre” (Unsound spiritual trading), pregado na manhã do domingo, 10 de Janeiro de 1869, por Charles Haddon Spurgeon, no Tabernáculo Metropolitano, Newington, Londres.



“Todos os caminhos do homem são limpos aos seus olhos, mas o Senhor pesa os espíritos.” (Pv 16:2, ARC, Pt)

Durante os dois últimos anos algumas das mais notáveis reputações comerciais foram destruídas irremediavelmente. No grande mundo do comércio, alguns homens a quem foram confiadas centenas de milhares de libras esterlinas, em torno de cujo carácter não se abatia nenhuma nuvem de suspeita e nem sequer uma sombra de dúvida, demonstraram carecer de princípios e ser de precária honestidade. A prova de fogo foi demasiado grande para a madeira, para o feno e para o restolho de muitas firmas gigantescas. Casas de negócios que pareciam fundadas sobre uma rocha e que simulavam ser tão firmes como o própria coisa pública, foram sacudidas até aos seus alicerces e hão desabado com um tremendo estrondo. Por todos lados vemos o afundamento de grandes reputações e de colossais fortunas. Há lamentação nos palácios da farsa e desolação nos salões da pretensão. As bolhas de ar estão-se rebentando, os foles sofrem colapsos, a pintura está-se gretando e o brilho superficial está a sair. Provavelmente veremos mais disto; ter-se-ão de fazer mais revelações de uma riqueza aparente que cobria a insolvência assim como um brilhante papel pode cobrir uma parede de lodo; astuciosos esquemas enganavam o público com lucros nunca realizados e tentavam-no a realizar as mais atrevidas especulações, assim como a miragem do deserto engana o viajante. Temos visto nos impressos públicos, mês após mês, frescos descobrimentos dos modos de financiamento adotados pela vilania deste tempo presente, para realizar roubos honestamente e cometer maldades com confiança. Havemos ficado assombrados e atónitos ante os truques vis e os artifícios desavergonhados a que homens eminentes se têm dignado. E, sem embargo, havemo-nos visto forçados a ouvir justificações de fraudes gigantescas e obrigados até a crer que os seus perpetradores não consideraram que estavam atuando desonrosamente, porque os seus próprios êxitos prévios unidos ao baixo estado de moralidade, nos hão aquietado para cairmos num estado no qual a consciência, se não estava morta, estava profundamente adormecida. Digo que provavelmente veremos algo mais desta escola de desonestidade; porém, é uma lástima que tenhamos de vê-lo, e é completamente desnecessário, pois todo o negócio do financiamento pode ser examinado agora pelo estudante diligente com modelos e exemplos vivos, mais que suficientes para ilustrar cada porção individual da arte.

Algumas épocas poderão ter sido grandes na ciência, outras na arte e outras na guerra, porém, a nossa época sobressai entre todas as demais pela perícia dos seus patifes; este é o período clássico do artifício enganoso e a época de ouro da fraude. Se um homem tiver um coração ruim, uma consciência cauterizada e um plausível modo de falar, e se resolve enganar o público com milhões de libras esterlinas, não precisa viajar para aprender o método mais sofisticado pois pode encontrar exemplos muito perto, em casa, entre os elevados professores e os grandes da terra.

Meus irmãos, estas estrondosas torres derrubadas à direita, estes sons de muralhas ameadas que se desabam à esquerda, estes gritos dos náufragos de todos os lados, ao longo das costas do comércio, não só despertaram dentro de mim muitos pensamentos relativos a eles mesmos e à podridão da sociedade moderna, mas também me têm conduzido a meditar em catástrofes similares que sempre estão ocorrendo no mundo espiritual. Sem nenhum registo nas publicações, e sem ser lamentados pelos homens não regenerados, há falhas, e fraudes e bancarrotas da alma que são horríveis de considerar. Há um comércio espiritual tão pretensioso e, aparentemente tão bem sucedido, como o seu alardeado malabarismo de responsabilidade limitada nos negócios, e é igualmente tão podre que vai terminar decerto num irremediável desmoronamento. A especulação é um vício espiritual assim como é um vício comercial: o comércio sem capital é comum no mundo religioso, e o anúncio de uma coisa com um elogio exagerado e com erro, são práticas quotidianas. O mundo exterior é sempre representativo do mundo interior; a vida que rodeia o comércio ilustra a vida que prolifera dentro da igreja; e se os nossos olhos fossem abertos e os nossos ouvidos fossem capazes de ouvir as visões e os sons do mundo do espírito interessar-nos-íamos muito mais e entristecer-nos-íamos muito mais, do que as ações que começam na sala do conselho dos diretores e que não sabemos onde terminam. Veremos, neste tempo, fortunas religiosas colossais dissolvidas numa abjeta pobreza espiritual. Veremos excelsos professantes, muito reverenciados e tidos em alta estima, sumidos na vergonha e no desprezo eternos. Veremos os ricos em assuntos divinos, em quem os homens confiaram incautamente como seus guias e conselheiros, a respeito dos melhores interesses das suas almas, desmascarados e identificados como enganadores do princípio ao fim. Parece-me que espiono no mundo das coisas espirituais e vejo muitas torres de Babel cambaleantes e quase a cair; muitas árvores formosas estão apodrecendo no coração; muitas faces rosadas estão sendo debilitadas insidiosamente pela enfermidade. Sim, um som chega ao meu ouvido proveniente de homens da igreja, aparentemente ricos e com abundância de bens, que estão nus, e são pobres e miseráveis, e são grandes homens cujas excelsas glórias não são senão flores mortiças. Sempre houve homens assim, e também há muitos agora, e havê-los-á até ao fim.

É certo que a provisão dos enganadores se manterá, visto que o versículo nos diz que todos os caminhos do homem são puros na sua própria opinião; há uma propensão na natureza humana que conduz os homens, até quando estão mais equivocados, a julgarem-se mais retos. O versículo sugere, ao mesmo tempo, a terrível conclusão a que chegará todo o autoenganado, pois o juízo do homem concernente a si mesmo não é final, e vem o dia quando o Senhor que pesa os espíritos reverterá o veredicto de uma consciência perjurada, e fará com que o homem já não esteja mais sob a falsa luz que a sua altivez projetou em torno de si, mas sob a verdadeira luz em que toda a glória imaginada se desvanecerá como num sonho.

Viajei há algum tempo num navio de ferro a vapor para o Continente e o capitão disse-me que a bússola estava muito longe de ser digna de confiança quando estava rodeada de muito ferro, e que algumas vezes, até onde sabia, quando tinha manobrado o timão corretamente, se havia encontrado consideravelmente muito fora da sua rota. Ainda que a bússola estivesse colocada no alto dos mastros, para que estivesse o mais longe possível da região da atração metálica, o desvio e as aberrações no caso da sua própria bússola tinham sido extremamente notáveis em várias ocasiões. De igual maneira, a nossa consciência, como originalmente procedeu de Deus era, sem dúvida, uma norma extremamente correta acerca do bem e do mal, e se tivéssemos navegado de conformidade com ela, teríamos alcançado muito certamente o porto; mas, a consciência está agora vinculada com uma natureza depravada, que impede o seu correto funcionamento. Agora, se quando a bússola errar, as leis da natureza variassem para compensar os defeitos dela, as aberrações não importariam; mas, se o homem é desorientado por uma agulha desviada, poderá chocar inesperadamente contra uma rocha, e irá a pique, tão certamente como se o timoneiro se tivesse descuidado de revisar a bússola totalmente.

Assim, se a lei de Deus pudesse ser moldada para que se adequasse aos erros do nosso juízo, poderia não importar; porém, as leis permanecem sendo as mesmas teimosa e inflexivelmente, e se nos desviarmos do caminho reto por causa deste nosso falso juízo, não seremos menos culpados e descobriremos que o nosso destino não será menos terrível.

Por isso, na verdade, com uma maior veemência e sinceridade devida para convosco, e com um maior quebrantamento e humildade de espírito por minha conta, esta manhã trato deste assunto, desejando falar com as diversas espécies de pessoas que haja entre vós, exortando-vos a não vos deixardes adular pelas vossas próprias conceções da vossa posição para não sairdes do rumo no qual deveríeis manobrar e suplicando-vos para que recordeis que, sem importar quão bem possais adular-vos a vós mesmos com a ideia de que o vosso caminho é reto e claro, o inevitável dia do juízo deverá acabar com todos os erros, por prazenteiros que sejam.

Comerciantes espirituais, falo para vós, neste dia, para vos recordar a grande auditoria que se aproxima e para vos advertir que não façais um formoso espetáculo por um tempo, terminando por fim numa colisão. Estou seguro de que há muito comércio espiritual por toda parte, e para vos salvar disso, peço ao Espírito Santo que me ajude a falar de maneira clara e esquadrinhadora nesta manhã.

Pretendo, com a ajuda de Deus, aplicar o versículo a diferentes tipos de pessoas. Esforçar-nos-emos por sermos práticos durante a pregação do sermão, enfatizando para cada um de vós a verdade vital com grande denodo.

I. OS CAMINHOS DOS HOMENS ABERTAMENTE MALVADOS são limpos na sua própria opinião, porém, o SENHOR pesa os seus espíritos.

À primeira vista, esta declaração pareceria ser precipitada. Não serão o bêbado, o blasfemo, o quebrantador do dia de guarda, limpos em sua própria opinião? Salomão era um profundo estudioso da natureza humana, e podeis estar seguros de que quando ele escreveu esta frase sabia o que escrevia. Os maiores conhecedores da humanidade dir-vos-ão que a justiça própria não é um pecado peculiar do virtuoso, mas que, muito surpreendentemente, floresce onde pareceria que haveria um chão pouco propício para ele. Esses homens, que evidente e claramente, não têm qualquer justiça com a qual se pudessem glorificar, segundo o juízo dos seus semelhantes, são precisamente as pessoas, que quando te pões a esquadrinhar na profundidade da sua natureza, confiam numa bondade imaginária com a qual sonham e na qual se apoiam.

Tomai por um momento as pessoas visivelmente imorais e começai a falar-lhes dos seus pecados e descobrireis que estão acostumadas a falar das suas faltas sob nomes muito diferentes dos que a Escritura e a reta razão usariam. Essas pessoas não chamam à bebedeira, “bebedeira”, por exemplo, mas sim é, “tomar um copo.” Não advogariam, nem por momento, por uma clara blasfémia, mas redefinem-na como: “uma linguagem forte, que um indivíduo tem de usar, se tiver de seguir adiante”, ou é simplesmente, “deixar escapar uma palavra mais ou menos feia porque foi muito mortificado.” Eles disfarçam para si mesmos o vício como prazer; etiquetam a imundície como alvoroço, a sua obscenidade como atordoamento. Falam dos seus pecados como se não houvesse neles uma gravidade, como sendo só bagatelas ligeiras como o ar, e se estiverem moralmente condenáveis em tudo, isso são temas para o látego feito de plumas do ridículo mais do que para o açoite da condenação. Além disso, a maioria deles argumentará que não são tão maus como os demais. Há um ponto especial no seu carácter no qual não vão mais longe do que alguns dos seus semelhantes, e este é um ponto grandioso e um enorme consolo para eles. Confessam que são pecadores, sem querer dizê-lo nem por um instante; e se chegasses a pontos específicos e aos pormenores, se eles tiverem uma disposição mental honesta, em que retrocederão passo a passo, admitindo falta após falta, até chegarem a um ponto particular onde se plantam com virtuosa indignação. “Aqui estou exatamente além de toda censura, e inclusive aqui mereço um louvor. Até aqui chegou o meu pecado, porém, quão completamente puro de coração tenho de ser, para que jamais permita o seu avanço para diante!” Esta frase jactanciosa é frequentemente tão singular e misteriosa no seu sentido, que ninguém, a não ser o próprio homem pode ver alguma razão ou consistência nela; e o satírico que dispara contra a necedade quando esta voa, encontra abundantes alvos para suas flechas. Sem embargo, para esse homem, deter-se ali é a cláusula salvadora da sua vida; olha para isso como a tábua de salvação do seu carácter. A mulher cujo carácter desapareceu há muito tempo, mas que se gaba de que há um limite para a sua libertinagem, o que é um mérito no seu apreço, tem mérito suficiente para fazer com que todos os seus caminhos sejam limpos, na sua própria opinião.

Além disso, os piores homens concebem ter algumas excelências e virtudes, e se bem que eles não expiam o suficiente pelas suas faltas, pelo menos diminuem grandemente a medida de culpa que lhes deveria ser atribuída. O homem é um esbanjador, “mas, amigo, ele sempre foi franco e não foi inimigo de ninguém, exceto de si mesmo.” O homem, é verdade, amaldiçoaria a Deus, mas então, bem, trata-se de um simples hábito, ele sempre foi um jovem impertinente, mas não tinha intenção de fazer mal; e além disso, nunca foi tão mentiroso como Fulano de Tal; e, na verdade, desprezava dizer uma mentira sobre qualquer assunto de negócios. Outro tem enganado os seus credores, mas era um homem tão simpático; e ainda que o pobre indivíduo nunca pudesse ter contas ou administrar assuntos de dinheiro, sempre tinha uma boa palavra para todo mundo. Se o homem imoral se sentasse para descrever o seu próprio carácter, e convocasse toda a parcialidade da que é capaz, diria: “sou um triste cão em alguns aspetos, semeando muitíssima aveia silvestre, mas tenho um bom carácter subjacente que, sem dúvida, manifestar-se-á algum dia, de tal maneira que o meu fim será brilhante e glorioso, apesar de tudo.” Este último ponto que sugeri é muito frequentemente a justiça dos homens que não têm outra, quer dizer, a sua intenção um destes dias é emendar-se e melhorar muito. Para compensar a presente pobreza de justiça sacam um crédito para o futuro. As suas promessas e resoluções são uma espécie de papel moeda, com o qual imaginam que podem comercializar durante toda a eternidade. “Não se faz isto frequentemente nos negócios”? Dizem eles: “Um homem que não tem um ingresso no presente pode ter um interesse hereditário numa propriedade; recebe antecipações sobre isso, por que não haveríamos de recebê-los nós?” O pecador patente tranquiliza assim a sua muito predisposta consciência com o quadro imaginário da sua emenda e arrependimento futuros, e começa a sentir-se meritório e desafia todas as ameaças da Palavra de Deus.

Eu poderia estar falando com alguns para quem estas observações são muito aplicáveis, e se for assim, rogo-vos que sejais conduzidos a pensar seriamente. Ouvinte, precisas de saber, ou ao menos, uns quantos momentos sóbrios de reflexão te fariam saber que não há nenhuma verdade nas súplicas, nas desculpas e nas promessas com as quais aquietas agora a tua consciência; a tua paz está cimentada numa mentira e é sustentada pelo pai das mentiras. Enquanto continues quebrantando temerariamente as leis de Deus na tua vida ordinária, e comprazendo-te no pecado, tu estás sob a ira de Deus com toda certeza; e estás entesourando ira para o dia da ira, e quando a medida da tua iniquidade estiver colmatada, então receberás a terrível recompensa da transgressão. O Juiz de toda a Terra fará o pagamento efetivo em relação às tuas vãs pretensões que agora embrutecem a tua consciência. Ele não é um homem que possa ser adulado como tu te adulas e te enganas a ti mesmo. Não terias a insolência de Lhe dizer a Ele as tuas desculpas. Terias a coragem de te ajoelhar agora para falares com o grandioso Deus do Céu, e dizer-Lhe todas estas coisas boas com as quais estás agora aplainando as dificuldades no teu caminho ladeirento? Espero que não tenhas chegado a um declive tão descarado de insolência como esse, mas, se o tens feito, permite-me recordar-te essa segunda frase do meu versículo: “O SENHOR pesa os espíritos.” Uma balança justa e veraz será empregue contigo brevemente. Quando o Senhor põe pessoas como tu na balança não haverá nenhuma necessidade de demoras; a sentença será pronunciada imediatamente, e não haverá apelação para essa sentença: “Pesado foste em balança, e foste achado em falta.” Ah, então, meu querido ouvinte, quando essa tua consciência desperte, como te atormentará! Está adormecida agora, drogada pelos opiáceos da tua ignorância e da tua perversidade; mas despertará logo como um gigante refrescado com vinho novo, e então com força e fúria impensadas antes, derrubará o templo da tua paz a par dos teus ouvidos, assim como Sansão matou os filisteus. Uma consciência desperta no outro mundo é o verme que não morre e o fogo que não se apaga. Oh, senhores, é algo terrível ser entregue à sua própria consciência quando essa consciência está alistada do lado correto. Os velhos tiranos tinham os seus terríveis verdugos com as suas frontes cobertas com máscaras sombrias e levando o brilhante e resplandecente machado; os antigos inquisidores vestiam os seus familiares com túnicas de estamenha e capuzes de cujas frestas brilhavam intensamente os seus ferozes olhos como lobos; porém, não há atormentadores, não, nem demónios do Inferno que comprovem ser mais terríveis para um homem do que a sua própria consciência quando o seu látego está tecido com a verdade e pesado com a honestidade. Alguma vez soletraram as letras ardentes dessa palavra: remorso? Nas entranhas dessa única palavra jaz o Inferno com todas as suas torturas. Oh, senhores, se fosseis despertados, ainda que o fosseis levemente por um zeloso sermão, ou por uma morte súbita, quão vis vos sentiríeis e quão desesperadamente vos sumireis numa renovada alegria e na libertinagem para afogar os vossos pensamentos; mas, o que fareis com pensamentos que nenhuma dissipação pode afogar, e lembranças que nenhum júbilo pode erradicar? O que será para ti ser perseguido pelos teus pecados pelos séculos dos séculos? O que será chegares a ter a certeza, de que para ti não haverá jamais nenhuma via de salvação para a culpa e o castigo, que possa ser descoberta?

Oh, vós, que sonhais ingenuamente que o caminho largo que leva à destruição é o sendeiro que remonta à bem-aventurança celestial, suplico-vos que aprendais a sabedoria e que estejais atentos à voz da instrução; considerai os vossos caminhos e procurai o sangue precioso que é o único que pode apagar os vossos pecados.

II. Agora vou dirigir-me a uma segunda espécie. OS CAMINHOS DO HOMEM ÍMPIO são limpos na sua própria opinião, mas o SENHOR pesa os espíritos.

O homem ímpio é amiúde extremamente reto e moral no seu comportamento exterior para com os seus semelhantes. Não tem nenhuma religião, mas gloria-se por uma multidão de virtudes de outro tipo. É tristemente certo que há muitos que exibem afabilidade, mas que, sem embargo, são pouco amáveis e injustos com o único Ser que deveria receber o máximo do seu amor, e que deveria ser respeitado por eles nas suas condutas antes de mais nada. Quão frequentemente me tenho encontrado com o homem ímpio que tem dito: “Falas-me para que eu tema a Deus! Eu não O conheço, nem O respeito, porém, eu sou muito melhor que aqueles que o fazem.” Algumas vezes dirá: “Eu considero a tua religião como uma mera farsa; considero que os Cristãos são constituídos por duas espécies: canalhas e néscios. Ou são enganados por outros, ou por outro lado, estão enganando outros por interesses próprios. A tua conversa a respeito de Deus, amigo, é pura conversa insincera; em relação a alguns deles admito que não é precisamente isso, mas nesse caso têm muito escasso cérebro para ser capazes de descobrir que estão enganados. Sem embargo, tomando o assunto como um todo, e isto tudo é um assunto sem sentido, e se as pessoas se comportassem com os seus vizinhos como deveria ser, e cumprissem com o seu dever na esfera da sua vida, isso bastaria.”

Sim, e há nesta cidade de Londres, milhares e centenas de milhares que pensam que isto é uma boa lógica, e que abrem os seus olhos com assombro se por um só instante supõem que estás contradizendo a sua declaração de que um estilo de vida assim é o melhor e o mais recomendável; e, sem embargo, se pudessem pensar, nada poderia ser mais insalubre do que a sua vida e a sua suposta excelência. Aqui temos um homem criado pelo seu Deus, e que é colocado no meio dos seus semelhantes, as criaturas; certamente o primeiro dever que tem é para com o seu Criador. A sua vida depende inteiramente da vontade desse Criador; o seu primeiro dever tem de ser ter respeito Àquele em cujas mãos está o seu fôlego. Porém, este homem não apenas recusa ser obediente à lei do seu Criador e a respeitá-Lo nas suas ações diárias, mas acorre para os seus vizinhos, que são simples criaturas como ele mesmo, e diz-lhes: “A vós, vou ter respeito, mas a Deus, não. Vou obedecer a qualquer lei a que me obrigue a minha relação convosco, mas não vou considerar nenhuma lei que contemple a minha relação com Deus, exceto para a ridicularizar e para me escarnecer dela. Serei obediente a tudo, exceto a Deus; farei com qualquer um o que é justo, exceto com o Altíssimo. Tenho um senso do bem e do mal, mas restringirei a sua acção para os meus semelhantes, e esse senso do bem e do mal irei apagá-lo completamente quando se tratar da minha relação com Deus.”

Agora, se não houvesse nenhum Deus, este homem seria muito sábio, mas como há um Deus que nos criou, que virá certamente sobre as nuvens do Céu para chamar a cada um de nós a prestar-Lhe contas pelas coisas que temos feito no corpo, qual, credes vós, será a sentença ditada para este servo infiel? Atrever-se-á a dizer ao seu Rei: “Eu sabia que Tu eras o meu Criador e o meu Senhor, mas considerei que se servisse aos meus conservos isso bastaria; sabia o que era justo para com eles, mas não considerei fazer nada que fosse reto para Contigo?” A resposta será: “Servo mau e infiel, sabias o que era bem e o que era mal e, sem embargo, para Comigo, tendo Eu o primeiro direito sobre ti, atuaste injustamente, e ainda que estivesses disposto a inclinar o teu pescoço ante os outros, não te quiseste submeter-te a Mim. Aparta-te de Mim, não te conheço. Tu não Me conheceste, Eu tampouco te conheço. Peso-te na balança e encontro-te completamente reprovado. És lançado fora para sempre.”

Oh homem ímpio, que esta advertência, se estiveres aqui esta manhã, soe no teu coração assim como também nos seus ouvidos: não desafies mais o teu Criador ou vivas em negligência para com Ele, antes diz: “Levantar-me-ei e irei a meu pai; confessarei que O tenho esquecido e O tenho desprezado, e buscarei a paz por meio do sangue de Jesus Cristo.”

III. Além disso, vou dirigir me a outra espécie de pessoas. Em todas as épocas da igreja, e especialmente neste tempo, há numerosas pessoas que são RELIGIOSAS EXTERIORMENTE, mas cuja religião termina ali.

Agora, parece-nos surpreendentemente estranho a alguns de nós que um homem esteja atuando corruptamente, que esteja vivendo perversamente, e sem embargo, que pense que os seus caminhos são limpos porque recebe um sacramento ou assiste num certo lugar de adoração. Tenho de confessar que para a minha mente isto parece um fenómeno muito estranho: que existam homens de inteligência neste mundo que sabem que a sua conduta é completamente censurável, e sem embargo, que se sentem perfeitamente tranquilos porque observaram diligentemente um ritual preferido; como se o inclinar, e fazer ruídos, ou cantar ou gemer pudessem ser substitutos da santidade de coração.

Olhai para o fariseu, e dizei-me se não é um portento moral! Devora as casas das viúvas, e está pronto para caçar tudo o que lhe venha à mão; é um hipócrita detestável, porém, o homem está perfeitamente tranquilo porque estendeu as franjas dos seus mantos, jejua duas vezes por semana e coa o mosquito do vinho que bebe; está muito contente consigo mesmo e todos os seus caminhos lhe parecem retos, tão retos, na verdade, que outros homens que são melhores do que ele recebem o seu desprezo quando passa junto a eles, temeroso de que se interponham entre o vento e a sua nobreza. Dá graças a Deus porque não é como os outros homens, quando, até onde podemos julgar vós e eu, ele está dez mil braças mais afundado na tenebrosa condenação pelo seu carácter horrivelmente hipócrita.

Sem embargo, irmãos, alguma ou outra forma disto, é muito comum. Todos os caminhos de um homem são limpos para ele uma vez que adotou a ideia de que a religião cerimoniosa, ou a conversação religiosa, ou a profissão religiosa podem compensar pelo pecado moral.

Ah, irmãos, este mal poderia infiltrar-se até entre nós. Não sejamos tão velozes a condenar o fariseu quando, talvez, o mesmo pecado pode poluir as nossas próprias almas. Conheci um homem que era considerado como um firme calvinista que acreditava em toda a alta doutrina, mas que vivia uma vida muito corrupta. Desprezava os “arminianos”, conforme decidiu chamá-los, ainda que alguns desses seres desprezados viviam muito perto de Deus e caminhavam em santidade e em integridade. O arminiano, piedoso como era, perder-se-ia; porém, este homem ortodoxo, justo com justiça própria, que podia ao mesmo tempo beber e enganar, pensava que ia ser salvo porque tinha sido capaz de ver a verdade de certas doutrinas, que também o diabo via assim como ele.

Conheci outro que pensava que tinha uma profunda e memorável experiência, que falava longamente da depravação do seu coração, ao ponto de que algumas pessoas pensavam que deveria ser capaz de falar a respeito disso muito verazmente, pois demonstrava-o na sua vida; e, sem embargo, porque podia repetir frases insinceras, e tinha adotado certas ricas expressões de experiência livresca, pensava, realmente no seu interior, que não somente era muito bom, mas também um modelo a ser copiado por outros. À direita e à esquerda, homens como estes lançarão maldições e anátemas sobre os melhores e os mais sinceros dos santos. Eles são os homens; a sabedoria morrerá com eles. Havendo morrido a santidade com eles, não há de surpreender-nos que a sabedoria morra, também.

Ah!, tenhamos cuidado para que nem vós nem eu bebamos o mesmo espírito noutra forma. Ah!, pregador, toda a tua pregação pode ser muito boa e bastante sólida e correta, e até poderá ser edificante para o povo de Deus, e estimulante para os não convertidos. Mas, recorda que Deus não te julgará pelos teus sermões, mas sim pelo teu espírito, pois Ele não pesa as tuas palavras, mas antes o teu motivo, o teu desejo, o teu propósito ao pregares o Evangelho.

Diácono da igreja, tu poderás ter caminhado com toda a honra durante muitos anos, e poderás ser universalmente respeitado, e o teu ofício poderá ter sido bem cumprido em todos os seus deveres externos, porém, se o teu coração não for reto, se algum pecado secreto for consentido, se houver uma chaga gangrenosa na tua profissão que ninguém conhece senão tu mesmo, o Senhor, que pesa o espírito, não tomará em conta o teu diaconado nem que tenhas levado os cálices e o pão na comunhão, mas sim, serás achado em falta e serás lançado fora.

Tu, também, irmão ancião, os teus lavores e as tuas orações não são nada se o teu coração for maligno. Podes haver visitado os demais e havê-los instruído e teres sido um juiz da sua condição; mesmo assim, se tu não tens servido a Deus e à Sua igreja motivado pelo puro desejo da Sua glória, tu também, posto na balança, serás rechaçado com aborrecimento. Eu oro frequentemente –sem embargo, queria orar ainda mais– para que nenhum de nós neste lugar seja convencido da ideia de que estamos bem se estivermos mal. Não é a tua assistência ao Tabernáculo, não é o tu seres membro da igreja, o teu batismo, a tua assistência às reuniões de oração, nem que faças algo, o que terá alguma relevância neste assunto; é a entrega verdadeira do teu coração a Deus, e que vivas de conformidade com a tua profissão; e a menos que a graça de Deus te seja realmente dada para fazê-lo, os teus caminhos poderão ser limpos na tua própria opinião devido à tua profissão externa; porém, o Senhor que pesa os espíritos terminará rapidamente com essas borbulhas, Ele partirá toda essa confeitaria, destroçará estas falsas aparências, e deixará o homem que pensou ter um palácio sobre a sua cabeça ao longo da eternidade, que ele se sente e tirite entre as ruínas da sua Babilónia, e que grite e chore e gema entre dragões e diabos.

IV. Mas prosseguindo, há outro carácter que tem de ser considerado. “Todos os caminhos do homem são limpos na sua própria opinião”; assim são OS CAMINHOS DO PROFESSANTE COBIÇOSO.

É assombroso para alguns de nós que um homem cujo objetivo na vida é meramente ganhar dinheiro, e que retém o que possui e não o dá à causa de Deus, adote a profissão de ser um homem Cristão, porque nenhum de todos os vícios é mais contrário à verdadeira religião do que a cobiça. Onde encontraríeis um exemplo de um só santo na Escritura que caísse alguma vez na cobiça? Hão caído em todos os demais pecados, mas neste, não me recordo de que um filho de Deus mencionado na Escritura tenha jamais caído nele. A graça pode existir onde há muitos pecados ocasionais, mas nunca onde há uma cobiça perdurável. Pensai nas palavras de Paulo: “Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus? Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores, herdarão o reino de Deus.” (1Co 6:9-10 ARC, Pt) Lutero costumava dizer: “Fui tentado a todos os pecados, exceto à cobiça.” Detestava-a tanto que distribuía os presentes que recebia para não ter a sua porção neste mundo. Adams, no seu livro sobre Pedro, bem assinala: “Noé embebedou-se uma vez com vinho, mas, nunca com o mundo; Loth foi incestuoso duas vezes, mas, nunca foi cobiçoso; Pedro negou o seu Mestre três vezes, mas, não foi o amor ao mundo, mas antes, o temor do mundo o que o conduziu a fazê-lo. David foi vencido uma vez pela carne, mas, nunca pela cobiça. Por que é que eles não se desfizeram do adultério, da ira, e de outros pecados similares? Porque as debilidades de um santo podem cair nesses pecados, mas, se caíssem uma vez na cobiça, não restaria nada do santo, nem sequer o nome. A cobiça tem a marca do ódio de Deus em toda a sua testa.” “Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele”; e quando alguém que professa a fé mostra o amor do mundo na forma mais grosseira, quando dá o passo para ser o escravo de “Mammon, o menos elevado dos espíritos caídos do céu”, (1) mostra a evidência, a todos que julgam retamente, de acordo com a Escritura, de que o amor de Deus não está nele, e não pode estar nele; as duas coisas são incompatíveis. Sem embargo, e é estranho dizê-lo, não conhecemos só a uns quantos, cujo caminho lhes parece ser limpo, na sua própria opinião. Oprimem aqui e ali, agora os seus servos e agora os seus clientes: a viúva, e os órfãos não estariam seguros com eles se eles lhes pudessem roer os seus ossos. Todos os resíduos que desprendem, sustentam-nos com um apertão de ferro. Ainda que as almas se percam não aceitariam o envio de missionários à custa do seu dinheiro. Ainda que esta Londres se infete de pecado, ainda que se cubra das úlceras da mais terrível depravação, não se vêem nunca movidos para dar alguma ajuda tendente a sarar as feridas da cidade. E, sem embargo, enquanto a sua condenação os espera com certeza, e a sua sentença os olha no rosto tão claramente como o Sol desde os céus, os seus caminhos parecem-lhes limpos. É estranho que seja assim, porém, o Senhor pesa os espíritos, e que pesagem será essa, quando os homens que escapam à censura da igreja porque o seu pecado foi um pecado que a igreja não pôde tratar, sejam culpados de cometê-lo, e Deus os lance fora! Vãs vão ser as suas pretensões de que comeram e beberam na casa de Deus, pois a resposta virá: “Tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber… estive nu, e não me cobristes; doente, e no cárcere, e não me visitastes. Na verdade vos digo, nunca vos conheci!”

Oh, deixai que esta verdade, pois é a verdade, atravesse como uma espada de dois fios o meio dos corações de quaisquer um de vós que estais começando a ceder frente a este vício condenatório. Clamai a Deus pedindo que na medida em que vos dê riquezas, as possais usar para a Sua glória. Pedi-Lhe que nunca pereçais com uma pedra de moinho ao redor do vosso pescoço; pois ainda que esse peso assassino seja feito de ouro, o facto de perecer, não será melhor por isso.

V. Outro carácter tem de receber também uma palavra: agora, vamos notar OS CAMINHOS DO PROFESSANTE MUNDANO.

É surpreendente como algumas pessoas, fazendo uma profissão de religião, adaptam-na à sua consciência para poder viver como vivem. Não poderias detetar com um microscópio alguma diferença entre elas e os mundanos comuns, e sem embargo, pensam que há uma vasta diferença, e sentir-se-iam insultados se não lha concedesses. Hoje sobem aqui à casa de Deus, porém, a que diversões assistiram durante a semana? Como estão vestidos? Como são educados os seus filhos? Oram em família? Há alguma coisa no seu lar que seja cristã? Olha-os no negócio. Acaso não comercializam precisamente como quem não tem nenhuma pretensão da religião? Pergunta aos seus trabalhadores, simplesmente vê, e, observa-os: olha se não podem dizer mentiras inocentes da mesma maneira como os outros, se não são em tudo como o mundo, como as demais pessoas não convertidas e não regeneradas, assim como duas ervilhas são semelhantes uma com a outra. Sem embargo, os seus caminhos parecem-lhes muito limpos, na verdade muito limpos, e a sua consciência não os perturba de maneira alguma.

Só tenho esta palavra para dizer com todo o afeto a essas pessoas, desejando sinceramente que possam ser arrebatados deste fogo, “o SENHOR pesa os espíritos.” Ele conhece a nossa vida inteira. Não nos julgará sem o livro. Quando vier a prestação de contas, Ele não será como um juiz que tem de inteirar-se dos factos; virá para o Juízo Final como tendo visto com esses olhos de fogo os pensamentos secretos, os sentimentos privados da nossa vida. Todos nós poderíamos dizer: Deus sê propício a nós, pecadores; mas, ó Deus, salva-nos especialmente de sermos como os ímpios.

VI. Uma palavra mais ainda, e esta está dirigida a todos os professantes aqui presentes, mais ou menos: é uma solene palavra concernente AOS CAMINHOS DOS REBELDES LIVRES DE TEMORES.

Não sabeis, irmãos e irmãs, que muito amiúde os nossos caminhos nos parecem muito limpos quando não o são? Eu aprendi por experiência, de uma maneira muito dolorosa para a minha própria alma, que não estou minimamente qualificado para julgar a minha própria saúde espiritual: tenho crido que estive avançando nos caminhos de Deus quando tenho regredido, e tenho tido o conceito, que tem atravessado a minha mente, de que já tinha vencido certo pecado assediante, quando para minha surpresa, tenho descoberto de que ele regressou com maior força do que antes.

Companheiro professante, tu poderás estar caminhando neste momento muito retamente, segundo o crês, e prosseguir adiante muito bem e confortavelmente, mas, deixa-me fazer-te umas quantas perguntas: não estás dedicando menos tempo à oração em privado, do que costumavas dedicar-lhe? Não o fazes apressadamente; não a omites completamente algumas vezes? Não sais frequentemente do teu aposento privado sem haveres falado a Deus realmente, havendo cumprido com o formalismo só para te aquietares a ti mesmo? O teu caminho poderá parecer-te limpo, mas, não é mau, quando o propiciatório foi descuidado? O que me dizes da tua Bíblia, estás lendo-a como estavas acostumado a fazê-lo e são as suas promessas tão doces como antes eram para ti? As promessas levantam-se da página da Bíblia e falam contigo? Oh, porém, se a tua Bíblia é abandonada, irmão meu, poderás ser tão diligente assistindo na casa de Deus como costumavas fazê-lo, porém, não é um triste estado de decomposição o teu? Deixa que me aproxime mais. Há a mesma vitalidade, na tua profissão, que costumava haver? Há alguns, nesta casa, esta manhã, que, se pudessem falar, dir-te-iam que quando, para sua grande dor caíram em pecado foi porque, pouco a pouco, a sua piedade começou a perder a sua força e o poder de vida. Hão sido restaurados, mas os seus ossos ainda lhes doem ali, onde foram quebrados, e estou seguro de que diriam a seus irmãos: “Toma cuidado para não permitires que o espírito de graça se evapore, por assim dizer, gradual e lentamente. Vigia cuidadosamente sobre isso, para que, sentado sobre o teu sedimento, e não sendo este vazado de vasilha em vasilha, te tornes logo carnalmente seguro e posteriormente caias no pecado cometido.”

Pergunto a alguns dos meus irmãos aqui presentes, e faço a pergunta porque eu a tenho feito à minha própria alma e tenho-lhe respondido banhado em lágrimas, não será que alguns de nós não nos estaremos tornando duros de coração, em relação à salvação dos nossos semelhantes? Não amamos menos agora, do que costumávamos fazer, àqueles que clamam a nós: “Passa e ajuda-nos”? Não pensamos que nos estamos tornando santos experimentados? Não somos os pobres pecadores que costumávamos ser outrora. Não nos acercamos do propiciatório com um coração quebrantado como o fazíamos antes. Começámos a julgar os nossos irmãos Cristãos, e temo-los em muito menos consideração do que aquela que lhes tínhamos há anos, quando costumávamos quase amar o terreno que pisavam os santos do Senhor, considerando que éramos menos que nada ante os seus olhos.

Agora, se esse fosse o caso com outros, que se estão tornando altivos, ou que se estão esfriando, ou tornando-se duros de coração, deveríamos dizer deles que: “Se encontram num grave perigo”, mas, o que há connosco, se esse fosse o caso connosco? No que a mim respeita, dá-me horror subir a este púlpito para vos pregar meramente porque a hora chegou e porque devo completar uma hora de pregação, ou uma hora e meia de adoração. Dá-me horror tornar-me numa simples máquina de pregação, sem que o meu coração e a minha alma sejam exercitados neste solene dever; e dá-me horror por vós, meus queridos amigos, que me ouvis constantemente, que isto não seja uma mera peça para passar o tempo, que vós estejais nos vossos assentos, em certos momentos durante a semana, e vos sentais aí, e ouvis pacientemente o estrépito que o meu ruído produz nos vossos ouvidos.

Temos de ter piedade vital, e esta vitalidade tem de ser mantida, e a força e a energia da nossa religião deve continuar incrementando-se dia a dia, ou pelo contrário, ainda que os nossos caminhos pareçam ser muito limpos, o Senhor pesará logo os nossos espíritos para nossa confusão eterna.

Vós sabeis que a pesagem divina para o Seu povo em disciplina paternal é trabalho áspero?, pois ela pode pôr a alma numa balança, para pesar a nossa própria consciência, e quando nós pensamos que ela pesa libras, Ele pode revelar-nos que ela nem sequer chega a pesar dracmas! “Ali está”, diz Ele “olha o que és!” E começa a tirar o véu da presunção, e vemos a repugnância e a falsidade da nossa natureza, e ficamos completamente pasmados. Ou, talvez, o Senhor faça algo pior do que isso. Permite que nos venha uma tentação quando não a esperamos, e então o mal ferve dentro de nós, e nós, que pensávamos que já estávamos junto dos querubins, descobrimo-nos quase semelhantes aos demónios; surpreendidos, também, de que tal besta selvagem houvesse estado dormitando na toca dos nossos corações, enquanto deveríamos ter sabido que sempre esteve ali, e deveríamos ter caminhado humildemente com Deus, e haver-nos vigiado e guardado a nós mesmos.

Tende a segurança, amados, de que as grandes quedas e o terrível dano nunca chegam a um Cristão imediatamente, mas que é um processo lento e gradual; e tende a certeza, também, que podeis deslizar-vos sobre as aprazíveis águas do rio sem sonhardes jamais que o Niágara está mais à frente, e, sem embargo, podereis estar apressando-vos em direção a essas cataratas. Uma terrível colisão poderá acontecer até ao mais excelente professante que há entre nós, que fará com que o mundo ressoe com blasfémia contra Deus, e que a igreja retumbe com amargas lamentações devido a que os fortes hão caído. Deus guardará os Seus, mas, que o que acontece, se eu não sou dos Seus! Ele guarda os pés dos Seus santos, mas, o que acontece, se deixo de vigiar e os meus pés não são guardados, e, em consequência, eu não seja um dos Seus santos, mas, pelo contrário, um mero intruso na Sua família, e um pretendente a ter o que nunca tive! Oh, Deus, por meio de Cristo Jesus, livra-nos disto, a cada um de nós.

VII. Se tivesse tido tempo, tinha o propósito de falar em relação ao sétimo e último carácter, quer dizer, OS CAMINHOS DO HOMEM ENGANADO.

Há, sem dúvida, muitas pessoas no mundo que nunca descobrirão que os seus caminhos, que eles consideraram que eram muito limpos, eram maus, até que não entraram no outro mundo. Há alguns homens que são Cristãos em tudo, exceto nisto: que não têm verdadeira fé em Jesus. Há outros que aparentemente são salvos, mas, que nunca nasceram de novo, realmente. Há muitos que têm tudo, exceto, a única coisa necessária, e que pensam que têm isso, e persuadem os seus semelhantes que têm isso. Será difícil dizer quão perto um homem pode chegar a ser Cristão, e, sem embargo, perder a salvação; mas, certamente, pode chegar tão perto que ninguém, nem sequer os anjos de Deus, seriam capazes de explicar a diferença entre ele e uma alma salva, pois unicamente Deus discernirá a diferença, quando vier a pesar os espíritos.

Ouçamos a conclusão de todo o assunto, que é esta. Temos de acudir, meus irmãos, todos nós, ao lugar de confissão do pecado, e temos de reconhecer que havemos quebrantado a lei de Deus, e que merecemos a Sua justa desaprovação. Vamos com a ajuda do Seu Santo Espírito, que é o Espírito de súplica, e confessemos a depravação da nossa natureza, e o erro dos nossos corações. Orando, peçamos que em vez de crermos que os nossos caminhos são limpos, conheçamos que eles são sujos, e que nos lamentemos por eles, e que aprendamos a vê-los como Deus os vê, como caminhos torcidos e caminhos errados em si mesmos, dos quais não temos de que gabar-nos, mas, que devem ser recordados com vergonha e confusão de rosto. Bem-aventurado é aquele que é libertado de qualquer regozijo em si mesmo. Feliz o homem que não vê nenhuma partícula de saúde na sua própria carne, e que sente que a lepra do pecado o tem coberto por fora e por dentro, da cabeça aos pés.

E, irmãos, se chegarmos a tão profunda humilhação de espírito, a seguinte palavra é esta: vamos juntos à grande salvação que Deus há provido na pessoa de Cristo Jesus. Vamos, unindo mão com mão, santo e pecador, todos os pecadores conscientemente agora, fiquemos de pé e vejamos onde o pecado traspassou o corpo do bendito Substituto com aquelas feridas sangrentas. Leiamos as linhas de dor escritas sobre esse bendito rosto; contemplemos a profundidade da Sua alma cheia com um oceano de angústia, arrojada a uma tempestade de sofrimento; creiamos que sofreu em nosso lugar, e assim ponhamos o nosso pecado e a nossa pecaminosidade sobre Ele. Jesus aceita um pecador, inclusive a um pobre pecador; ainda que durante estes vinte anos tenho conhecido o Teu nome, mesmo assim venho a Ti como um pecador, eu, o principal dos pecadores.

Ah, irmãos e irmãs, nunca estamos mais seguros, estou certo, nunca mais saudáveis, nunca em melhor estado de que quando estamos prostrados completamente no chão diante da cruz. Quando vos sentis completamente indignos, haveis acertado com a verdade. Quando pensais que estais fazendo algo e que sois ricos e florescentes, então sois pobres, e estais nus, e sois miseráveis; mas, quando sois conscientemente débeis e cheios de pecado, então sois ricos. Quando sois débeis, sois fortes; mas, oh Deus, salva-nos de permitir que os nossos caminhos pareçam limpos na nossa própria opinião, que pesemos os nossos espíritos com a ajuda do Teu Espírito, e nos condenemos a nós mesmos para que não sejamos condenados pelo Senhor.

Que o Senhor vos abençoe ricamente, e livremente, por causa de Seu nome. Ámen.

Porção da Escritura lida antes do sermão: Salmo 51.

Nota:


(1) É uma citação tirada do Livro I do Paraíso Perdido, de John Milton, que Spurgeon citava com frequência. “Mamon” ou “Mammon”: demónio aramaico da avareza, riquezas e iniquidades. Foi ele quem ensinou os homens a cavar a terra à procura de tesouros ocultos, no dizer de Milton. Palavra aramaica que significa “riqueza.” Cristo adverte-nos que não podemos servir a Deus e a Mamon. (Mt 6:24): “Ninguém pode servir a dois senhores; porque, ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamon” Vide também Evangelho de Lucas 16:13.

Nota e Tradução de Carlos António da Rocha

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