Abraham
Kuyper
O
pietista e o perfecionista
A santificação é uma obra de Deus
cheia de graça, mediante a qual, de uma maneira sobrenatural, Ele gradualmente
despoja dos regenerados as inclinações e as disposições do pecado e os veste
com santidade.
Aqui achamo-nos com uma séria objeção
que merece a nossa cuidadosa atenção. Para o observador superficial, a experiência
espiritual dos filhos de Deus parece diametralmente oposta ao seu professado
dom de santificação. Alguém diz: “Pode ser que por mais de dez anos tenha sido
o sujeito de uma operação divina mediante a qual os meus desejos e inclinações
tenham sido despojadas do pecado e vestidos com santidade? Se isto é o
Evangelho, então não pertenço aos redimidos do Senhor; pois em mim mesmo apenas
percebo algum progresso; só sei que o meu primeiro amor se tem esfriado e que a
corrupção interna é espantosa. Alguns sonham com o progresso, mas em mim mesmo
apenas descubro algo, a não ser recaídas. Não há ganho, mas dano tal é o triste
resultado da conta. A minha única esperança é Emanuel, o meu Fiador.”
Embora a experiência de um coração
quebrantado desabafe a sua dor desta maneira, outros exortam-nos a não
estimularmos o orgulho espiritual. Dizem: “Não deveríamos fomentar o orgulho
espiritual nos filhos de Deus, pois por natureza já estão inclinados para ele.
O que conduz mais ao orgulho espiritual que a presunção de uma santidade que
sempre está avançando? Não é a santidade o lucro mais alto e glorioso? Não
oramos com o firme propósito de sermos feitos participantes da Sua santidade? E
você imagina que estas almas que já foram convertidos há alguns anos, já devem
ter alcançado um grau considerável desta divina perfeição? Você daria licença
aos Cristãos com mais anos (de conversão) de se sentirem por cima dos seus
irmãos mais jovens? A santidade quer ser notada; portanto incite-os a fazer um
esclarecimento das suas boas obras. O que é isto senão cultivar um espírito de
Farisaísmo?”
Não podemos descansar até que esta
objeção da consciência sensível seja inteiramente removida. Não é que possamos
escapar de todos os perigos do Farisaísmo. Isto silenciaria toda a exortação
para a vida santa. A luz sem sombras é impossível; as sombras desaparecem só na
escuridão absoluta. Nos dias dos antigos Fariseus, Jerusalém, comparada com
Roma e Atenas, era uma cidade temerosa de Deus. O Farisaísmo nunca esteve mais
vivo que nos dias de Jesus. E a história mostra que o perigo do Farisaísmo
sempre foi menor no Romanismo e maior nas Igrejas Reformadas; e entre as
últimas, é mais forte onde o nome de Deus é mais exaltado. A santidade é
impossível sem a sombra do Farisaísmo. Quanto mais brilhante for a luz e glória
da primeira, mais escura será a sombra da segunda. Para escapar completamente
do Farisaísmo deve-se descer aos lugares mais baixos da sociedade, onde nada
refreia as paixões dos homens.
E isto é natural. O Farisaísmo não é
uma corrupção comum, mas o abolorecimento
do fruto mais nobre que a terra haja visto – ou seja, a santidade. Os círculos
que são livres do Farisaísmo também carecem do bem mais alto; então, como
poderia decair esse bem aí? E os círculos aonde este perigo é maior são os
mesmos círculos aonde o bem mais alto é conhecido e exaltado.
Mas,
além desta escaramuça sem propósito com o fantasma do Farisaísmo, o escrúpulo
mencionado acima tem a nossa mais cordial simpatia. Se fosse certo que a
santificação tem impressionado a alma como para incitá-la ao orgulho, ela não
poderia ser o artigo real; pois de toda a iniquidade o orgulho é o mais
abominável. É a doce e sincera súplica de David: “Também da soberba guarda o
teu servo, para que se não assenhoreie de mim; então, serei sincero e ficarei
limpo de grande transgressão.” A conceção fundamental da graça está tão
intimamente ligada com a ideia de tornar-se como um menino pequeno, e o seu dom
encontra-se tão fortemente condicionado a uma posição humilde, que o dom que
alente o orgulho espiritual não pode ser um dom da graça.
Mas temos confiança de que a doutrina da santificação, como se apresentam nestas páginas e de acordo com a Sagrada Escritura, não tem nada em comum com esta caricatura. Dado que no Paraíso o pecado brotou da primeira incitação satânica feita ao orgulho, e que toda a impiedade espiritual e carnal ainda cresce a partir dessa raiz venenosa, é evidente que o primeiro efeito da santa disposição implantada deve ser a humilhação deste orgulho, o derrubamento desta fortaleza; e ao mesmo tempo a revitalização de um espírito humilde, manso, similar ao de uma criança.
A ideia de que a santificação consiste em sugestionar o santo com o horror de pecados crassos e externos, sem o prévio derrubamento da auto presunção, não é escritural e as Igrejas Reformadas opõem-se-lhe. A Escritura ensina que o Espírito Santo nunca aplica a santificação ao crente sem atacar todos seus pecados de uma vez. “Começam a viver firmemente, não só segundo alguns, mas segundo todos os mandamentos de Deus.” (Catecismo do Heidelberg)
De todos os pecados o orgulho é o mais
digno de maldição, pois em todas as suas manifestações se acha a transgressão
ao primeiro mandamento. Portanto, a santificação real e divinamente operada é
inconcebível sem, primeiro que tudo, destruir o orgulho, e criar uma disposição
humilde, quieta, que não confia em si mesmo e é similar à de uma criança.
E isto resolve toda a dificuldade.
Aquele que teme que a santificação conduzirá ao orgulho e a auto presunção
confunde a sua falsificação humana com a obra real divinamente realizada. Por
isso, com esta objeção, ele deve atacar o hipócrita, e não a nós.
Entretanto, uma interpretação errónea
do que a Escritura chama “carne” poderia introduzir essa ideia. Se “carne”
significa as inclinações sensuais e os apetites do corpo, e se a santificação
consiste quase completamente na oposição a estes pecados, a santificação assim
entendida poderia estar acompanhada por um incremento de orgulho espiritual.
Mas, pela “carne” pecaminosa a Escritura denota o homem inteiro, corpo e alma,
incluindo os pecados que são espirituais assim como os sensuais; portanto a
santificação dirige-se imediatamente à mudança das inclinações espirituais e
sensuais do homem, e primeiro que tudo, à sua tendência para o orgulho.
No artigo anterior dissemos que a
santificação incluía uma descida assim como uma ascensão. Quando o Senhor nos
levanta, também descendemos. Não há um levantamento do homem novo sem uma morte
do velho; e tudo o intento para ensinar santificação sem fazer plena justiça de
ambas as realidades não é das Escrituras.
Portanto, opomo-nos aos esforços do
Pietista e do Perfecionista, os quais dizem que não têm mais que fazer com o
velho homem, que nada fica neles para ser mortificado, e que tudo o que se
requer deles é apressar o crescimento do novo homem. E igualmente nos opomos ao
oposto, que admite a morte do velho homem, mas nega o surgimento do novo, e que
a alma recebe tudo do que carece.
Toda a conversão verdadeira e duradoura,
de acordo com o nosso Catecismo, deve manifestar em si mesmo estas duas partes,
ou seja, uma mortificação do velho homem, e um surgimento do novo, em iguais
proporções.
E ao responder à pergunta, “O que é a
mortificação do velho homem?” o Catecismo de Heidelberg responde, é “Uma
diminuição gradual,” pois diz: “Em que sintamos pesar, de todo o coração, de
haver ofendido a Deus com os nossos pecados, aborrecendo-os e evitando-os cada
vez mais.” Enquanto que a vivificação do novo homens é expressa igualmente de
modo positivo: “É alegrar-se de todo coração em Deus por Cristo, e desejar
viver conforme à vontade de Deus, assim como exercitar-se em toda boa obra” –
uma declaração que é repetida na resposta à pergunta 115, que descreve desta
forma a mortificação: “Para que durante toda a nossa vida conheçamos mais quão
grande é a inclinação da nossa natureza para pecar”; e a que fala da
vivificação do novo homem como “tornar-se mais e mais conforme à imagem de
Deus.”
Portanto, há duas partes, ou melhor,
dois aspectos da mesma coisa: (1) o derrubamento do velho homem; (2) uma
crescente conformidade à imagem divina.
Mortificar e vivificar, matar e fazer
viver, cada vez mais – esta é, segundo a Confissão dos pais, a obra do Deus Trino
na santificação.
O pecado não é simplesmente a “falta
de justiça.” Logo que a justiça, a bondade e a sabedoria desaparecem, a
injustiça, o mal e a necedade tomam o seu lugar. Posto que Deus implantou no
homem as primeiras três designadas, assim o pecado não meramente as rouba, mas
coloca as últimas três em seu lugar. O pecado não apenas matou em Adão o homem
de Deus, mas vivificou nele o homem de pecado; portanto, a santificação deve
efetuar em nós exatamente o oposto. Deve mortificar aquilo que o pecado
vivificou, e vivificar o que o pecado mortificou.
Se esta regra for totalmente
entendida, não pode haver confusão. A nossa ideia de santificação
necessariamente corresponde com a nossa ideia de pecado. Aqueles que consideram
o pecado como um mero veneno, e negam a perda da justiça original, são
Pietistas e ignoram a mortificação do velho homem, e sempre estão ocupados
adornando o novo. E os que dizem que o pecado é a perda da justiça original, e
negam os seus efeitos positivos e malvados, estão inclinados ao Antinomianismo,
e reduzem a santificação a uma emancipação imaginária do velho homem,
rechaçando o surgimento do novo.
É obvio, isto toca à doutrina do homem
velho e do novo. A representação de que a alma do convertido é uma arena onde
os dois estão sumidos numa luta corpo a corpo é incorreta, e não tem um só
versículo satisfatório para o seu apoio. Rechaçamos as duas representações
seguintes: a do Antinominiano, que diz: “O ego que crê é o novo homem em Cristo
Jesus; não sou responsável pelo velho homem, o ego pessoal e pecaminoso; pode
pecar tanto como lhe agrade”; e a representação do Pietista, que se considera a
ele ainda como o velho homem, parcialmente renovado, e que está sempre ocupado,
remodelando-o. Estes dois não pertencem à Igreja de Cristo.
A Escritura ensina, não que o velho
homem é santificado ao ser transformado no novo, mas que o velho homem deve ser
mortificado até que não fique nada dele. Tampouco ensina que na regeneração
somente uma pequena parte do velho homem é renovada – que o que fica tem de ser
remendado gradualmente – mas um completo homem novo é implantado.
Isto é da maior importância para o
correto entendimento destas coisas santas. O pecado produziu em nós um velho
homem, o corpo do pecado, não meramente uma parte, mas um inteiro, com tudo o
que lhe pertence, corpo e alma. Portanto, aquele homem velho deve morrer, e o
Pietista com todas as suas obras de piedade nunca pode vivificar nem um só
músculo do seu corpo. É, totalmente, de nenhum proveito, e deve perecer sob a sua
justa condenação.
Igualmente e com muita graça, Deus
regenera em nós uma nova criatura, o qual também é um homem completo. Portanto,
não podemos tomar o novo homem como a restauração gradual do velho. Os dois não
têm nada em comum a não ser a base mútua da mesma personalidade. O novo não
brota do velho, mas suplanta-o. Estando só em forma germinal, pode ser
enterrado no recém gerado, mas brotará e então a obra de Deus aparece
gloriosamente. Deus é o seu Autor, Criador e Pai. Não é o velho homem, mas o
novo homem o que clama: “Abba, Pai!”
Entretanto, o nosso ego é associado ao
agonizante homem velho e ao ascendente homem novo. O ego de uma pessoa não
escolhida identifica-se com o velho homem; eles são o mesmo. Mas na consumação
da glória celestial, o ego dos filhos de Deus é identificado com o novo homem.
Mas durante os dias da nossa vida
terrestre não é assim. O novo homem de um não regenerado, mas que é uma pessoa
escolhida, existe além dele, mas escondido em Cristo. Ainda está casado com o
seu velho homem. Mas na regeneração e conversão Deus dissolve este nefasto
matrimónio, e Ele une o seu ego ao novo homem. Não obstante, apesar de tudo
isso, ainda não se livra do velho homem. Perante Deus e perante a Lei, do ponto
de vista da eternidade, ele pode ser considerado assim, mas não verdadeira e
realmente.
E esta é a causa do conflito por
dentro e por fora. Todas as ataduras de maldade não são dissolvidas de uma vez,
e todos os laços divinos não são unidos de uma vez. Por meio da união mística
com Cristo o filho de Deus realmente possui o homem novo total, ainda que ele
morresse amanhã; mas não tem ainda o desfrute disso. Ele acha-se como estando
unido em matrimónio ao novo homem diante de Deus, por meio de um processo
doloroso; não obstante, tem de morrer o velho homem, e pela graça divina o novo
homem tem de ser levantado nele. E esta é a sua santificação: a morte do velho
e o levantamento do novo, pelo qual Deus cresce e nós diminuímos. Bendita
manifestação da fé!
Notas:
aBíbliaparatodos http://www.abibliaparatodos.pt/Biblia.aspx
Pietista, adjetivo de 2 géneros,
pertencente ou relativo ao pietismo.
Pietismo, nome masculino. RELIGIÃO
movimento religioso, de intensificação da fé cristã, surgido na Igreja luterana
alemã no século XVII, como reação contra o dogmatismo das Igrejas protestantes
e defendendo a primazia do sentimento e do misticismo na experiência religiosa.
(Do francês piétisme, «idem»).
Antinomismo, nome masculino. RELIGIÃO
teoria a respeito do valor da lei moral para o cristão, segundo a qual o
cristão como crente está acima da lei e como pecador está-lhe subordinado. (De
antinomia+-ismo).
Fonte: http://www.iglesiareformada.com/Kuyper_Pietista_Perfeccionista.html
Tradução de Carlos António da Rocha
Esta tradução é de
livre utilização, desde que a sua ortografia seja respeitada na íntegra porque
já está traduzida no Português do Novo Acordo Ortográfico e que não seja nunca
publicada nem utilizada para fins comerciais; seja utilizada exclusivamente
para uso e desfruto pessoal.
Tradução de Carlos António da Rocha
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