Francis Schaeffer
A Reforma e o Homem
Conhecemos,
pois, algo deslumbrante a respeito do homem. Entre outras coisas, conhecemos a
sua origem e quem ele é – criado à imagem de Deus. O homem é maravilhoso não
apenas quando é “nascido de novo” como um cristão, é também maravilhoso como
Deus o fez, à Sua própria imagem. Tem o
homem valor e dignidade em função daquilo que foi originalmente, antes da
Queda.
Estava, há
pouco, fazendo uma série de preleções em Santa Bárbara, quando me foi
apresentado um rapaz viciado em entorpecentes. Era um jovem de semblante
delicado e expressivo, cabelos longos e encaracolados, os pés calçados com
sandálias, e trajava calça rancheira. Assistiu a uma das preleções e confessou:
“Isto é completa novidade para mim; nunca ouvi coisa alguma igual a isto.”
Voltou na tarde seguinte e eu o saudei. Olhou-me firmemente nos olhos e disse:
“O senhor me cumprimentou de maneira tocante. Por que me tratou assim?”
Respondi-lhe: “É porque eu sei quem você é – sem que você foi criado à imagem
de Deus.”. Em seguida tivemos uma demorada e notável conversa. Não podemos
tratar as pessoas como seres humanos, não podemos vê-las no alto nível da
verdadeira humanidade, a menos que conheçamos realmente a sua origem – quem
são. Deus diz ao homem quem ele é. Deus declara-nos que Ele criou o homem à Sua
própria imagem. Portanto, o ser humano é algo maravilhoso.
Deus,
entretanto, diz-nos algo mais a respeito do homem – fala-nos acerca da Queda.
Isto introduz o outro elemento que precisamos conhecer a fim de entendermos o
ser humano. Por que é ele, a um tempo, criatura tão maravilhosa e tão
degradada? Quem é o homem? Quem sou eu? Por que pode o homem realizar estas
coisas que o fazem único, no entanto, porque é ele tão horrível? Por quê?
Diz a
Bíblia que você é maravilhoso porque é criado à imagem de Deus e degradado
porque, em determinado ponto espácio-temporal na história, o ser humano caiu. O
homem da Reforma sabia que a criatura marcha rumo ao Inferno em razão da
revolta contra Deus. Todavia o homem da Reforma e aqueles que após a Reforma
forjaram a cultura do Norte Europeu sabiam que, enquanto o homem é moralmente
culpado diante do Deus que existe, ele não é o nada. O homem moderno tende a
julgar-se ser nada. Aqueles, entretanto, sabiam que eram exatamente o oposto do
nada porque conheciam o sentido de serem feitos à imagem de Deus. Embora
decaídos, e, à parte da solução não-humanista de Cristo e da Sua morte
substituinte, iriam para o Inferno, isto não significava, contudo que eram
nada. Quando a Palavra de Deus, a Bíblia, veio a ser ouvida, a Reforma teve
resultados tremendos, tanto nas pessoas individualmente, que se tornavam
genuínos cristãos, como na cultura em geral.
O que a
Reforma nos diz, pois, é que Deus falou nas Escrituras tanto acerca do “andar
de cima” como do “andar de baixo.” Falou a verdadeira revelação acerca de Si
mesmo – as coisas celestiais – e falou a verdadeira revelação a respeito da
própria natureza – o cosmos e o homem. Portanto, tinham os Reformadores uma
real unidade de conhecimento. Eles simplesmente não tinham o problema
renascentista de graça e natureza! Obtinham real unidade, não que fossem mais
sagazes, mas porque alcançavam uma unidade cuja base se achava no que Deus
revelara em ambas as áreas.
A Reforma
teve não poucos resultados de tremendo alcance e tornou possível a cultura que
tantos dentre nós admiramos afetuosamente – ainda que a nossa geração a esteja
agora lançando fora. Confronta-nos a Reforma um Adão que era, usando a
terminologia característica da forma de pensamento do século vinte, um homem
não-programado – não arranjado como um cartão perfurado de um sistema de
computação. Uma característica que marca o homem do século vinte é que ele não
pode visualizar isto, uma vez que é de todo infiltrado por um conceito de
determinismo. A perspectiva bíblica, entretanto, é clara – o homem não pode ser
explicado como totalmente determinado e condicionado – posição que forjou o
conceito da dignidade do homem. Há pessoas que buscam hoje apegar-se à
dignidade do homem, entretanto não têm base conveniente em que se fundamentar
pois que perderam a verdade de que o homem foi feito à imagem de Deus. Ele era
um homem não programado, um homem revestido de significado numa história de
alto sentido, capaz de alterar a história.
Temos,
pois, no pensamento da Reforma um homem que é alguém. Vemo-lo, porém, envolvido
numa condição de revolta e a rebeldia é real – jamais uma “peça de teatro”. Uma
vez que ele é um ser não programado e que de facto se revolta, ele incide em
genuína culpabilidade moral. À vista disto, os Reformadores compreenderam algo
mais. Tiveram uma compreensão bíblica da obra de Cristo. Compreenderam que
Jesus morreu na cruz em função substitutiva e em ação propiciatória a fim de
salvar o homem da verdadeira culpa que sobre ele pesa. Necessitamos reconhecer
que, no instante em que nos pomos a alterar a noção bíblica da verdadeira culpa
moral, seja falsificação psicológica, seja a falsificação teológica ou seja de
qualquer outra forma, nosso conceito da obra de Jesus não mais será bíblico.
Cristo morreu pelo homem que tinha uma culpa moral verdadeira por ele próprio
ter feito essa real e verdadeira escolha.
Francis
Schaeffer In “A morte da razão.”
Título do original em inglês: “Escape from reason”.
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