… Mas o melhor de tudo é crer em Cristo! Luís Vaz de Camões (c. 1524 — 1580)

quarta-feira, 3 de maio de 2017

SOBRE A ENCARNAÇÃO DO VERBO



ATANÁSIO DE ALEXANDRIA
 Sobre a encarnação do verbo

As conveniências da encarnação

Esta grande obra realmente convinha sob todos os aspectos à bondade de Deus. Se um rei construiu uma casa ou uma vila, e esta, por negligência dos moradores vem a ser assaltada por ladrões, ele não a abandona; defende-a e protege-a como coisa própria, considerando, não o descaso dos locatários, mas o que lhe convém a si. Com maior razão, o Verbo divino do boníssimo Pai, vendo o género humano, sua criatura, desandar para a corrupção, não o abandonou; mas, pela oferta do Seu próprio corpo, extinguiu a morte que se associara aos homens, pelo Seu ensinamento corrigiu as negligências deles, pelo Seu poder restaurou a raça humana. Disto podemos persuadir-nos consultando os teólogos enviados por Deus e lendo os seus escritos, onde se tem que: "o amor de Cristo nos impele a este pensamento, o de que se um só morreu por todos, todos morreram; ora, ele morreu por todos, a fim de que não vivêssemos mais para nós, mas para aquele que por nós morreu e ressuscitou, nosso Senhor Jesus Cristo" (2Co 5,14-15). Lemos ainda: "nós vemos aquele que foi posto um pouco abaixo dos anjos, Jesus, coroado de glória e honra por causa dos sofrimentos da sua morte, a fim de que assim, pela graça de Deus, sua morte aproveite para todos os homens" (Hb 2:9) . A seguir, a Escritura indica por que nenhum outro, senão o Verbo de Deus, se devia encarnar: "convinha que aquele, para quem tudo é e por quem tudo é, desejando levar um grande número de filhos à glória, aperfeiçoasse pelo sofrimento o autor da salvação deles" (Hb 2:10). Por aí se indica não caber a outro, mas ao Verbo de Deus, que tinha feito no princípio os homens, reerguê-los da corrupção que os atingira. Se o Verbo assumiu um corpo, foi para oferecê-lo em sacrifício em prol dos corpos semelhantes ao Seu - o que também ensinam as Escrituras: "como os filhos participam da carne e do sangue, ele participou dessas mesmas coisas, a fim de destruir por sua morte o demónio, que tinha o império da morte." (Hb 2:14) Pois, pelo sacrifício do Seu corpo, Ele acabou com a lei que pesava sobre nós, renovou para nós o princípio da vida, dando-nos a esperança da ressurreição. Antes, foi por causa dos homens que a morte dominou sobre os homens; agora, pela encarnação do Verbo de Deus ela foi destruída, pois ressurgiu a vida, como diz o Apóstolo, portador de Cristo: "por um homem veio a morte, e por um homem a ressurreição dos mortos; da mesma forma que todos morrem em Adão, em Cristo todos serão vivificados" (1Co 15:21-22). Já não morremos mais como condenados, mas como os que irão despertar; aguardamos a ressurreição universal, que a seu tempo nos mostrará o Senhor Deus, Aquele que a criou e no-la concede. Eis a primeira razão da Encarnação do Salvador.

A RECRIAÇÃO DO HOMEM

Dado que os homens se tinham pervertido na irracionalidade e que a impostura dos falsos deuses propagava por toda parte a sua sombra, eclipsando o conhecimento do verdadeiro Deus, que haveria de fazer o Senhor? Guardar silêncio frente à situação e deixar os homens iludidos, ignorando o seu Deus? Mas então para que houvera criado o homem à Sua imagem? Ocorria simplesmente tê-lo criado sem razão; ou, do contrário, não o deixar viver a vida dos irracionais. Para que lhes houvera também comunicado, desde o início, a noção de Deus, se agora não se mostravam dignos de a receber? Melhor fora não a ter conferido no princípio. Pois que glória advém para o Criador, se os homens, as Suas criaturas, não O adoram e até pensam ser feitos por algum outro? Tê-los-ia criado para outros?

Um rei, mesmo humano, não permite que as suas cidades se entreguem a estranhos e se submetam a eles. Adverte os súbditos, envia-lhes mensageiros e, se necessário, vai em pessoa tentar comovê-los: unicamente para evitar que sirvam a senhor alheio e se inutilize a sua obra. Com mais razão, Deus não se apiedaria da criatura a fim de evitar que errasse longe de Si e fosse servir a fantasmas inexistentes? Tanto mais que tal erro seria causa de ruína para o ser que um dia participou da imagem de Deus!

Que haveria pois de fazer o Senhor, senão renovar o que era nos homens a divina imagem, a fim de por ela chegarem ao Seu conhecimento? Mas como se realizaria isto de outro modo que não pela presença da própria Imagem de Deus, nosso Salvador Jesus Cristo?

Sim, a coisa não seria realizável jamais por homens, pois também foram criados segundo a imagem; nem por anjos, que não são em si mesmos imagens. Veio, pois, o próprio Verbo de Deus, Imagem do Pai, a fim de recriar o homem segundo a divina imagem; e se esta obra não se podia fazer sem destruição, sem a corrupção da morte, convinha que Ele assumisse um corpo mortal, para nele destruir a morte e renovar os homens segundo a divina imagem. Com vistas a tal obra nenhum outro se credenciava mais que a própria imagem do Pai.

Se aos poucos se apagou uma efígie impressa na madeira, pelo acúmulo da pátina exterior, pode acontecer que a sua renovação só se torne possível, ali no mesmo material, pela presença do modelo, cujos traços se desfiguraram. Não se irá recusar o material onde a figura fora antes impressa, mas procurar-se-á compor nova imagem. Da mesma forma, o Filho santíssimo do Pai celeste, sendo a imagem do Pai, veio até à nossa região, visando renovar o homem criado segundo o Seu modelo, visando remir os pecados daquele que estava perdido, a fim de reencontrá-lo; conforme as palavras da Escritura: “Eu vim para encontrar e salvar o que estava perdido" (Lc 19:10). Assim, dirá também Ele aos judeus: "se alguém não nascer de novo, não poderá ver o reino de Deus" (Jo 3:3), aludindo, não a um renascimento a partir da mulher, como pensaram os judeus, mas ao renascimento que é a recriação da alma segundo a imagem divina.

Um bom mestre interessa-se pelos alunos, procura descer, com ensinamentos mais simples, aos que não entendem as lições mais difíceis. Assim também faz o Verbo de Deus, conforme Paulo: "já que o mundo, com sua sabedoria, não chegou a conhecer a Deus na sabedoria divina, aprouve a Deus salvar os que crêem pela loucura de sua mensagem" (1Co 1:21). Estando os homens desviados da contemplação divina e mergulhados em profundo abismo, com os olhos voltados para baixo, a procurarem Deus na criatura e nas coisas sensíveis, fabricando para si mesmos deuses, de homens mortais e de demónios, eis que o Verbo divino, “filantropo” e salvador, assume um corpo e vem viver como homem entre os homens, atrai a Si a percepção dos sentidos - para que pudessem conhecer a verdade e chegar ao Pai os mesmos que situavam a Deus entre os seres corpóreos. Sendo homens e tudo pensando humanamente, eis que eles agora, onde quer que se deixassem levar pela percepção sensorial, encontravam o ensinamento da verdade. Na sua fascinação pelas coisas criadas, viam agora que elas confessavam o Cristo Senhor. Na sua admiração pelos homens - que os levava a deificá-los - viam agora as obras do Salvador e percebiam que só Ele, entre os humanos, é Filho de Deus, não havendo em parte alguma obras comparáveis às do Verbo divino. Tinham sido seduzidos pelos demónios, eis que agora os viam expulsos pelo Senhor; e também por isto reconheciam-No como a única Palavra divina, confessando não serem deuses os demónios. Tinham sido obcecados pelo pensamento nos mortos, a ponto de renderem culto aos heróis, divinizados pelos poetas; eis porém que agora viam a ressurreição do Salvador e reconheciam a precedente ilusão, passando a atestar que o único verdadeiro Senhor é o Verbo de Deus, dominador da morte.

Foi para a obtenção desse resultado que Ele apareceu como homem, e morreu, e ressuscitou. Através das Suas obras fez empalidecerem as obras de quaisquer outros homens, podendo assim todos atrair ao Seu verdadeiro Pai, consoante a palavra: "Eu vim salvar e encontrar o que estava perdido". (Lc 19:10)

Uma vez que o espírito humano caíra no sensível, o Verbo abaixou-Se ao ponto de Se tornar visível corporalmente para chamar a Si os homens, atrair para Si os sentidos deles: viam-No humano, mas autor de obras superiores às humanas, persuadiam-se de que era o próprio Deus, o Verbo e a Sabedoria do verdadeiro Deus. Confira-se o que diz Paulo: "enraizados e fundados na caridade, possais compreender, com todos os santos, qual a largura, o comprimento, a altura e a profundidade; conhecer enfim a caridade de Cristo, que ultrapassa todo conhecimento; a fim de vos tornardes cheios da plenitude de Deus" (Ef 3: 17-19). O Verbo manifesta-Se em toda parte, em cima e em baixo, na profundidade e na extensão, na altitude da Criação e na humildade da Encarnação, na profundeza dos limbos, na largura do mundo: tudo está cheio do conhecimento de Deus. E por isto mesmo Ele não ofereceu, desde o primeiro momento do Seu advento, o Seu sacrifício por nós, entregando o corpo à morte e ressuscitando-O; assim se teria tornado logo invisível! Mostrou-Se visível, permaneceu longo tempo corporalmente, realizando obras e sinais que O fizessem conhecido não só como um homem mas como o Verbo de Deus. Sob um e outro aspecto mostrava a Sua filantropia, na Encarnação: fazia desaparecer a morte e renovava-nos, revelando ao mesmo tempo, pelas mesmas obras, a Sua invisibilidade, levando-nos ao reconhecimento de que é o Verbo do Pai, o chefe e rei do Universo.



Atanásio, Bispo de Alexandria (Alexandria, ca. 295 — Alexandria, 2 de maio de 373)


Fonte: GOMES, C. Folch. Antologia dos Santos Padres. Ed. Paulinas. São Paulo, 1979

Sem comentários: