… Mas o melhor de tudo é crer em Cristo! Luís Vaz de Camões (c. 1524 — 1580)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Sermão n.º 212



C. H. Spurgeon

Sermão n.º 212
O novo coração” (The new heart), foi pregado na manhã do domingo, 5 de setembro de 1858, por Charles Haddon Spurgeon, no Music Hall, Royal Surrey Gardens, Londres.

“E vos darei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo, e tirarei o coração de pedra da vossa carne, e vos darei um coração de carne.” (Ez 36:26, ARC, Pt)

Eis aqui um portento do amor divino. Quando Deus faz as Suas criaturas, o que faz é bom, em grande maneira. Se essas criaturas caírem da condição em que Ele as criou, o Senhor permite, como regra, que suportem a pena correspondente à sua transgressão, deixando que elas permaneçam no lugar no qual caíram. Mas Deus faz aqui uma exceção. O homem, o homem caído, criado puro e santo pelo seu Criador, rebelou-se voluntária e depravadamente contra o Altíssimo, e perdeu o seu primeiro estado; mas, eis aqui, ele experimenta uma nova criação por meio do poder do Espírito Santo de Deus. Contemplem este prodígio e maravilhem-se! O que é o homem, comparado com um anjo? Acaso, não é um ser pequeno e insignificante? “E aos anjos que não guardaram a sua dignidade, mas que abandonaram a sua própria morada, guardou-os sob escuridão, nas prisões eternas, para o juízo do grande dia.” Deus não teve misericórdia deles; fê-los puros e santos, e deviam permanecer assim, mas como se rebelaram voluntariamente, Ele abateu-os dos seus resplandecentes assentos para sempre; e sem lhes fazer nenhuma promessa de misericórdia, encadeou-os fortemente com os grilhões do destino, para que sofram no tormento eterno.



Mas, assombrem-se, oh céus! O Deus que destruiu os anjos inclina-Se desde o Seu altíssimo trono na glória, para falar ao homem, Sua criatura, e diz-lhe isto: “Agora, tu tens caído da Minha graça igualmente como os anjos; tens-te desencaminhado e gravemente, e tens-te apartado dos Meus caminhos; mas, eis aqui, Eu vou emendar o dano feito pela tua própria mão. Não o faço por ti, mas sim por amor do Meu nome. Havendo-te criado uma vez, tu atraíste a ruína sobre ti mesmo, mas Eu vou-te criar outra vez. Porei as Minhas mãos na obra uma segunda vez; uma vez mais, darás umas voltas na roda do oleiro, e Eu farei de ti um vaso para honra, para fazer notórias as riquezas da Minha glória. Tirarei o teu coração de pedra, e te darei um coração de carne; dar-te-ei um coração novo, e porei um espírito novo dentro de ti.” Acaso não é um portento da soberania divina e da graça infinita, que os poderosos anjos fossem arremessados no fogo eterno, e que Deus fizesse um pacto com o homem, estabelecendo que o renovará e o restaurará?



E agora, meus queridos amigos, vou procurar mostrar hoje, em primeiro lugar, a necessidade da grandiosa promessa contida no meu texto, que Deus nos dará um coração novo e um novo espírito; e depois, esforçar-me-ei por mostrar a natureza da grandiosa obra que Deus faz na alma, quando cumpre esta promessa; e finalmente, farei uns quantos comentários pessoais para todos os meus ouvintes.



I. Em primeiro lugar, o meu trabalho consiste em procurar mostrar A NECESSIDADE DESTA GRANDIOSA PROMESSA. O Cristão que nasceu de novo e que foi iluminado, não necessita que lhe ensine isto; esta demonstração é pelo contrário para a convicção do ímpio, e para o abatimento do nosso orgulho carnal. Oh, que no dia de hoje, o Espírito cheio de graça nos ensine a nossa depravação, e que sejamos conduzidos em consequência a procurar o cumprimento desta misericórdia, que é verdadeira e abundantemente necessária, se vamos a ser salvos.



Vós notareis que, no meu texto, Deus não nos promete que melhorará a nossa natureza, ou que porá um remendo nos nossos quebrantados corações. Não, a promessa é que nos dará novos corações e espíritos retos. A natureza é muito depravada para ser remendada. Não se trata de uma casa que necessita de umas quantas reparações, de algumas telhas caídas do telhado, daqui ou dacolá, ou dum pedaço de gesso caído do reboco do teto. Não, a casa está completamente podre, e os próprios alicerces foram socavados. Não há só um troço de madeira que não esteja carcomido pelo caruncho, desde o mais alto teto até ao seu mais profundo alicerce. Toda a casa se encontra em mau estado, há podridão em toda a parte e está a ponto de desabar-se.



Deus não tenta repará-la. Ele não escora as paredes nem repinta a sua porta. Não a adorna, nem a embeleza, senão que decide que a velha casa deve ser arrasada, e que construirá uma casa nova. Está demasiado destruída, repito, para ser reparada. Se só requeresse de umas quantas reparações, poderiam fazer-se. Se, unicamente, uma ou duas rodas desse grandioso ente chamado “natureza humana” estivessem descompostas, então o seu Autor poderia compô-las. Poderia substituir os dentes quebrados da roda, ou substituir toda a roda, e a máquina ficaria como nova. Mas não, toda ela é irreparável. Não há uma só alavanca que não esteja rota; nenhum eixo que não esteja torcido; e nenhuma só roda que possa fazer mover as demais. Toda a cabeça está doente e todo o coração desfalecido. Da planta do pé até ao cocuruto da cabeça, por toda parte, encontram-se feridas, equimoses e chagas putrefactas. Portanto, o Senhor não tenta a reparação destes seres, senão que lhes diz: “Dar-vos-ei coração novo, e porei um espírito novo dentro de vós; e tirarei de vossa carne o coração de pedra. Não tentarei abrandá-lo. Deixarei que continue sendo tão duro como sempre foi, mas tirá-lo-ei, e dar-vos-ei um coração novo, e será um coração de carne.”



Agora, vou esforçar me para demonstrar que Deus é nisto reconhecido justo, e que há uma constrangedora necessidade de que assim o faça. Pois, em primeiro lugar, se vós considerardes o que tem sido a natureza humana, e o que é, não vos tomará muito tempo a concluir: “Ah, na verdade é um caso desenganado.”



Então, considerai por um momento quão depravada é a natureza humana, recordando quão mal tem tratado o seu Deus. William Huntingdon diz na sua autobiografia, que uma das sensações mais agudas de dor que sentiu depois de que foi revivido pela graça divina foi que: «sentiu muita “comiseração” por Deus.» Não creio ter encontrado uma descrição igual em nenhuma outra parte, mas é muito expressiva. Embora eu preferisse usar a palavra “empatia” para com Deus e dor pelo mau trato que tem recebido. Ah, meus amigos, há muitas pessoas que são esquecidas, que são desprezadas, que são pisoteadas pelos seus semelhantes, mas nunca houve um homem que fosse tão desprezado como o Deus eterno o tem sido. Muitos homens têm sido caluniados e insultados, mas nunca ninguém foi tão insultado como Deus o tem sido. Muitos têm sido tratados cruel e ingratamente, mas nunca ninguém foi tratado como o nosso Senhor tem sido tratado. Recordemos a nossa vida passada: quão ingratos temos sido com Ele! Como Ele nos deu a vida, a primeira expressão dos nossos lábios deveria ser uma palavra de louvor. E, enquanto estejamos aqui, é nosso dever cantar perpetuamente a Sua glória. Mas, em vez disso, desde o nosso nascimento temos falado falsidade, mentira e impiedade; e desde então temos vindo fazendo o mesmo. Nunca havemos reconhecido as Suas misericórdias levando ao Seu peito gratidão e agradecimento. Os Seus benefícios ficam no esquecimento, sem que recebam qualquer aleluia de reconhecimento por causa da nossa desídia para com o Altíssimo, que nos persuade que se tem esquecido inteiramente de nós, por isso também procuramos olvidá-lo a Ele. Tão poucas vezes pensamos nEle, que se poderia imaginar que não nos deu nunca um motivo para pensar nEle. Addison disse:



“Quando todas as Tuas misericórdias, ó meu Deus,

São inspecionadas pela minha alma ressuscitada,

Transportado nessa visão, fico absorto

No assombro, no amor, e no louvor.”



Mas, creio que se olharmos para o nosso passado com o olho da penitência, ficaremos sumidos no assombro, na vergonha, e na dor, pois o nosso clamor será: “Como pude ter maltratado a um amigo tão bom? Tenho tido um benfeitor cheio de graça, e tenho sido muito mal-agradecido com Ele. Tenho tido um Pai muito devoto, mas nunca lhe dei um abraço. Como é possível que não Lhe tenha dado um beijo em sinal da minha afetuosa gratidão? Como é possível que não tenha estudado a forma de Lhe fazer saber que estava consciente da Sua bondade, e que sentia no meu peito um agradecido reconhecimento pelo Seu amor?”



Pior ainda, não somente temos sido esquecidos quanto a Ele, senão que nos temos rebelado contra Ele. Temos arremetido contra o Altíssimo. Odiamos qualquer coisa relacionada com Deus. Havemos desprezado o Seu povo. Chamamo-lo dissimulado, hipócrita e metodista. Temos menosprezamos o Seu dia de repouso. Ele separou-o para o nosso bem, e tomamos esse dia para o dedicar ao nosso próprio prazer e para as nossas próprias atividades, em vez de o consagrar a Ele. Ele deu-nos um Livro em sinal de amor, e quer que o leiamos, pois está cheio de amor por nós; mas, havemo-lo mantido permanentemente fechado, de tal forma que até as aranhas teceram as suas teias nas suas folhas. Ele abriu uma casa de oração e tem-nos ordenado que assistamos, pois Ele encontrar-Se-ia ali connosco e falaria connosco desde o propiciatório. Mas frequentemente preferimos o teatro à casa de Deus, e preferimos escutar qualquer outro som à voz que nos fala desde o Céu.



Ah, meus amigos, repito que nunca houve um homem, inclusive entre os piores homens, que tenha sido tão maltratado por Seus companheiros, como Deus tem sido maltratado pelo homem, e entretanto, enquanto os homens O maltratam, Ele tem continuado a abençoá-los. Ele sopra no seu nariz o fôlego de vida, inclusivamente quando o homem O está maldizendo. Ele dá-lhe o Seu alimento, enquanto o homem gasta o vigor do seu corpo numa guerra contra o Altíssimo. E no próprio dia de guarda, quando quebranta o Seu mandamento e gasta o dia nas suas próprias lascívias, é Ele quem dá luz aos nossos olhos, ar aos nossos pulmões, e fortaleza aos nossos nervos e músculos. Ele tem-nos estado abençoado inclusivamente, quando vós o tendes estado maldizendo. Oh, é uma grande misericórdia que Ele seja Deus e não mude, pois pelo contrário, nós, filhos de Jacob, teríamos sido consumidos desde há muito tempo, e com toda justiça!



Podeis imaginar, se quiserdes, uma pobre criatura agonizando numa sarjeta. Eu espero que isto não ocorra no nosso país, mas tal coisa poderia ocorrer da mesma maneira como um homem que tendo sido rico, subitamente se tornou pobre, e todos os seus amigos o abandonaram. Ele pediu-lhes pão, mas ninguém o quis ajudar, até que por fim, sem nenhum farrapo que o cobrisse, o seu pobre corpo perdeu a sua vida numa sarjeta. Isto, acredito eu, é o cúmulo da insensibilidade humana para com os seus semelhantes; mas Jesus Cristo, o Filho de Deus, foi tratado pior do que isto. Teria sido mil vezes mais caridoso para Ele, se O tivessem deixado morrer abandonado numa sarjeta; mas isso teria sido muito bom para a natureza humana. Ele devia conhecer o pior, e por isso Deus permitiu que a natureza humana tomasse o Cristo e O cravasse no madeiro. Ele permitiu que a natureza humana estivesse frente a Ele e se burlasse da Sua sede e Lhe oferecesse vinagre, e O vituperasse e O escarnecesse no cúmulo das Suas agonias. Permitiu à natureza humana que O tornasse na sua zombaria e no seu desprezo, e que ficasse olhando com olhos lascivos e cruéis o Seu corpo desguarnecido e nu.



Oh, que vergonha para a humanidade! Nunca qualquer criatura pôde ter sido pior que o homem. As próprias bestas são melhores que o homem, pois o homem tem todos os piores atributos das bestas, mas carece dos seus melhores atributos. Tem toda a ferocidade do leão mas não tem a sua nobreza; tem a teimosia do asno, sem a sua paciência; tem toda a gula voraz do lobo, sem a sua sabedoria que o conduz a evitar a armadilha. É um abutre rapace, que nunca fica satisfeito. É deste modo, uma serpente com veneno de áspides sob a sua língua, mas que cospe o seu veneno tanto a curta como a larga distância. Ah, se pensarem na natureza humana, quanto aos seus atos para com Deus, dirão que é muito má para ser corrigida, e deve ser feita completamente nova.



Além disso, há outro aspeto no qual podemos ver a pecaminosidade da natureza humana: o seu orgulho. Essa é a pior característica do homem: que seja tão orgulhoso. Amados, o orgulho está entrelaçado em toda a trama e no urdimento da nossa natureza, e só nos poderemos desfazer dele, quando estivermos envoltos na nossa mortalha. É surpreendente que quando oramos e procuramos usar expressões de humildade, o orgulho nos traia. Muito recentemente, estando de joelhos, descobri-me usando expressões como esta: “Oh, Senhor, lamento-me diante de Ti por haver sido alguma vez um tão grande pecador como tenho sido. Oh, que me tenha rebelado e sublevado como o tenho feito.” Aqui há orgulho, pois, quem sou eu? Que havia de surpreendente nisso? Eu devia saber que era um pecador tão grande, que não era surpreendente que me desencaminhasse. O surpreendente é que não tenha sido pior, e nisso o crédito é de Deus, não meu. Assim quando procuramos ser humildes, podemos estar apressando-nos insensatamente para os braços do orgulho. Que coisa tão estranha é ver um ser depravado, pecador e culpado, que esteja orgulhoso de sua moralidade! E entretanto isso é algo que podemos ver a cada dia. O homem, quando é um inimigo de Deus, está orgulhoso da sua honestidade, ainda que esteja roubando a Deus; está orgulhoso da sua castidade, e entretanto, se conhecesse os seus próprios pensamentos, descobriria que estão cheios de lascívia e imundície; está orgulhoso do elogio dos seus semelhantes, quando ele mesmo sabe que tem o remorso da sua própria consciência e a repreensão do Deus Todo-Poderoso. Pensar que um homem possa ser orgulhoso quando não tem nenhum motivo para ser orgulhoso, é estranho e extravagante. Uma massa de barro, viva, animada, manchada e imunda, um inferno vivente, e contudo orgulhosa de si mesma. Eu, um filho depravado daquele que roubou no antigo horto do seu Senhor, e que se desencaminhou e que não quis obedecer; de um que trocou todas as suas possessões pelo suborno desprezível de uma maçã, e contudo, que esteja orgulhoso da minha linhagem! Eu, que vivo da caridade diária recebida de Deus, que esteja orgulhoso de minha riqueza, ainda que não tenha nem um centavo com o que me abençoar a mim mesmo, a menos que Deus decida dar-mo! Eu que vim nu a este mundo, e que devo sair dele nu! Eu, orgulhoso das minhas riquezas, que coisa tão estranha! Eu, um ignorante asno montês, um insensato que não sabe nada, que esteja orgulhoso dos meus conhecimentos! Oh, que coisa tão estranha, que um néscio chamado homem, se nomeie-se a si mesmo doutor, e se converta a si mesmo em mestre de todas as artes, quando não o é de nenhuma, e se torna mais néscio quando pensa que a sua sabedoria alcançou o fim. E, oh, o mais estranho de tudo, é que o homem que tem um coração enganoso, cheio de todo o tipo de concupiscências perversas, e de adultério, e de idolatria, e de luxúria, presuma ser um indivíduo de bom coração, e se orgulhe a contar, ao menos com bons pontos sobre ele, que merecem a veneração de seus semelhantes, se não é que merecem também alguma consideração do Altíssimo. Ah, a natureza humana, esta é, então, a tua própria condenação, porque és insensatamente orgulhosa, quando não tens por que ser orgulhosa. Escreve “Icabod” sobre ela. Transpassada é a glória da natureza humana para sempre. Que seja tirada, e que Deus nos dê algo novo, pois o velho não pode ser restaurado. A natureza humana é irremediavelmente insensata, decrépita e imunda.



Além disso, é muito certo que a natureza humana não pode ser melhorada, pois muitos o tentaram, mas sempre fracassaram. Quem trata de melhorar a natureza humana é como o que procura trocar a posição de uma veleta, girando-a para o este quando o vento sopra em direção oeste; basta que retire a sua mão, e a veleta retoma o seu lugar. Assim tenho visto a muitos que tratam de controlar a sua natureza: ele é um homem de mau carácter, e está procurando controlá-lo um pouco e consegue-o, mas volta a manifestar o mau carácter, e se não se alivia na ocasião, e se as faíscas não voam por todos lados, queimará os seus ossos por dentro, até pô-los incandescentes com o calor da malícia, e permanecerá dentro do seu coração um resíduo de cinzas de vingança. Conheci alguns homens, que procuram fazer-se religiosos, e ao tentá-lo, o que conseguem, unicamente, é criar uma monstruosidade, pois as suas pernas são desiguais, e caminham coxeando no serviço de Deus; são criaturas disformes e torpes, e quem quer que as olhe descobrirá logo as inconsistências da sua religião. Oh!, afirmamos que é em vão que esse homem procure aparentar ser branco, como é impossível que o etíope mude a sua pele para que seja branca, aplicando-lhe cosméticos, e em vão trataria o leopardo de mudar as suas manchas. Igualmente, é impossível que este homem imagine que pode ocultar a depravação da sua natureza por meio de alguns esforços religiosos.



Ah, eu procurei melhorar-me a mim mesmo durante muito tempo, sem obter bons resultados; quando comecei a tentá-lo, descobri que tinha dentro de mim um demónio, e depois, quando deixei de tentá-lo, tinha dez demónios. Em vez de me tornar melhor, tornei-me pior: já tinha o diabo da justiça própria, da confiança em mim mesmo, do orgulho, e muitos outros que vieram e me converteram no seu lar. Enquanto estava ocupado, varrendo a minha casa e arrumando-a, eis aqui que o diabo de que procurava desfazer-me e que se foi embora por uma curta temporada, voltou e trouxe consigo outros sete espíritos mais perversos que ele, e entraram e habitaram em mim. Ah, podem tentar reformar-se, queridos amigos, mas descobrirão que não poderão consegui-lo, e recordem, ainda que pudessem, não seria a obra que Deus requer. Ele não aceita a reforma. Ele quer uma regeneração. Ele quer um coração novo, e não um coração que só tenha tido uma pequena melhoria.



Mas, além disso, vós percebereis com facilidade que devemos receber um coração novo, quando considerardes quais são as ocupações e gozos da religião cristã. A natureza que se alimenta do lixo do pecado, e que devora a carniça da iniquidade, não pode ser a natureza que canta louvores a Deus e que se regozija no Seu santo nome. Acaso esperais que aquele corvo que se alimenta da comida mais repugnante, terá toda a boa índole da pomba, e que poderá brincar com a menina no seu aposento? Não, a menos que convertam o corvo em pomba, pois enquanto continue sendo um corvo, as suas velhas inclinações permanecerão nele e será incapaz de fazer algo acima da sua natureza de corvo. Viram o abutre empazinar-se com a carne mais podre até ficar farto, e, acaso esperam ver logo o abutre, pousado na ramagem, cantando os louvores de Deus com o seu torpe chiado e com o grasnido da sua garganta? E, acaso imaginam que o verão alimentando-se de grão limpo, como qualquer ave do galinheiro, a menos que o seu carácter e a sua disposição mudem inteiramente? Impossível. Podem imaginar que o leão se deite junto ao boi, ou que coma palha como o novilho, enquanto continue sendo um leão? Poderão vestir o leão com uma pele de ovelha, mas não o converterão em ovelha a menos que o despojem da sua natureza de leão. Podem tratar de tornar melhor o leão tanto como queiram. O próprio Van Amburgh, se tivesse conseguido melhorar os seus leões durante mil anos, não teria podido convertê-los em ovelhas. E poderão tratar de modificar o corvo ou o abutre tanto como queiram, mas não poderão convertê-los em pombas: deve haver uma mudança total de carácter. Perguntar-me-ão, então, é possível que um homem que cantou as canções lascivas do bêbado, e manchou o seu corpo com imundície, e maldisse a Deus, cante sentidos louvores ao Deus do Céu, de maneira igual à pessoa que amou os caminhos da pureza e da comunhão com Cristo? Respondo, não, nunca, a menos que a sua natureza seja cambiada inteiramente. Pois, se a sua natureza continua sendo o que é, não importa quanto tente modificá-la, não obterá nenhum resultado positivo. Enquanto que o seu coração seja o que é, nunca poderá gozar dos elevados deleites da natureza espiritual do filho de Deus. Portanto, amados, certamente deve implantar-se em nós uma nova natureza.


Vou a agregar algo mais, para concluir com este ponto. Deus aborrece a natureza depravada, e portanto, deve ser tirada, antes que possamos ser aceitos nEle. Deus não odeia menos o nosso pecado como odeia a nossa pecaminosidade. Não é o transbordamento da fonte, é o próprio poço. Não é a flecha arrojada pelo arco de nossa depravação; é o próprio braço que sustenta o arco do pecado, e o motivo que dispara a flecha contra Deus. O Senhor está irado não só contra os nossos atos manifestos, mas também contra a natureza que dita esses atos. Deus não é míope e não olha só à superfície: Ele olha a origem e a fonte. Ele diz: “Em vão será que procurem alcançar bons frutos se a árvore continua sendo má. Em vão será que procurem limpar a água, enquanto a própria fonte permaneça poluída.” Deus está irado com o coração do homem. Ele odeia a natureza depravada do homem, e tirá-la-á e limpá-la-á a fundo, antes de que admita o homem à comunhão com Ele, à doce comunhão do Paraíso. Há, portanto, uma necessidade de uma natureza nova, e devemos recebê-la, pois, pelo contrário, nunca poderemos ver o Seu rosto com aceitação.



II. E agora, terei a gozosa responsabilidade de lhes mostrar, em segundo lugar, A NATUREZA DESTA GRANDE MUDANÇA QUE O ESPÍRITO SANTO OBRA EM NÓS.



E dou início fazendo a observação que é uma obra divina de princípio a fim. Dar ao homem um coração novo e um novo espírito é obra de Deus, e unicamente de Deus. O arminianismo desaba-se quando chegamos a este ponto. Nada funciona aqui, exceto a velha verdade de que os homens chamam calvinismo. “A salvação é só de Jeová;” esta verdade suporta a prova das idades e não poderá ser afetada nunca, porque é a verdade imutável do Deus vivo. E, ao longo de todo o caminho da salvação temos de aprender esta verdade, mas especialmente quando nos encontramos aqui, neste ponto particular e indispensável da salvação: a implantação de um novo coração em nós. Essa deve ser a obra de Deus; o homem, talvez, possa reformar-se a si mesmo, mas como poderá dar a si mesmo, um novo coração? Não preciso abundar neste pensamento, pois compreenderão imediatamente, que a própria natureza da mudança, e os termos em que essa mudança é mencionada aqui, põem-na fora do alcance do homem. Como pode o homem pôr um novo coração, já que sendo o coração o poder motor de toda a vida, deve exercitar-se a si mesmo antes de que possa fazer alguma outra coisa? Mas, como podem os esforços de um velho coração produzir um novo coração? Podem imaginar, por um momento, uma árvore com um coração podre, que por sua própria energia vital, dê a si mesma, um jovem coração novo? Não se pode supor tal coisa. Se o seu coração estivesse bem originalmente, e os defeitos estivessem localizados em alguma ramo da árvore, poder-se-ia conceber que a árvore, por meio do poder vital da seiva dentro de seu coração, retifique o problema. Sabemos de algum tipo de insetos que perdem os seus membros, e pelo seu poder vital são capazes de recuperá-los de novo. Mas tirem o assento do poder vital: o coração; e, que poder haverá que possa, com alguma possibilidade, ratificá-lo, a menos que seja um poder externo, de facto, um poder do alto?



Oh, amados, ainda não existiu o homem que tenha avançado nem um ápice no caminho de produzir um novo coração. O homem deve permanecer passivo neste processo (posteriormente se tornará ativo), mas no momento em que Deus põe uma nova vida na alma, o homem é um sujeito passivo: e se acaso há alguma atividade, é uma resistência ativa contrária a Ele, até que Deus, por meio de uma graça vitoriosa e irresistível, exerce o senhorio sobre a vontade do homem.



Além disso, esta é uma mudança imerecida. Quando Deus põe um novo coração no homem, não é porque o homem mereça um novo coração. Não é porque haja algo bom na sua natureza pelo que Deus lhe dá um novo espírito. O Senhor simplesmente dá ao homem um coração novo porque assim Lhe agrada; essa é Sua única razão. “Mas,” poderias comentar, “supõe que um homem clame por um coração novo.” Eu respondo, ninguém clamou alguma vez por um coração novo antes de recebê-lo, pois o clamor por um coração novo demonstra que já há um novo coração. Mas, dirá alguém, “não devemos procurar um espírito reto?” Sim, eu sei que é teu dever buscá-lo, mas, igualmente, sei que é um dever que não cumprirás nunca. Ordena-se-vos que tenhais novos corações, mas eu sei que não os tereis nunca, a menos que Deus vo-los dê. Logo que começais a procurar um novo coração, há uma evidência presuntiva de que o novo coração já está ali, em germe, pois não terias podido germinar esta oração, a menos que as sementes não estivessem antes ali.



“Mas,” dirá alguém, “supõe que o homem não tem um novo coração, mas que sinceramente o buscasse, recebê-lo-ia?” Não deves fazer suposições impossíveis; enquanto o coração do homem seja depravado e vil, não fará nunca tal coisa. Portanto, não te posso dizer o que aconteceria se fizesse o que não fará nunca. Não posso responder às tuas suposições; e se tu presumes uma dificuldade, deves supor também a sua solução. Mas o facto é que ninguém procurou jamais um coração novo, nem o buscará jamais, ou um espírito reto, até que, em primeiro lugar, a graça de Deus comece a obrar nele. Se houver algum Cristão aqui, que deu o primeiro passo para aproximar-se de Deus, que o proclame ao mundo; inteirar-nos-íamos pela primeira vez que houve um homem que de antemão se aproximou do seu Criador. Mas eu nunca me encontrei com um caso assim; todo o povo Cristão declara que Deus começou a obra, e todos eles cantarão:



“Foi o próprio amor que preparou o festim,

Ele que docemente me forçou a entrar,

Pois eu ter-me-ia resistido a provar,

E teria perecido no meu pecado.”



É uma mudança por graça, gratuitamente dada, sem nenhum mérito por parte da criatura, sem nenhum desejo antecipado, nem boa vontade precedente. Deus fá-lo porque assim Lhe agrada, e não de conformidade com vontade do homem.



Além disso, é um esforço vitorioso da graça divina. Quando Deus começa a obra de cambiar o coração, encontra o homem totalmente contra essa obra. O homem por natureza dá coices contra Deus e resiste, porque não quer ser salvo. Eu confesso que nunca teria sido salvo, se tivesse podido evitá-lo. Tanto quanto pude, rebelei-me e me revoltei e resisti a Deus. Quando Ele queria que orasse, eu não orava; quando Ele queria que escutasse a voz do ministério, eu não queria fazê-lo. E quando ouvia a pregação, e uma lágrima rodava pelas minhas faces, eu enxugava-a e desafiava-O a que abrandasse o meu coração. Quando o meu coração tinha sido um pouco tocado, eu procurava distraí-lo com prazeres pecaminosos. E, quando isso não bastava, tentava a justiça própria, e não queria ser salvo, até que fui cercado, e então Ele deu-me o golpe irresistível da graça, e não houve forma de vencer esse vigor irresistível da Sua graça. Conquistou a minha vontade depravada, e fez-me encurvar diante do cetro da Sua graça. E o mesmo acontece em cada caso. O homem rebela-se contra o seu Criador e Salvador; mas onde o Senhor determina salvar, salvará. Deus receberá o pecador, se decide recebê-lo. Nenhum dos propósitos de Deus foi jamais frustrado. O homem procura resistir com todo o seu poder, mas todo o poder do homem, embora seja tremendo para pecar, não é rival para o poder majestoso do Altíssimo, quando passeia na carruagem da Sua salvação. Ele, com efeito, salva irresistivelmente e conquista vitoriosamente o coração do homem.



E, além disso, esta mudança é instantânea. A santificação de um homem é obra de toda a vida, mas dar ao homem um coração novo é obra de um instante. Num só segundo, mais veloz que um relâmpago, Deus põe um coração novo num homem, e o converte numa nova criatura em Cristo Jesus. Podes estar sentado nos bancos onde estás agora, sendo inimigo de Deus, albergando um coração perverso dentro de ti, duro como uma pedra, e morto e frio; mas se o Senhor assim o quer, a faísca da vida cairá na tua alma, e nesse momento começarás a tremer: começarás a sentir; confessarás o teu pecado, e irás a Cristo em busca de misericórdia. Outras partes da salvação são completadas gradualmente; mas a regeneração é uma obra instantânea da graça soberana, eficaz e irresistível de Deus.



III. Agora, nós temos neste tema um grandioso campo de esperança e de fôlego para os pecadores mais vis. Queridos leitores, permitam-me dirigir-me a vós muito afetuosamente. Há alguns de vós que estais procurando misericórdia; por muitos dias estivestes orando em segredo, e os vossos joelhos já vos doem pela vossa insistente intercessão. O vosso clamor a Deus foi: “Cria em mim, oh Deus, um coração limpo, e renova um espírito reto dentro de mim.” Permitam-me consolá-los com esta reflexão: a vossa oração já foi escutada. Vós tendes um novo coração e um espírito reto: talvez não sereis capazes de perceber a verdade desta afirmação nos próximos meses, portanto, continuai em oração até que Deus tenha aberto os vossos olhos, para que vejais que a oração foi respondida; mas podeis estar seguros que já foi respondida. Se odiares o pecado, não é a tua natureza humana a que o odeia; se anelas ser um amigo de Deus, não é a tua natureza humana a que assim o deseja; se desejas ser salvo por Cristo, não é a tua natureza humana a que o deseja; se tu anseias, sem estipulações da tua parte, se tu quiseres hoje que Cristo te faça Seu, que te preserve e te guarde, na vida e na morte, se estiveres desejoso de viver para O servir, e se fosse necessário, pronto também a morrer pela Sua honra, isso não provém da tua natureza humana: é obra da graça divina. Já há algo bom em ti; o Senhor tem começado uma boa obra no teu coração, e Ele a aperfeiçoará até ao fim. Todos estes teus sentimentos são muito mais do que aqueles tu poderias ter alcançado por ti mesmo. Deus tem-te ajudado a subir os degraus desta divina escada de graça, e tão certo como te ajudou a subir todos estes degraus, continuará levando-te até ao topo, até que te tome nos braços do Seu amor na glória eterna.



Há outras pessoas, entretanto, que não experimentaram isso, senão que foram conduzidas ao desespero. O diabo tem-lhes dito que não podem ser salvas; tem sido demasiado culpáveis, demasiado vis. Qualquer outra pessoa no mundo poderia encontrar misericórdia, mas não tu, pois tu não mereces ser salvo. Escuta-me, então, querido amigo. Acaso não tentei deixar tão claro como a luz do sol ao longo de todo este serviço, que Deus não salva nunca um homem em razão do que ele é, nem que começa, nem aperfeiçoa a Sua obra em nós, porque haja algo bom em nós? O pior pecador é precisamente tão susceptível de receber a misericórdia divina como o que menos peca. O que foi um cabecilha do crime, repito, é tão bom candidato para a graça soberana de Deus, como quem foi um modelo de moralidade. Deus não necessita de nada de nós. Não ocorre como com o lavrador, que não deseja arar todo o dia sobre as rochas, nem coloca os seus cavalos sobre a areia; para começar a trabalhar, ele procura um terreno fértil, mas Deus não o faz assim. Ele começará a trabalhar sobre o terreno rochoso, e golpeará esse coração de pedra que tens, até que se converta no limo negro e fértil da dor penitencial, e logo espalhará a semente viva nesse limo, até que produza fruto a cento por um. Mas, para começar a Sua obra, Ele não necessita nada de ti. Pode tomar-te sendo tu um ladrão, um bêbado, uma rameira, ou o que sejas: pode fazer com que te ponhas de joelhos, e clames por misericórdia, para logo te conduzir a viveres uma vida santa, e guardar-te até ao fim.



“Oh!,” dirá alguém, “eu desejaria que fizesse assim comigo, então.” Bem, alma, se esse for um desejo verdadeiro, Ele fá-lo-á. Se tu desejas neste dia ser salvo, nunca haverá um Deus renuente ali onde há um pecador disposto. Pecador, se tu queres ser salvo, Deus não quer a morte de ninguém, mas pelo contrário que tu te arrependas; e tu estás livremente convidado hoje para que voltes os teus olhos para a cruz de Cristo. Jesus Cristo carregou com os pecados dos homens, e levou as tuas aflições; pede-se-te que olhes para ali, e confies ali, simples e simplesmente. Então tu és salvo. O simples desejo, se for sincero, mostra que Deus te esteve engendrando de novo para uma esperança viva. Se esse desejo sincero permanecer, será evidência abundante que o Senhor te tem trazido para Ele, e que tu és e serás Seu.



E agora, cada um de vós, reflita (vós que sois inconvertidos), que todos nós estamos hoje nas mãos de Deus. Merecemos ser condenados: se Deus nos condenar, não se escutará nenhuma só palavra contra a Sua decisão. Nós não nos podemos salvar a nós mesmos; estamos inteiramente nas Suas mãos; como uma mariposa que está entre os Seus dedos, Ele pode-nos esmagar agora, se O quisesse, ou pode deixar-nos ir e salvar-nos. Que reflexões deveriam cruzar pela nossa mente, se acreditássemos isso! Deveríamos prostrar-nos, logo que cheguemos a casa, e clamar: “Grandioso Deus, salva-me, porque sou pecador! Salva-me! Eu renuncio a todo o mérito, pois não possuo nenhum; mereço ser condenado; Senhor, salva-me, por Cristo, Teu Filho.” E vive o Senhor, meu Deus, diante de Quem estou, que não haverá ninguém que faça isto, que encontre que o meu Deus lhe fecha as portas da misericórdia. Anime-te e prova-O, pecador; vem e prova-O! Cai hoje de joelhos no teu aposento, e prova o meu Senhor. Prova se não querer perdoar-te. Consideras que é muito insensível. É muito mais amável do que tu imaginas. Pensas que é um Senhor duro, mas não O é. Eu pensei que era severo e irado, e quando O busquei, disse para mim mesmo: “Certamente, embora aceite a todo o resto das pessoas, a mim rechaçar-me-á.” Mas, sei que me tomou no Seu peito; e quando considerei que me desprezaria para sempre, disse-me: “Eu desfiz como uma nuvem as tuas rebeliões, e como névoa os teus pecados,” e me maravilhei então, e me surpreendo ainda agora. Mas o mesmo acontecerá convosco. Somente provem-nO, suplico vos. Que o Senhor vos ajude a provarem-nO, e a Ele seja dada a glória e para vós seja a felicidade e a bem-aventurança, eternamente e para sempre.


Tradução de Carlos António da Rocha

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