Heinrich Bullinger. Aus: Boissard, Jean-Jacques: Bibliotheca
chalcographica, Partes 1-5, Heidelberg, Clemens Ammon o.J. (1669)
Segunda Confissão
Helvética
- Elaborada em 1562 por Johann Heinrich Bullinger, publicada em 1566 por Frederico III da Palatina, adoptada pelas Igrejas Reformadas da Suíça, França, Escócia, Hungria, Polónia e outras.
1. Da Sagrada Escritura como a verdadeira Palavra de Deus.
Escritura Canónica. Cremos e confessamos que as Escrituras Canónicas dos santos profetas e apóstolos de ambos os Testamentos são a verdadeira Palavra de Deus, e têm suficiente autoridade de si mesmas e não dos homens. O próprio Deus falou aos patriarcas, aos profetas e aos apóstolos, e ainda nos fala a nós pelas Santas Escrituras.
E nesta Escritura Sagrada a Igreja Universal de Cristo tem a mais completa exposição de tudo o que se refere à fé salvadora e à norma de uma vida aceitável a Deus; e a esse respeito é expressamente ordenado por Deus que a ela nada se acrescente ou dela nada se retire.
A Escritura ensina plenamente toda a piedade. Julgamos, portanto, que destas Escrituras devem derivar-se a verdadeira sabedoria e piedade, a reforma e o governo das igrejas, também a instrução em todos os deveres da piedade; enfim, a confirmação de doutrinas e a refutação de todos os erros, assim como todas as exortações segundo a palavra do apóstolo: ‘Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão”, etc. (II Tim 3.16-17). E ainda: “Escrevo-te estas cousas”, diz o apóstolo a Timóteo, “para que fiques ciente de como se deve proceder na casa de Deus”, etc. (I Tim 3.14-15).
A Escritura é a Palavra de Deus. O mesmo apóstolo diz aos tessalonissenses: “Tendo vós recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes, não como palavra de homens, e, sim, como, em verdade é, a palavra de Deus”, etc. (I Tes 2.13). E o Senhor disse no Evangelho: “Não sois vós os que falais, mas o Espírito de vosso Pai é quem fala em vós” (Mat 10.20); portanto, “quem vos der ouvidos, ouve-me a mim; e, quem vos rejeitar, a mim me rejeita; quem, porém, me rejeitar, rejeita aquele que me enviou”, (Mat 10.40; Luc 10.16; João 13.20).
A pregação da Palavra de Deus é a Palavra de Deus. Portanto, quando esta Palavra de Deus é agora anunciada na Igreja por pregadores legitimamente chamados, cremos que a própria Palavra de Deus é anunciada e recebida pelos fiéis; e que nenhuma outra Palavra de Deus pode ser inventada, ou esperada do céu: e que a própria Palavra anunciada é que deve ser levada em conta e não o ministro que a anuncia, pois, mesmo que este seja mau e pecador, contudo a Palavra de Deus permanece boa e verdadeira.
Nem pensamos que a pregação exterior deve ser considerada infrutífera pel de a instrução na verdadeira religião depender da iluminação interior do Espírito; porque está escrito: “Não ensinará jamais cada um ao seu próximo... porque todos me conhecerão” (Jer 31.34), e “nem o que planta é alguma cousa, nem o que rega, mas Deus que dá o crescimento”, (I Cor 3.7). Pois, ainda que ninguém possa vir a Cristo, se não for levado pelo Pai (cf. João 6.44), se não for interiormente iluminado pelo Espírito Santo, sabemos contudo que é da vontade de Deus que sua palavra seja pregada também externamente. Deus poderia, na verdade, pelo seu Santo Espírito, ou directamente pelo ministério do anjo, sem o ministério de São Pedro, ter ensinado a Cornélio (cf. At 10.1 ss); não obstante, ele o envia a São Pedro, a respeito de quem o anjo diz: “Ele te dirá o que deves fazer” (cf. At 11.14).
A iluminação interior não elimina a pregação exterior. Aquele que ilumina interiormente dando aos homens o Espírito Santo é o mesmo que deu aos discípulos este mandamento: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16.5). E assim, em Filipos, São Paulo pregou a Palavra externamente a Lídia, vendedora de púrpura; mas o Senhor, internamente, abriu o coração da mulher (At 16.14). E o mesmo São Paulo, numa bela gradação, em Rom 10.17, chega, afinal, a esta conclusão: “E assim, a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo”.
Reconhecemos, entretanto, que Deus pode iluminar quem ele quiser e quando quiser, mesmo sem ministério externo, pois isso está em seu poder; mas aqui falamos da maneira usual de instruir os homens, que nos foi comunicado por Deus, tanto por mandamento como pelo exemplo.
Heresias. Detestamos, portanto, todas as heresias de Artêmon, dos maniqueus, dos valentinianos, de Cerdon e dos marcionitas, os quais negaram que as Escrituras procediam do Espírito Santo; ou não aceitaram algumas partes delas, ou as interpelaram e corromperam.
Apócrifos. Contudo, não dissimulamos o facto de que certos livros do Velho Testamento foram chamados Apócrifos pelos antigos autores, e Eclesiásticos por outros, porquanto alguns admitiam que fossem lidos nas igrejas, não, porém, invocados para confirmar a autoridade da fé. Assim também Santo Agostinho, em sua De Civitate Dei, livro 18, cap. 38, observa que “nos livros dos Reis, nomes e livros de certos profetas são citados”; mas acrescenta que “eles não se encontram no Cânon”; e que “os livros que temos são suficientes para a piedade”.
2. Da interpretação das Escrituras Sagradas; e dos santos padres, dos concílios e das tradições.
A verdadeira interpretação da Escritura. O Apóstolo São Pedro disse que as Escrituras Sagradas não são de interpretação particular (II Ped 1.20). Assim não aprovamos quaisquer interpretações; pelo que nem reconhecemos como a verdadeira ou genuína interpretação das Escrituras a que se chama simplesmente a opinião da Igreja Romana, isto é, a que os defensores da Igreja Romana claramente sustentam que deve ser imposta à aceitação de todos. Mas reconhecemos como ortodoxa e genuína a interpretação da Escritura que é retirada das próprias Escrituras segundo o génio da língua em que elas foram escritas, segundo as circunstâncias em que foram registadas, e pela comparação de muitíssimas passagens semelhantes e diferentes, e que concorda com a regra de fé e amor, e mais contribui para a glória e a salvação dos homens.
Interpretação dos santos padres. Por isso, não desprezamos as interpretações dos santos padres gregos e latinos, nem rejeitamos as suas discussões e os seus tratados sobre assuntos sagrados, sempre que concordem com as Escrituras; mas respeitosamente divergimos deles, quando neles encontramos coisas estranhas às Escrituras ou contrárias a elas. E não julgamos fazer-lhes qualquer injustiça nesta questão, visto que todos eles, unanimemente, não procuram igualar seus escritos com as Escrituras Canónicas, mas nos mandam verificar até onde eles concordam com elas ou delas discordam, aceitando o que está de acordo com elas e rejeitando o que está em desacordo.
Concílios. Nessa mesma ordem colocam-se também as definições e cânones dos concílios.
Escritura Canónica. Cremos e confessamos que as Escrituras Canónicas dos santos profetas e apóstolos de ambos os Testamentos são a verdadeira Palavra de Deus, e têm suficiente autoridade de si mesmas e não dos homens. O próprio Deus falou aos patriarcas, aos profetas e aos apóstolos, e ainda nos fala a nós pelas Santas Escrituras.
E nesta Escritura Sagrada a Igreja Universal de Cristo tem a mais completa exposição de tudo o que se refere à fé salvadora e à norma de uma vida aceitável a Deus; e a esse respeito é expressamente ordenado por Deus que a ela nada se acrescente ou dela nada se retire.
A Escritura ensina plenamente toda a piedade. Julgamos, portanto, que destas Escrituras devem derivar-se a verdadeira sabedoria e piedade, a reforma e o governo das igrejas, também a instrução em todos os deveres da piedade; enfim, a confirmação de doutrinas e a refutação de todos os erros, assim como todas as exortações segundo a palavra do apóstolo: ‘Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão”, etc. (II Tim 3.16-17). E ainda: “Escrevo-te estas cousas”, diz o apóstolo a Timóteo, “para que fiques ciente de como se deve proceder na casa de Deus”, etc. (I Tim 3.14-15).
A Escritura é a Palavra de Deus. O mesmo apóstolo diz aos tessalonissenses: “Tendo vós recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes, não como palavra de homens, e, sim, como, em verdade é, a palavra de Deus”, etc. (I Tes 2.13). E o Senhor disse no Evangelho: “Não sois vós os que falais, mas o Espírito de vosso Pai é quem fala em vós” (Mat 10.20); portanto, “quem vos der ouvidos, ouve-me a mim; e, quem vos rejeitar, a mim me rejeita; quem, porém, me rejeitar, rejeita aquele que me enviou”, (Mat 10.40; Luc 10.16; João 13.20).
A pregação da Palavra de Deus é a Palavra de Deus. Portanto, quando esta Palavra de Deus é agora anunciada na Igreja por pregadores legitimamente chamados, cremos que a própria Palavra de Deus é anunciada e recebida pelos fiéis; e que nenhuma outra Palavra de Deus pode ser inventada, ou esperada do céu: e que a própria Palavra anunciada é que deve ser levada em conta e não o ministro que a anuncia, pois, mesmo que este seja mau e pecador, contudo a Palavra de Deus permanece boa e verdadeira.
Nem pensamos que a pregação exterior deve ser considerada infrutífera pel de a instrução na verdadeira religião depender da iluminação interior do Espírito; porque está escrito: “Não ensinará jamais cada um ao seu próximo... porque todos me conhecerão” (Jer 31.34), e “nem o que planta é alguma cousa, nem o que rega, mas Deus que dá o crescimento”, (I Cor 3.7). Pois, ainda que ninguém possa vir a Cristo, se não for levado pelo Pai (cf. João 6.44), se não for interiormente iluminado pelo Espírito Santo, sabemos contudo que é da vontade de Deus que sua palavra seja pregada também externamente. Deus poderia, na verdade, pelo seu Santo Espírito, ou directamente pelo ministério do anjo, sem o ministério de São Pedro, ter ensinado a Cornélio (cf. At 10.1 ss); não obstante, ele o envia a São Pedro, a respeito de quem o anjo diz: “Ele te dirá o que deves fazer” (cf. At 11.14).
A iluminação interior não elimina a pregação exterior. Aquele que ilumina interiormente dando aos homens o Espírito Santo é o mesmo que deu aos discípulos este mandamento: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16.5). E assim, em Filipos, São Paulo pregou a Palavra externamente a Lídia, vendedora de púrpura; mas o Senhor, internamente, abriu o coração da mulher (At 16.14). E o mesmo São Paulo, numa bela gradação, em Rom 10.17, chega, afinal, a esta conclusão: “E assim, a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo”.
Reconhecemos, entretanto, que Deus pode iluminar quem ele quiser e quando quiser, mesmo sem ministério externo, pois isso está em seu poder; mas aqui falamos da maneira usual de instruir os homens, que nos foi comunicado por Deus, tanto por mandamento como pelo exemplo.
Heresias. Detestamos, portanto, todas as heresias de Artêmon, dos maniqueus, dos valentinianos, de Cerdon e dos marcionitas, os quais negaram que as Escrituras procediam do Espírito Santo; ou não aceitaram algumas partes delas, ou as interpelaram e corromperam.
Apócrifos. Contudo, não dissimulamos o facto de que certos livros do Velho Testamento foram chamados Apócrifos pelos antigos autores, e Eclesiásticos por outros, porquanto alguns admitiam que fossem lidos nas igrejas, não, porém, invocados para confirmar a autoridade da fé. Assim também Santo Agostinho, em sua De Civitate Dei, livro 18, cap. 38, observa que “nos livros dos Reis, nomes e livros de certos profetas são citados”; mas acrescenta que “eles não se encontram no Cânon”; e que “os livros que temos são suficientes para a piedade”.
2. Da interpretação das Escrituras Sagradas; e dos santos padres, dos concílios e das tradições.
A verdadeira interpretação da Escritura. O Apóstolo São Pedro disse que as Escrituras Sagradas não são de interpretação particular (II Ped 1.20). Assim não aprovamos quaisquer interpretações; pelo que nem reconhecemos como a verdadeira ou genuína interpretação das Escrituras a que se chama simplesmente a opinião da Igreja Romana, isto é, a que os defensores da Igreja Romana claramente sustentam que deve ser imposta à aceitação de todos. Mas reconhecemos como ortodoxa e genuína a interpretação da Escritura que é retirada das próprias Escrituras segundo o génio da língua em que elas foram escritas, segundo as circunstâncias em que foram registadas, e pela comparação de muitíssimas passagens semelhantes e diferentes, e que concorda com a regra de fé e amor, e mais contribui para a glória e a salvação dos homens.
Interpretação dos santos padres. Por isso, não desprezamos as interpretações dos santos padres gregos e latinos, nem rejeitamos as suas discussões e os seus tratados sobre assuntos sagrados, sempre que concordem com as Escrituras; mas respeitosamente divergimos deles, quando neles encontramos coisas estranhas às Escrituras ou contrárias a elas. E não julgamos fazer-lhes qualquer injustiça nesta questão, visto que todos eles, unanimemente, não procuram igualar seus escritos com as Escrituras Canónicas, mas nos mandam verificar até onde eles concordam com elas ou delas discordam, aceitando o que está de acordo com elas e rejeitando o que está em desacordo.
Concílios. Nessa mesma ordem colocam-se também as definições e cânones dos concílios.
Por
esse motivo, nas controvérsias religiosas não aceitamos como imposição
as simples opiniões dos Santos Padres ou os decretos dos concílios;
muito menos, os costumes herdados ou, até, o facto de ser uma opinião
partilhada por uma multidão ou consagrada por um longo tempo. Quem é o
juiz? Portanto, em questão de fé, não admitimos juiz algum, a não ser o
próprio Deus, que, pelas Santas Escrituras, proclama o que é verdadeiro,
o que é falso, o que deve ser seguido ou o que deve ser evitado. Assim,
apoiamo-nos exclusivamente nos julgamentos de homens espirituais, por
eles tomados à Palavra de Deus. Jeremias e outros profetas condenaram
severamente os concílios de sacerdotes estabelecidos contra a lei de
Deus; e nos advertiram diligentemente que não ouvíssemos os nossos pais,
nem trilhássemos os seus caminhos, porque eles, andando segundo suas
próprias invenções se desviaram da lei de Deus.
Tradições de
homens. Rejeitamos, igualmente, as tradições humanas, mesmo que venham
adornadas de títulos atraentes, como se fossem divinas e apostólicas,
entregues à Igreja de viva voz pelos apóstolos e, como pelas mãos de
varões apostólicos, aos bispos que os sucederam, as quais, quando
comparadas com as Escrituras delas discrepam, e por essa discrepância
revelam que, de modo nenhum, são apostólicas. Como os apóstolos não se
contradisseram entre si quanto à doutrina, assim os varões apostólicos
não ensinaram nada contrário aos apóstolos. Ao contrário, seria ímpio
afirmar que os apóstolos, de viva voz, tivessem ensinado coisas
contrárias aos seus escritos. São Paulo afirma claramente que ele
ensinava as mesmas coisas em todas as igrejas (I Co 4.17). E mais:
“Porque nenhuma outra cousa vos escrevemos, além das que ledes e bem
compreendeis” (II Co 1.13). Também, em outra passagem, testifica que ele
e seus discípulos - a saber, os varões apostólicos - andavam do mesmo
modo e, ligados pelo mesmo Espírito, faziam todas as coisas (II Co
12.18). Os judeus também tiveram, no passado, as tradições dos seus
anciãos, mas essas tradições foram severamente repetidas pelo Senhor,
que mostrou que a sua observância põe entraves à lei de Deus, e que por
meio delas Deus é em vão adorado (Mat. 15.1 ss; Mc 7.1 ss)
3. De Deus, sua unidade e trindade.
Deus
é uno. Cremos e ensinamos que Deus é um em essência ou natureza,
subsistindo por si mesmo, todo suficiente em si mesmo, invisível,
incorpóreo, imenso, eterno, criador de todas as coisas, visíveis e
invisíveis, o supremo-bem, vivo, vivificador e preservador de todas as
coisas, omnipotente e supremamente sábio, clemente ou misericordioso,
justo e verdadeiro. Abominamos a pluralidade de deuses, porque está
claramente escrito: “O Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Deut 6.4).
“Eu sou o Senhor teu Deus. Não terás outros deuses diante de mim” (Êx
20.2-3). “Eu sou o Senhor, e não há outro; além de mim não há Deus. Deus
justo e Salvador não há além de mim” (Is 45.5.21). “Senhor, Senhor Deus
compassivo, clemente e longânimo, e grande em misericórdia e
fidelidade” (Êx 34.6).
Deus é trino. Entretanto, cremos e
ensinamos que o mesmo Deus imenso, uno e indiviso é inseparavelmente e
sem confusão, distinto em pessoas - Pai, Filho e Espírito Santo - e,
assim como o Pai gerou o Filho desde a eternidade, o Filho foi gerado
por inefável geração, e o Espírito Santo verdadeiramente procede de um e
outro, desde a eternidade e deve ser com ambos adorado.
Assim,
não há três deuses, mas três pessoas, consubstanciais, co-eternas e
co-iguais, distintas quanto às hipóstases e quanto à ordem, tendo uma
precedência sobre a outra, mas sem qualquer desigualdade. Segundo a
natureza ou essência, acham-se tão unidas que são um Deus, e a essência
divina é comum ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
A Escritura
ensina-nos manifesta distinção de pessoas, quando o anjo diz, entre
outras coisas, à bem-aventurada Virgem; “Descerá sobre ti o Espírito
Santo e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra; por isso
também o ente santo que há de nascer, será chamado Filho de Deus” (Luc
1.35). E, igualmente, no baptismo de Cristo, ouve-se uma voz do céu a
seu respeito, dizendo: “Este é o meu Filho amado” (Mat 3.17). O Espírito
Santo também apareceu em forma de pomba (João 1.32). E, quando o Senhor
mesmo mandou os apóstolos baptizar, mandou-os baptizar “em nome do Pai e
do Filho e do Espírito Santo” (Mat 28.19). Em outra parte do Evangelho,
diz ele: “O Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome” (João
14.26). E noutro lugar: “Quando, porém, vier o Consolador, que eu vos
enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade, que dele procede, esse
dará testemunho de mim”, etc. (João 15.26). Em resumo, recebemos o Credo
dos Apóstolos, porque ele nos comunica a verdadeira fé.
Heresias.
Portanto, condenamos judeus e maometanos, e todos quantos blasfemam da
Trindade santa e digna de adoração. Condenamos, também, todas as
heresias e os heréticos que ensinam que o Filho e o Espírito Santo são
Deus apenas de nome, e ainda que há algo criado e subserviente, ou
subordinado a outro, na Trindade, e que nela há algo desigual, maior ou
menor, corpóreo ou corporeamente concebido, diferente quanto aos
costumes ou à vontade, confuso ou solitário, como se o Filho e o
Espírito Santo fossem os sentimentos e propriedades de um Deus o Pai,
como pensavam os monarquistas, os novacianos, Praxeas, os
patripassianos, Sabélio, Paulo de Samosata, Êcio, Macedônio, os
antropomorfitas, Ário e outros semelhantes.
4. Dos ídolos ou imagens de Deus, de Cristo e dos santos.
Imagens
de Deus. Visto que Deus como Espírito é, em essência, invisível e
imenso, não pode, certamente, ser expresso por qualquer arte ou imagem.
Por essa razão, não tememos afirmar com a Escritura que imagens de Deus
não passam de mentiras. Assim, rejeitamos não somente os ídolos dos
gentios mas também as imagens dos cristãos.
Imagens de Cristo.
Embora Cristo tenha assumo a natureza humana, não a assumiu para
fornecer modelo a escultores e pintores. Afirmou que não veio “revogar a
lei ou os profetas” (Mat 5.17). E as imagens são proibidas pela lei e
pelos profetas (Deut 4.15; Is 44.9). Afirmou que a sua presença corporal
não seria de proveito para a Igreja, e prometeu que estaria junto de
nós, para sempre, pelo seu Espírito (João 16.7). Quem, pois, haveria de
crer que uma sombra ou semelhança de seu corpo traria qualquer benefício
para as almas piedosas? (II Co 5.5). Se ele vive em nós pelo seu
Espírito, somos já os templos de Deus (I Co 3.16). Mas, “que ligação há
entre o santuário de Deus e os ídolos?” (II Co 6.16).
Imagens de
santos. E desde que os espíritos bem-aventurados e os santos do céu,
quando viviam aqui na terra, rejeitaram qualquer culto de si mesmos (At
3.12 ss; 14.11 ss; Apoc 14.7; 22.9) e condenaram as imagens, poderá
alguém achar plausível que os santos e anjos celestiais se agradem com
suas imagens, diante das quais os homens se ajoelham, descobrem as
cabeças e dispensam outras honras?
Para instruir os homens na
religião e relembrá-los das coisas divinas e da sua salvação, o Senhor
ordenou que se pregasse o Evangelho (Mc 16.15) - e não que se pintassem
quadros para ensinar os leigos. Instituiu também os sacramentos, mas em
nenhum lugar estabeleceu imagens.
A escritura dos leigos. Demais,
para onde quer que volvamos os olhos, vemos as criaturas de Deus, vivas
e verdadeiras ao nosso olhar, as quais, se bem examinadas como convém,
causam ao observador uma impressão muito mais viva do que todas as
imagens ou pinturas vãs, imóveis, frágeis e mortas, feitas pelos homens,
das quais com razão disse o profeta: “Têm olhos, e não vêem” (Sal
115.5).
Lactâncio, Epifânio e Jerónimo. Por isso aprovamos a
opinião de Lactânio, escritor antigo, que diz: “Indubitavelmente nenhuma
religião existe onde há uma imagem”. Afirmamos, também, que o
bem-aventurado bispo Epifânio procedeu bem quando, ao encontrar nas
portas de uma igreja um véu no qual estava pintada uma figura que se
dizia ser de Cristo ou de algum santo, rasgou-o e o arrancou dali, por
ver, contra a autoridade da Escritura, a figura de um homem afixada na
Igreja de Cristo. Por isso, ele ordenou que dali por diante tais véus,
que eram contrários à nossa religião, não fossem afixados na Igreja de
Cristo, mas antes fossem removidas essas coisas duvidosas, indignas da
Igreja de Cristo e dos fiéis. Além disso, aprovamos esta afirmação de
Santo Agostinho sobre a verdadeira religião: “Não seja a nossa religião
um culto de obras humanas: os próprios artistas que as fazem são
melhores do que elas; no entanto, não devemos adorá-los” (De Vera
Religione , IV, 108).
5. Da adoração, do culto e da invocação de Deus por Jesus Cristo, único Mediador.
Somente
Deus deve ser adorado e cultuado. Ensinamos que somente o verdadeiro
Deus deve ser adorado e cultuado. Esta honra não concedemos a nenhum
outro, segundo o mandamento do Senhor: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e
só a ele darás culto” (Mat 4.10). Sem dúvida, todos os profetas
censuraram severissimamente o povo de Israel todas as vezes que este
adorou e cultuou deuses estranhos e não o único Deus verdadeiro. E
ensinamos que Deus deve ser adorado e cultuado como ele mesmo nos
ensinou a cultuá-lo, a saber, “em Espírito e em verdade” (João 4.23 ss),
e não com qualquer superstição, mas com sinceridade, segundo a sua
Palavra; para que, em tempo algum, não venha ele a dizer-nos: “Quem vos
requereu o só pisardes os meus átrios?” (Is 1,12; Jer 6,20). São Paulo
também diz: “Deus não é servido por mãos humanas, como se de alguma
cousa precisasse”, etc. (At 17,25).
Só Deus deve ser invocado
pela exclusiva mediação de Cristo. Em todas as crises e provações de
nossa vida invocamos somente a ele e isso pela mediação de Jesus Cristo,
nosso único mediador e intercessor. Eis o que nos é claramente
ordenado: “Invoca-me no dia da angústia: eu te livrarei, e tu me
glorificarás” (Sal 50,15). Temos uma promessa generosíssima do Senhor,
que disse: “Se pedirdes alguma cousa ao Pai, ele vo-la concederá em meu
nome” (João 16,23), e: “Vinde a mim todos os que estais cansados e
sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mat 11,28). Está escrito: “Como,
porém, invocarão aquele em que não creram?” (Rom 10.14). Nós cremos em
um só Deus, e só a ele invocamos, e o fazemos mediante Cristo.
“Porquanto há um só Deus, diz o Apóstolo, e um só Mediador entre Deus e
os homens, Jesus Cristo, homem” (I Tim 2,5). Também se diz: “Se,
todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o
justo”, etc. (I João 2,1).
Os santos não devem ser adorados,
cultuados ou invocados. Por essa razão não adoramos, nem cultuamos nem
invocamos os santos dos céus, nem outros deuses, nem os reconhecemos
como nossos intercessores ou mediadores perante o Pai que está no céu.
Deus e Cristo, o Mediador, nos são suficientes. Nem concedemos a outros a
honra que é devida somente a Deus e ao seu Filho, porque ele claramente
disse: “A minha glória, pois, não a darei a outrem” (Is 42.8). E porque
São Pedro disse: “Porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome,
dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos”, a não ser o
nome de Cristo (At 4,12). Nele, os que dão seu assentimento pela fé não
buscam coisa alguma além de Cristo.
A honra devida aos santos.
Entretanto, não desprezamos os santos nem os tratamos como seres
vulgares. Reconhecemo-los como membros vivos de Cristo e amigos de Deus,
que venceram gloriosamente a carne e o mundo. Por isso nós os amamos
como irmãos e também os honramos; não, porém, com qualquer espécie de
culto, mas os encaramos com apreciação e respeito e com justos louvores.
Também os imitamos, pois com ardentíssimos anseios e súplicas desejamos
ser imitadores da sua fé e das suas virtudes, partilhar com eles a
salvação eterna, habitar eternamente com eles na presença de Deus e
regozijar-nos com eles em Cristo. Neste ponto aprovamos o que diz Santo
Agostinho: “Não seja a nossa religião um culto dos mortos. Pois, se
viveram vidas santas, não devemos supor que estejam à procura de tais
honras; ao contrário, querem que adoremos aquele por cuja iluminação
eles se alegram de que sejamos conservos dos seus méritos. Devem,
portanto, ser honrados pela imitação, e não adorados por religião”, etc.
(De Vera Religione , LV, 108).
Relíquias dos santos. Muito menos
cremos que as relíquias dos santos devem ser adoradas ou cultuadas.
Aqueles santos antigos pareciam ter honrado suficientemente seus mortos,
se de modo decente tinham entregado seus restos mortais à terra, depois
que os espíritos subiram ao alto. E consideravam que as mais nobres
relíquias de seus ancestrais eram suas virtudes, sua doutrina e sua fé,
as quais, como eles as recomendavam pelo louvor dos seus mortos, assim
se esforçavam para imitá-las enquanto viviam na terra.
Juramento
só pelo nome de Deus. Aqueles homens antigos não juravam senão pelo nome
do único Deus, Javé, como ordenava a lei divina. Como por ela é
proibido jurar pelo nome de deuses estranhos (Êx 23.13; Deut 10.20),
assim não juramos em nome dos santos, como se exige de nós. Rejeitamos,
portanto, em todas estas questões, uma doutrina que atribui mais do que o
devido aos santos que estão nos céus.
6. Da providência de Deus.
Todas
as coisas são governadas pela providência de Deus. Cremos que tudo o
que há no céu e na terra, e em todas as criaturas, é preservado e
governado pela providência deste Deus sábio, eterno e onipotente. Davi o
testifica e diz: “Excelso é o Senhor acima de todas as nações, e a sua
glória acima dos céus. Quem há semelhante ao Senhor nosso Deus, cujo
trono está nas alturas; que se inclina para ver o que se passa no céu e
sobre a terra?” (Sal 113,4 ss). Outra vez: “Esquadrinhas... todos os
meus caminhos. Ainda a palavra me não chegou à língua, e tu, Senhor, já a
conheces toda” (Sal 139, 3 ss). São Paulo também testifica e declara:
“Nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17, 28), e “dele e por
meio dele e para ele são todas as cousas” (Rom 11, 36). Portanto Santo
Agostinho, muito acertadamente e segundo a Escritura, declarou em seu
livro De Agone Christi , cap. 8: “O Senhor disse: ‘Não se vendem dois
pardais por um asse? e nenhum deles cairá em terra sem o consentimento
de vosso Pai’” (Mat 10.29). Assim falando, ele quis mostrar que aquilo
que os homens consideram de valor insignificante é governado pela
onipotência de Deus. Porquanto aquele que é a verdade diz que as aves do
céu são alimentadas por ele e os lírios do campo são vestidos por ele; e
diz também, que os cabelos de nossa cabeça estão contados (Mat 6.26
ss).
Os Epicureus. Condenamos, portanto, os epicureus que negam a
providência de Deus e todos quantos blasfemem dizendo que Deus está
ocupado com os céus e nem nos vê, nem vê nossos interesses, nem cuida de
nós. Davi, o rei-profeta, também os condenou, quando disse: “Senhor,
até quando exultarão os perversos? Dizem: O Senhor não vê; nem disso faz
caso o Deus de Jacob. Atendei, ó estúpidos dentre o povo; e vós
insensatos, quando sereis prudentes? O que fez o ouvido, acaso não
ouvirá? e o que formou os olhos, será que não enxerga?” (Sal 94, 3.7-9).
Os
meios não devem ser desprezados. Entretanto, não desprezamos como
inúteis os meios pelos quais opera a providência divina, mas ensinamos
que devemos acomodar-nos a eles, na medida em que nos são recomendados
na Palavra de Deus. Eis por que desaprovamos as afirmações temerárias
daqueles que dizem que, se todas as coisas são geridas pela providência
de Deus, então nossos esforços e diligências são inúteis. Seria o
bastante deixarmos tudo ao governo da divina providência e não nos
preocuparmos nem fazermos coisa alguma. São Paulo reconhecia que
navegava sob a providência de Deus, que lhe dissera: “...deste
testemunho a meu respeito em Jerusalém, assim importa que também o faças
em Roma” (At 23.11), e em adição lhe havia prometido: “Porque nenhuma
vida se perderá de dentre vós... pois nenhum de vós perderá nem mesmo um
fio de cabelo” (At. 27, 22.34). Todavia, quando os marinheiros estavam
pensando em abandonar o navio, ele mesmo disse ao centurião e aos
soldados: “Se estes não permanecerem a bordo, vós não podereis
salvar-vos” (At 27.31). Deus, que destinou a cada coisa o seu fim,
ordenou o começo e os meios pelos quais a coisa atinge seu alvo. Os
pagãos atribuem as coisas à fortuna cega e ao acaso incerto. No entanto,
São Tiago não deseja que digamos: “Hoje, ou amanhã, iremos para a
cidade tal, e lá passaremos um ano, e negociaremos e teremos lucros”,
mas aconselha: “Em vez disso, deveis dizer: Se o Senhor quiser, não só
viveremos, como faremos isto ou aquilo” (Tiago 4, 13.15). E Santo
Agostinho diz: “Tudo o que para os homens vãos, na natureza parece
acontecer por acidente, realiza simplesmente a sua Palavra, porque não
acontece senão por sua ordem” (Enarrationes in Psalmos , 148). Assim,
parecia acontecer por mero acaso quando Saul, enquanto procurava as
jumentas de seu pai, inesperadamente se encontrou com o profeta Samuel.
Mas previamente o Senhor dissera ao profeta: “Amanhã a estas horas te
enviarei um homem da terra de Benjamim” (I Sam 9.16).
7. Da criação de todas as coisas: dos anjos, do diabo e do homem.
Deus
criou todas as coisas. Este Deus bom e onipotente criou todas as
coisas, visíveis e invisíveis, pela sua Palavra co-eterna, e as preserva
pelo seu Espírito co-eterno, como Davi testificou, quando disse: “Os
céus por sua palavra se fizeram, e pelo sopro de sua boca o exército
deles” (Sal 33.6). E, como diz a Escritura, tudo o que Deus fez era
muito bom, e foi feito para proveito e uso do homem. Ora, afirmamos que
todas aquelas coisas partiram de um princípio.
Maniqueus e
Marcionitas. Portanto, condenamos os maniqueus e os marcionitas que
impiamente imaginaram duas substâncias e duas naturezas, a do bem e a do
mal; também dois princípios e dois deuses, um contrário ao outro, um
bom e um mau.
Dos anjos e do diabo. Entre todas as criaturas, os
anjos e os homens são os mais excelentes. Dos anjos declara a Santa
Escritura: “Fazes a teus anjos ventos, e a teus ministros, labaredas de
fogo” (Sal 104, 4). Diz ainda: “Não são todos eles espíritos
ministradores enviados para serviço, a favor dos que hão de herdar a
salvação?” (Heb 1, 14). Do Diabo testifica o próprio Senhor Jesus: “Ele
foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade. Quando ele
profere a mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai
da mentira” (João 8.44). Portanto, ensinamos que alguns anjos
persistiram na obediência e foram designados para fiel serviço a Deus e
aos homens, mas outros caíram pela sua própria vontade e foram
precipitados na ruína, tornando-se inimigos de todo o bem e dos fiéis,
etc.
Do homem. Já do homem diz a Escritura que no princípio ele
foi criado bom, à imagem e semelhança de Deus, que Deus o colocou no
Paraíso e lhe sujeitou todas as coisas (Gén cap. 2). Isso é o que Davi
magnificamente celebra no Salmo 8. Além disso, Deus lhe deu uma esposa e
os abençoou. Afirmamos também que o homem consiste de duas substâncias
diferentes numa pessoa: de uma alma imortal, que, quando separada do
corpo, nem dorme nem morre, e de um corpo mortal que, porém,
ressuscitará dos mortos no juízo final, de modo que desde então o homem
todo, na vida ou na morte, viva para sempre.
As seitas.
Condenamos todos os que ridicularizam ou mediante argumentos subtis põem
em dúvida a imortalidade das almas, ou dizem que a alma dorme ou é
parte de Deus. Em resumo, condenamos todas as opiniões de todos os
homens, por mais numerosos que sejam, que ensinam diversamente do que, a
respeito da criação, dos anjos e dos demônios, e do homem, nos foi
ensinado pelas Santas Escrituras na Igreja apostólica de Cristo.
8. Da queda do homem, do pecado e sua causa.
A
queda do homem. Desde o inicio foi o homem Por Deus criado à imagem de
Deus, em justiça e santidade de verdade, bom e reto, mas, por instigação
da serpente e pela sua própria culpa, ele se afastou da bondade e da
retidão e tornou-se sujeito ao pecado, à morte e a várias calamidades. E
qual veio ele a ser pela queda - isto é, sujeito ao pecado, à morte e a
várias calamidades - tais são todos os que dele descenderam.
Pecado.
Por pecado entendemos a corrupção inata do homem, que se comunicou ou
propagou de nossos primeiros pais, a todos nós, pela qual nós -
mergulhados em más concupiscências, avessos a todo o bem, inclinados a
todo o mal, cheios de toda impiedade, de descrenças, de desprezo e de
ódio a Deus - nada de bom podemos fazer, e, até, nem ao menos podemos
pensar por nós mesmos. Além disso, à medida que passam os anos, por
pensamentos, palavras e obras más, contrárias à lei de Deus, produzimos
frutos corrompidos, dignos de uma árvore má (Mat 12,33 ss). Por essa
razão, sujeitos à ira de Deus, por nossas próprias culpas, estamos
expostos ao justo castigo, de modo que todos nós teríamos sido por Deus
lançados fora, se Cristo, o Libertador, não nos tivesse reconduzido.
Morte.
Por morte entendemos não só a morte corpórea, que todos nós teremos de
experimentar uma vez, por causa dos pecados, mas também os suplícios
eternos devidos aos nossos pecados e à nossa corrupção. Eis o que diz o
apóstolo: “Estando vós mortos nos vossos delitos e pecados... éramos por
natureza filhos da ira, como também os demais. Mas Deus, sendo rico em
misericórdia... e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida
juntamente com Cristo” (Ef 2.1 ss). E também: “Portanto, assim como por
um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim
também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram” (Rom
5.12).
Pecado original; pecados atuais. Reconhecemos, portanto,
que há pecado original em todos os homens. Reconhecemos que todos os
outros pecados que deste provêm são chamados, e verdadeiramente são,
pecados, qualquer que seja o nome que lhes seja dado - pecados mortais,
veniais ou mesmo aquele que é chamado pecado contra o Espírito Santo,
que nunca é perdoado (Mc 3.29; I João 5.16). Confessamos também que os
pecados não são iguais: embora surjam da mesma fonte de corrupção e
incredulidade, alguns são mais graves que os outros. Como disse o
Senhor, haverá mais tolerância para Sodoma do que para a cidade que
rejeita a palavra do Evangelho (Mat 10.14 ss; 11.20 ss).
As
seitas. Condenamos, portanto, todos os que ensinaram o contrário disto,
especialmente Pelágio e todos os pelagianos, juntamente com os
jovinianos, que, com os estóicos, consideravam todos os pecados como
iguais. Em toda esta questão concordamos com Santo Agostinho, que das
Escrituras Sagradas extraiu seu ponto de vista e por elas o defendeu.
Mais ainda, condenamos Florino e Blasto, contra quem escreveu Irineu, e
todos os que fazem Deus o autor do pecado.
Deus não é o autor do
pecado; e até onde se pode dizer que ele endurece. Está claramente
escrito: “Tu não és Deus que se agrade com a iniqüidade. Aborreces a
todos que praticam iniqüidade. Tu destróis os que proferem mentira” (Sal
5.4 ss). E de novo: “Quando ele profere a mentira, fala do que lhe é
próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (João 8.44). Além disso,
há em nós suficiente pecado e corrupção, não sendo necessário que Deus
em nós infunda uma nova e ainda maior depravação. Quando, portanto, se
diz nas Escrituras que Deus endurece, cega e entrega a uma disposição
réproba de mente, deve-se entender que Deus o faz mediante um justo
juízo, como um Juiz Vingador e justo. Finalmente, sempre que na
Escritura se diz ou parece que Deus faz algo mal, não se diz, por isso,
que o homem não pratique o mal, mas que Deus o permite e não o impede,
segundo o seu justo juízo, que poderia impedi-lo se o quisesse, ou
porque ele transforma o mal do homem em bem, como fez no caso do pecado
dos irmãos de José, ou porque ele próprio controla os pecados, para que
não irrompam e grassem mais largamente do que convém. Santo Agostinho
escreve em seu Enchiridion : “De modo admirável e inexplicável não se
faz além da sua vontade aquilo que contra a sua vontade faz. Pois não se
faria, se ele não o permitisse. E, no entanto, ele não o permite contra
a vontade, mas voluntariamente. O bom não permitiria que se fizesse o
mal, a não ser que, sendo onipotente, pudesse do mal fazer o bem”. É
isso o que ele diz.
Questões curiosas. As demais questões - tais
como, se Deus quis que Adão caísse, ou se o incitou à queda, ou por que
não impediu a queda e outras semelhantes - nós as reconhecemos como
curiosas (salvo, talvez, se a impiedade dos heréticos ou de outros
homens grosseiros nos leve a explicá-las também, com base na Palavra de
Deus, como freqüentemente o fizeram os piedosos doutores da Igreja),
sabendo que o Senhor proibiu o homem de comer do fruto proibido e puniu
sua transgressão. Sabemos também que as coisas que se fazem não são más
com respeito à providência, à vontade e ao poder de Deus, mas com
respeito a Satanás e à nossa vontade que se opõe à vontade de Deus.
9. Do livre arbítrio e da capacidade humana.
Nesta
questão, que sempre produziu muitos conflitos na Igreja, ensinamos que
se deve considerar uma tríplice condição ou estado do homem.
Qual
era o homem antes da queda. Há o estado em que o homem se encontrava no
princípio, antes da queda; era certamente reto e livre, de modo que
podia continuar no bem ou declinar para o mal, mas inclinou-se para o
mal e se envolveu a si mesmo e a toda a raça humana em pecado e morte,
como se disse acima.
Qual se tornou o homem depois da queda.
Depois, importa considerar qual se tornou o homem depois da queda. Sem
dúvida, seu entendimento não lhe foi retirado, nem foi ele privado de
vontade, nem foi transformado inteiramente numa pedra ou árvore; mas seu
entendimento e sua vontade foram de tal sorte alterados e enfraquecidos
que não podem mais fazer o que podiam antes da queda. O entendimento se
obscureceu, e a vontade, que era livre, tornou-se uma vontade escrava.
Agora ela serve ao pecado, não involuntária mas voluntariamente. Tanto é
assim que o seu nome é “vontade”; não é “não – vontade”.
O homem
pratica o mal por sua própria vontade. Portanto, quanto ao mal ou ao
pecado, o homem não é forçado por Deus ou pelo Diabo, mas pratica o mal
espontaneamente e nesse sentido ele tem arbítrio muito livre. Mas o
facto de vermos, não raro, que os piores crimes e desígnios dos homens
são impedidos por Deus de atingir seus propósitos não tolhe a liberdade
do homem na prática do mal, mas é Deus que pelo seu próprio poder impede
aquilo que o homem livremente determinou de modo diverso. Assim, os
irmãos de José livremente determinaram desfazer-se dele, mas não o
puderam, porque outra coisa parecia bem ao conselho de Deus.
O
homem por si só não é capaz do bem. Com referência ao bem e à virtude, o
entendimento do homem, por si mesmo, não julga retamente a respeito das
coisas divinas. A Escritura evangélica e apostólica requer regeneração
de todos aqueles de entre nós que desejamos ser salvos. Por conseguinte,
nosso primeiro nascimento de Adão em nada contribui para nossa
salvação. São Paulo diz: “O homem natural não aceita as cousas do
Espírito de Deus”, etc. (I Co 2.14). E em outra passagem ele afirma que
nós, por nós mesmos, não somos capazes de pensar nada de bom (II Co
3.5). Ora, sabe-se que a mente ou entendimento é a luz da vontade, e
quando o guia é cego, é óbvio até onde a vontade poderá chegar. Por
isso, o homem ainda não regenerado não tem livre arbítrio para o bem e
nenhum poder para realizar o que é bom. O Senhor diz no Evangelho: “Em
verdade, em verdade vos digo: Todo o que comete pecado é escravo do
pecado” (João 8.34). E o apóstolo São Paulo diz: “Por isso o pendor da
carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem
mesmo pode estar” (Rom 8.7). O entendimento das coisas terrenas, porém,
não é inteiramente nulo no homem decaído.
Compreensão das artes.
Deus em sua misericórdia permitiu que permanecesse o talento natural,
apesar de este distar muito daquele que existia no homem antes da queda.
Deus manda o homem cultivar o seu talento e, ao mesmo tempo, lhe
acrescenta dons e favores. E é manifesto que não fazemos nenhum
progresso em todas as artes sem a bênção de Deus. Certamente, a
Escritura atribui todas as artes a Deus; e, na verdade, até os pagãos
atribuem a origem das artes a deuses, que seriam os seus inventores.
Quais
são os poderes dos regenerados, e de que modo é livre o seu arbítrio.
Finalmente, devemos ver se os regenerados têm e até que ponto têm livre
arbítrio. Na regeneração, o entendimento é iluminado pelo Espírito
Santo, para que compreenda os mistérios e a vontade de Deus. E a própria
vontade não é somente mudada pelo Espírito, mas é também equipado com
poderes, de modo, que ela espontaneamente deseje o bem e seja capaz de
praticá-la (Rom 8.1 ss). Se não concedermos isso, negaremos a liberdade
cristã e introduziremos uma servidão geral. Mas também o profeta
registra o que Deus diz: “Na mente lhes imprimirei as minhas leis,
também no coração lhas inscreverei” (Jer 31.33; Ez 36.26 ss). E o Senhor
também diz no Evangelho: “Se, pois, o Filho vos libertar,
verdadeiramente sereis livres” (João 8.36). E São Paulo também escreve
aos filipenses: “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por
Cristo, e não somente de crerdes nele” (Fil 1.29). E outra vez: “Estou
plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de
completá-la até ao dia de Cristo Jesus” (v. 6). E ainda: “Deus é quem
efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade”
(2.13).
Os regenerados operam não só passiva, mas ativamente.
Entretanto, ensinamos que há duas coisas a serem observadas: Primeiro,
que os regenerados, na sua eleição e operação, não agem só passiva mas
ativamente. São levados por Deus a fazer por si mesmos o que fazem.
Santo Agostinho muito bem afirma que “Deus é nosso ajudador. Mas ninguém
pode ser ajudado, se não aquele que faz alguma coisa”. Os maniqueus
despojavam o homem de toda ação e o faziam semelhante a uma pedra ou a
um pedaço de pau.
O livre arbítrio é fraco nos regenerados.
Segundo, nos regenerados permanece a fraqueza. Desde que o pecado
permanece em nós, e nos regenerados a carne luta contra o espírito até o
fim de nossa vida, eles não conseguem realizar livremente tudo o que
planejaram. Isso é confirmado pelo apóstolo em Rom 7 e Gal 5. Portanto, é
fraco em nós o livre arbítrio por causa dos remanescentes do velho Adão
e da corrupção humana inata, que permanece em nós até o fim de nossa
vida. Entretanto, desde que os poderes da carne e os remanescentes do
velho homem não são tão eficazes que extingam totalmente a operação do
Espírito, os fiéis são por isso considerados livres, mas de modo tal que
reconhecem a própria fraqueza e não se gloriam de modo algum em seu
livre arbítrio. Os fiéis devem ter sempre em mente o que Santo Agostinho
tantas vezes inculca, segundo o apóstolo: “o que tendes que não
recebestes? Se, pois, o recebestes, por que vos vangloriais, como se não
fosse um dom?” A isso ele acrescenta que aquilo que planejamos não
acontece imediatamente, pois os resultados das coisas estão nas mãos de
Deus. Esta a razão por que São Paulo ora ao Senhor para promover sua
viagem (Rom 1.10). E esta é também a razão pela qual o livre arbítrio é
fraco.
Nas coisas externas há liberdade. Todavia, ninguém nega
que nas coisas externas tanto os regenerados como os não-regenerados
gozam de livre arbítrio. O homem tem em comum com os outros animais (aos
quais ele não é inferior) esta natureza de querer umas coisas e não
querer outras. Assim, ele pode falar ou ficar calado, sair de sua casa
ou nela permanecer, etc. Contudo, mesmo aqui deve-se ver sempre o poder
de Deus, pois essa foi a causa por que Balaão não pôde ir tão longe
quanto desejava (Num, cap. 24), e Zacarias, ao voltar do templo, não
podia falar como era seu desejo (Luc, cap. 1).
Heresias. Nesta
questão, condenamos os maniqueus, os quais afirmam que o início do mal,
para o homem bom, não foi de seu livre arbítrio. Condenamos, também, os
pelagianos, que afirmam que um homem mau tem suficiente livre arbítrio
para praticar o bem que lhe é ordenado. Ambos são refutados pela Santa
Escritura, que diz aos primeiros: “Deus fez o homem reto”; e aos
segundos: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis
livres” (João 8.36).
10. Da predestinação de Deus e da eleição dos santos.
Deus
nos elegeu pela graça. Deus, desde a eternidade, livremente e movido
apenas pela sua graça, sem qualquer respeito humano, predestinou ou
elegeu os santos que ele quer salvar em Cristo, segundo a palavra do
apóstolo: “Ele nos escolheu nele antes da fundação do mundo” (Ef 1.4); e
de novo: “... que nos salvou, e nos chamou com santa vocação; não
segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça
que nos foi dada em Cristo Jesus antes dos tempos eternos, e
manifestada agora pelo aparecimento de nosso Salvador Cristo Jesus” (II
Tim 1.9-10).
Somos eleitos ou predestinados em Cristo. Portanto,
não foi sem medo, embora não por qualquer mérito nosso, mas em Cristo e
por causa de Cristo que Deus nos elegeu, para que aqueles que agora se
encontram enxertados em Cristo pela fé também sejam eleitos, mas sejam
rejeitados aqueles que estão fora de Cristo, segundo a palavra do
apóstolo: “Examinai-vos a vós mesmos se realmente estais na fé;
provai-vos a vós mesmos. Ou não reconheceis que Jesus Cristo está em
vós? Se não é que já estais reprovados” (II Co 13.5).
Somos
eleitos para um fim determinado. Finalmente, os santos são eleitos em
Cristo por Deus para um fim determinado, que o apóstolo esclarece,
quando diz: “Ele nos escolheu nele antes da fundação do mundo, para
sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou
para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo... para o
louvor da glória de sua graça” (Ef 1.4-6).
Devemos bem esperar
acerca de todos. E, embora Deus conheça os que são seus, e nalgum lugar
se faça menção do reduzido número dos eleitos, devemos, contudo, bem
esperar acerca de todos, e não julgar apressadamente nenhum homem como
rejeitado. São Paulo diz aos filipenses: “Dou graças ao meu Deus por
tudo que recordo de vós” (ora, ele fala de toda a Igreja dos
filipenses), “pela vossa cooperação no Evangelho... Estou plenamente
certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até o
dia de Cristo Jesus” (Fil 1.3-7).
Sobre se são poucos os eleitos.
E, quando perguntaram ao Senhor se eram poucos os que seriam salvos,
ele não respondeu que poucos ou muitos seriam salvos ou condenados, mas
antes exortou todo homem a “esforçar-se por entrar pela porta estreita”
(Luc 13.24). É como se dissesse: “Não vos compete inquirir com muita
curiosidade acerca dessas questões, mas antes esforçar-vos por entrar no
céu pelo caminho estreito”.
O que deve ser condenado nesse caso.
Por isso, não aprovamos as afirmações ímpias de alguns que dizem:
“Poucos são os eleitos, e, como eu não sei se estou no número desses
poucos, não me privarei dos prazeres”. Outros dizem: “Se sou
predestinado ou eleito por Deus, nada me impedirá da salvação, já
certamente determinada, seja o que for que eu fizer. Mas, se estou no
número dos rejeitados, nenhuma fé ou arrependimento poderá valer-me,
visto que a determinação de Deus não pode ser mudada. Portanto, todas as
doutrinas e advertências são inúteis”. Mas o ensino do apóstolo
contradiz estes homens: “O servo do Senhor deve ser apto para
instruir... disciplinando com mansidão os que se opõem, na expectativa
de que Deus lhes conceda não só o arrependimento ... livrando-se eles
dos laços do diabo, tendo sido feitos cativos por ele, para cumprirem a
sua vontade” (II Tm 2.24-26).
As admoestações não são inúteis
pelo facto de a salvação vir da eleição. Santo Agostinho também mostra
que devem ser pregadas tanto a graça da livre eleição e predestinação
como também as admoestações e doutrinas da salvação (De Bono
Perseverantiae , cap. 14 ss).
Se somos eleitos. Condenamos,
portanto, aqueles que, fora de Cristo, perguntam se são eleitos, e o que
sobre eles decretou Deus antes de toda a eternidade, pois deve ser
ouvida a pregação do Evangelho e deve-se crer nele, e deve-se ter como
fora de dúvida que, se alguém crê e está em Cristo, é eleito. Com
efeito, o Pai nos revelou em Cristo o eterno propósito da sua
predestinação, como ainda há pouco expus, pelo que diz o apóstolo, em II
Tim 1.9-10. Deve-se, pois, ensinar e antes de tudo considerar quão
grande amor do Pai para conosco nos foi revelado em Cristo. Devemos
ouvir o que o próprio Senhor diariamente nos prega no Evangelho, como
ele nos chama e diz: “Vinde a mim todos os que estais cansados e
sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mat 11.28); “Deus amou ao mundo de
tal maneira que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crê
não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3.16). E ainda: “Não é a
vontade de vosso Pai celeste que pereça um só destes pequeninos” (Mat
18.14).
Seja, pois, Cristo o espelho, no qual contemplemos a
nossa predestinação. Teremos um testemunho bastante claro e seguro de
que estamos inscritos no Livro da Vida, se tivermos comunhão com Cristo,
e se ele for nosso e nós dele em verdadeira fé.
Tentação sobre a
predestinação. Na tentação sobre a predestinação, que é, talvez, mais
perigosa do que qualquer outra, console-nos o facto de que as promessas
de Deus são universais para os fiéis, pois ele diz: “Pedi, e
dar-se-vos-á... Pois todo o que pede recebe” (Luc 11.9-10). É,
finalmente, o que pedimos com toda a Igreja de Deus: “Pai nosso que nos
céus” (Mat 6.9). Fomos enxertados no corpo de Cristo, pelo batismo, e da
sua carne e do seu sangue nos alimentamos freqüentemente em sua Igreja,
para a vida eterna. Fortalecidos por essas bênçãos, segundo o preceito
de São Paulo recebemos ordem de operar a nossa salvação com temor e
tremor.
11. De Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, único Salvador do mundo.
Cristo
é verdadeiro Deus. Além disso, ensinamos que o Filho de Deus, nosso
Senhor Jesus Cristo, foi, desde a eternidade, predestinado ou
pré-ordenado pelo Pai para ser o Salvador do Mundo. E cremos que ele
nasceu, não somente quando da Virgem Maria assumiu a carne, nem apenas
antes que se lançassem os fundamentos do mundo, mas antes de toda a
eternidade e certamente pelo Pai, de um modo inexprimível. Isaías diz:
“E da sua linhagem quem dela cogitou?” (cap. 53.8). E Miquéias diz “E
cujas origens são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade”
(Miq 5.2). Também São João disse no Evangelho: “No principio era o
Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”, etc. (cap. 1.1).
Portanto, quanto à sua divindade, o Filho é co-igual e consubstancial
com o Pai; verdadeiro Deus (Fil 2.11), não de nome ou por adoção ou por
qualquer dignidade, mas em substância e natureza, como disse o apóstolo
São João: “Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna” (I João 5.20). São
Paulo também diz: “A quem constituiu herdeiro de todas as cousas, pelo
qual também fez o universo. Ele, que é o resplendor da glória e a
expressão exata do seu ser, sustentando todas as cousas pela palavra do
seu poder” (Heb I.2 ss). E no Evangelho o Senhor mesmo também disse:
“Glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu tive junto de
ti, antes que houvesse mundo” (João 17.5). Em outro lugar do Evangelho
também está escrito: “Os judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque...
também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus”
(João 5.18).
As seitas. Abominamos, pois, a doutrina ímpia de
Ário e de todos os arianos contra o Filho de Deus, e especialmente as
blasfêmias do espanhol, Miguel Serveto, e de todos os servetanos, que
Satanás, por meio deles, retirou do inferno, por assim dizer, e vai
espalhando por todo o mundo, audaciosa e impiamente.
Cristo é
verdadeiro homem, tendo verdadeira carne. Cremos também e ensinamos que o
eterno Filho do eterno Deus se fez Filho do homem, da semente de Abraão
e David, não com concurso carnal do homem, como diz Ébion, mas
concebido do Espírito Santo com toda a pureza e nascido da sempre virgem
Maria, como a história evangélica cuidadosamente nos explica (Mat,
cap.1). E São Paulo diz: “Ele não assumiu a natureza de anjos, mas a da
semente de Abraão”. Também o apóstolo São João diz que todo aquele que
não crê que Jesus Cristo veio em carne não é de Deus. Portanto, a carne
de Cristo não era nem imaginária nem trazido do céu, como erradamente
sonhavam Valentino e Márcion.
Alma racional em Cristo. Além
disso, nosso Senhor Jesus Cristo não possuiu uma alma desprovida de
percepção e de razão, como pensava Apolinário, nem carne sem alma, como
ensinava Eudômio, mas alma com sua razão e carne com seus sentidos,
pelos quais por ocasião de sua paixão ele suportou dores reais, como ele
mesmo testifica quando diz: “A minha alma está profundamente triste até
à morte” (Mat 26.38); “Agora está angustiada a minha alma” (João
12.27).
Duas naturezas em Cristo. Reconhecemos, portanto, duas
naturezas ou substâncias, a divina e a humana, num e no mesmo Senhor
nosso Jesus Cristo (Heb, cap. 2). E dizemos que elas estão ligadas e
unidas uma com a outra de tal modo que não foram absorvidas, ou
confundidas, ou misturadas, mas unidas ou integradas numa pessoa - com
as propriedades das naturezas intactas e permanentes.
Não dois,
mas um só Cristo. Assim, não adoramos dois, mas um Cristo, o Senhor, um
verdadeiro Deus e verdadeiro homem, segundo a natureza divina,
consubstancial com o Pai, e segundo a natureza humana, consubstancial
com os homens e semelhante a nós em todas as coisas, excepto no pecado
(Heb 4.15).
As seitas. Certamente abominamos o dogma nestoriano,
que de um Cristo faz dois e dissolve a união da Pessoa. Semelhantemente,
execramos totalmente a loucura de Eutiques e dos monotelitas ou
monofisitas, que destrói a propriedade da natureza humana.
A
natureza divina de Cristo não sofreu e a humana não está em toda a
parte. Portanto, de modo nenhum ensinamos que a natureza divina em
Cristo sofreu, ou que Cristo em sua natureza humana ainda está neste
mundo e ainda em toda parte. Pois nem pensamos nem ensinamos que a
realidade do corpo de Cristo cessou depois de sua glorificação, ou que
foi deificado e deificado de tal modo que ele tenha deposto as suas
propriedades com respeito ao corpo e à alma, e estes se tenham mudado
inteiramente em uma natureza divina e passado a ser uma substância una.
As
seitas. Por isso, de maneira nenhuma aprovamos ou aceitamos as argúcias
sem argúcia, intrincadas e obscuras, de Schwenkfeldt e de semelhantes
dizedores de sutilezas, nem suas dissertações pouco consistentes sobre
essa questão, nem somos schwenkfeldianos.
Nosso Senhor
verdadeiramente sofreu. Cremos, além disso, que nosso Senhor Jesus
Cristo verdadeiramente sofreu e morreu por nós em carne, como diz São
Pedro (I Ped 4.1). Abominamos a impiíssima loucura dos jacobitas e de
todos os turcos, que blasfemam do sofrimento do Senhor. Ao mesmo tempo,
não negamos que o Senhor da glória foi crucificado por nós, segundo as
palavras de São Paulo (I Co 2.8).
Comunicação de propriedades de
linguagem. Aceitamos e aplicamos pia e respeitosamente a comunicação de
propriedades de linguagem derivada da Escritura e usada por toda a
antiguidade para explicar e reconciliar passagens aparentemente
contraditórias.
Cristo verdadeiramente ressuscitou dos mortos.
Cremos e ensinamos que o mesmo Jesus Cristo nosso Senhor, em sua
verdadeira carne na qual fora crucificado e morrera, ressuscitou dos
mortos, e que não foi outra carne que ressuscitou, mas a que foi
sepultada, nem foi o espírito que subiu ao alto em vez da carne, mas ele
reteve seu verdadeiro corpo. Portanto, ainda que os seus discípulos
pensassem ver o espírito do Senhor, ele lhes mostrou as mãos e os pés
marcados realmente com os sinais dos cravos e das feridas, e ajuntou:
“Vede as minhas mãos e os meus pés, que sou eu mesmo, apalpai-me e
verificam, porque um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que eu
tenho” (Luc 24-39).
Cristo verdadeiramente subiu ao céu. Cremos
que nosso Senhor Jesus Cristo, em sua própria carne, subiu acima de
todos os céus visíveis ao supremo céu, isto é, à habitação de Deus e dos
bem-aventurados, à destra de Deus o Pai. Embora isso signifique
participação igual em glória e majestade, considera-se, contudo, também
como um lugar definido, acerca do qual o Senhor, falando no Evangelho,
diz: “Vou preparar-vos lugar” (João 14.2). O apóstolo São Pedro também
diz: “Ao qual é necessário que o céu receba até aos tempos da
restauração de todas as cousas” (Act 3.21). E do céu o mesmo Cristo
retomará para o juízo, quando a impiedade no mundo estiver no seu máximo
e quando o Anticristo, tendo corrompido a verdadeira religião, tiver
envolvido todas as coisas com superstição e impiedade, e tiver
cruelmente assolado a Igreja com sangue e fogo (Dn, cap. 11). Mas Cristo
voltará para reclamar os seus, e pela sua vinda destruir o Anticristo e
julgar os vivos e os mortos (Act 17,31). s mortos ressuscitarão (I Tes
4.14 ss), e os que naquele dia (que é desconhecido de todas as criaturas
- Mc 13.32) estiverem vivos serão transformados “num abrir e fechar de
olhos”, e todos os fiéis serão arrebatados ao encontro de Cristo nos
ares, para assim entrarem com ele nas benditas mansões e viverem para
sempre (I Co 15.51 ss). Mas os incrédulos ou os ímpios descerão com os
demônios para o inferno a fim de arderem para sempre e nunca serem
libertados dos tormentos (Mat 25.46).
As seitas. Condenamos,
portanto, todos os que negam a ressurreição real da carne (II Tim 2.18),
ou que, com João de Jerusalém, contra quem escreveu São Jerônimo, não
pensem corretamente acerca dos corpos glorificados. Condenamos também os
que ensinam que os demônios e todos os ímpios serão um dia salvos, e
que haverá um fim dos castigos. O Senhor declarou com clareza: “Onde não
lhes morre o verme, nem o fogo se apaga” (Mc 9.44). Condenamos, além
disso, os sonhos judaicos de que haverá uma idade áurea na terra antes
do Dia do Juízo, e que os piedosos, tendo subjugado todos os seus
inimigos ímpios, entrarão na posse de todos os reinos do mundo. Pois a
verdade evangélica em Mat, caps. 24 e 25, e Lucas, cap. 18, e o ensino
apostólico em II Tes, cap. 2, e II Tim, caps. 3 e 4, apresentam coisa
inteiramente diversa.
O fruto da morte e ressurreição de Cristo.
Além do mais, pela sua paixão e morte e tudo o que, em sua carne e na
sua vinda, ele fez e suportou por nossa causa nosso Senhor reconciliou o
Pai celestial com todos os fiéis, expiou o pecado, desarmou a morte,
arruinou a condenação e o inferno, e, pela sua ressurreição dos mortos,
trouxe de novo e restituiu a vida e a imortalidade. Ele é a nossa
justiça, a nossa vida e ressurreição, em uma palavra, a plenitude e
perfeição de todos os fiéis, a salvação e a mais completa suficiência. O
apóstolo diz: “Aprouve a Deus que nele residisse toda a plenitude”, e
“Viestes à plenitude da vida nele” (Cl caps. l e 2).
Jesus Cristo
é o único Salvador do mundo, e o verdadeiro Messias esperado. Ensinamos
e cremos que este Jesus Cristo, nosso Senhor, é o único e eterno
Salvador do gênero humano, e também do mundo inteiro, em quem pela fé se
salvaram todos os que antes da Lei, sob a Lei e sob o Evangelho foram
salvos, e em quem se salvarão todos os que ainda vierem a salvar-se até o
fim do mundo. É o próprio Senhor quem diz no Evangelho: “O que não
entra pela porta no aprisco das ovelhas, mas sobe por outra parte, esse é
ladrão e salteador ... Eu sou a porta das ovelhas” (João 10.1 e 7). E
também em outro lugar, no mesmo Evangelho: “Abraão... viu o meu dia e
regozijou-se” (cap. 8.56). O apóstolo São Pedro também diz: “Não há
salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro
nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos”.
Cremos, portanto, que seremos salvos mediante a graça de nosso Senhor
Jesus Cristo, como nossos pais o foram (Act 4.12; 10.43; 15.1 1). São
Paulo também diz: “Todos eles comeram de um só manjar espiritual, e
beberam da mesma fonte espiritual; porque bebiam de uma pedra espiritual
que os seguia. E a pedra era Cristo” (I Co 10.3 ss). E assim lemos o
que João diz: Cristo era o “Cordeiro que foi morto, desde a fundação do
mundo” (Apoc 13.8), e João Baptista testificou que Cristo é “o Cordeiro
de Deus, que tira o pecado do mundo” (João 1.29). Eis por que
professamos e pregamos, com toda a clareza, que Jesus Cristo é o único
Redentor e Salvador do mundo, o Rei e o Sumo - Sacerdote, o verdadeiro
Messias esperado, aquele santo e bendito que todos os tipos da lei e
todos os vaticínios dos profetas prefiguraram e prometeram; e que Deus o
designou anteriormente e no-lo enviou, de modo que não devemos esperar
nenhum outro. Nem nos resta agora outra coisa que darmos a Cristo toda a
glória, nele crermos, somente nele descansarmos, desprezando e
rejeitando todas as demais ajudas na vida. Com efeito, decaíram da graça
e tornam Cristo vão para si todos os que buscam a salvação em qualquer
outra coisa que não somente em Cristo (Gal 5.4).
Os credos
recebidos de quatro concílios. E, para dizer muito em poucas palavras,
cremos de todo o coração, e livremente confessamos à viva voz, tudo o
que foi definido com fundamento nas Escrituras Sagradas a respeito do
mistério da Encarnação de nosso Senhor Jesus Cristo, compreendido nos
Credos e decretos dos quatro primeiros venerandos sínodos reunidos em
Niceia, Constantinopla, Éfeso e Calcedônia - juntamente com o Credo do
bem-aventurado Atanásio, e todos os credos similares; e condenamos tudo o
que for contrário a eles.
As seitas. E dessa maneira mantemos
inviolada ou intacta a fé cristã, ortodoxa e católica, sabendo que nada
se contêm nos credos atrás citados que não seja conforme com a Palavra
de Deus, e que não contribua, ao mesmo tempo, para uma exposição pura da
fé.
12. Da lei de Deus.
A vontade de Deus nos é exposta
na lei de Deus. Ensinamos que a vontade de Deus nos é exposta na Lei de
Deus: o que ele quer ou não quer que façamos, o que é bom e justo, ou o
que é mau e injusto. Portanto, confessamos que a Lei é boa e santa.
A
lei natural. Esta lei foi escrita nos corações dos homens pelo dedo de
Deus (Rom 2.15), e é chamada a lei natural; foi também esculpida pelo
dedo de Deus nas duas tábuas de Moisés e mais pormenorizadamente exposta
nos livros de Moisés (Êx 20.1 ss; Deut 5.6 ss). Para maior clareza,
distinguimos: a lei moral contida no Decálogo ou nas duas Tábuas e
expostas nos livros de Moisés; a lei cerimonial, que determina as
cerimônias e o culto de Deus; e a lei judiciária, que versa questões
políticas e domésticas.
A lei é completa e perfeita. Cremos que
toda a vontade de Deus e todos os preceitos necessários a cada esfera da
vida são nesta lei ensinados com toda a plenitude. De outro modo o
Senhor não nos teria proibido de adicionar-lhe ou de subtrair-lhe
qualquer coisa; nem nos teria mandado andar num caminho reto diante
desta Lei, sem dela nos declinarmos para a direita ou para a esquerda
(Deut 4.2; 12.32, 5.32, cf. Num 20-17 e Deut 2.27).
Porque foi
dada a lei. Ensinamos que esta Lei não foi dada aos homens para que
fôssemos justificados pela sua observância, mas antes para que, pelo seu
ensino, conhecêssemos nossa fraqueza, nosso pecado e condenação e,
perdendo a confiança em nossas forças, nos convertêssemos a Cristo pela
fé. O apóstolo diz claramente: “A Lei suscita a ira”; “pela Lei vem o
pleno conhecimento do pecado” (Rom 4.15; 3.20); “porque, se fosse
promulgada uma Lei que pudesse dar vida, a justiça, na verdade seria
procedente da Lei; mas a Escritura encerrou tudo sob o pecado, para que
mediante a fé em Jesus Cristo fosse a promessa concedida aos que
crêem... De maneira que a Lei nos serviu de aio para nos conduzir a
Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé” (Gal 3.21 ss).
A
carne não cumpre a lei. Ninguém poderia ou pode satisfazer a Lei de
Deus ou cumpri-la, por causa de fraqueza da nossa carne que adere e
permanece em nós até nosso último suspiro. Outra vez diz o apóstolo: “O
que fora impossível à Lei, no que estava enferma pela carne, isso fez
Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa e no
tocante ao pecado” (Rom 8.3). Portanto, Cristo é o aperfeiçoador da Lei
e o nosso cumprimento dela (Rom 10.4), o qual, com o fim de remover a
maldição da Lei, foi feito maldição por nós (Gal 3.13). Assim, ele nos
comunica, pela fé, o seu cumprimento da Lei, e a sua justiça e
obediência nos são imputadas.
Até que ponto foi a lei ab-rogada. A
Lei de Deus é, pois, ab-rogada na medida em que ela não mais nos
condena, nem opera ira em nós. Estamos debaixo da graça e não debaixo da
Lei. Além disso, Cristo cumpriu todas as formas da Lei. Daí, vindo o
corpo, cessaram as sombras, de modo que agora em Cristo temos a verdade e
toda a plenitude. Contudo, de modo nenhum rejeitamos por isso a Lei.
Lembramo-nos das palavras do Senhor, que disse: “Não vim para revogar,
vim para cumprir” (Mat 5.17). Sabemos que na Lei nos são ensinados os
padrões de virtudes e vícios. Sabemos que a Lei escrita, quando
explicado pelo Evangelho, é útil à Igreja, e que, portanto, sua leitura
não deve ser excluída da Igreja. E, embora a face de Moisés estivesse
recoberta com um véu, no entanto o apóstolo diz que o véu foi retirado e
abolido por Cristo.
As seitas. Condenamos tudo o que os heréticos, antigos e modernos, ensinaram contra a Lei.
13. Do Evangelho de Jesus Cristo, das promessas, do espírito e da letra.
Os
antigos tiveram promessas evangélicas. O Evangelho opõe-se à Lei. A Lei
opera a ira e anuncia a maldição, enquanto o Evangelho prega a graça e a
bênção. São João diz: “Porque a Lei foi dada por intermédio de Moisés; a
graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (João 1.17). Não
obstante, é perfeitamente certo que aqueles que viveram antes da Lei e
sob a Lei não estavam totalmente destituídos do Evangelho. Tinham
insignes promessas evangélicas, tais como estas: “A semente da mulher te
ferirá a cabeça” (Gen 3.15). “Nela serão benditas todas as nações da
terra” (Gen 22.18). “O cetro não se arredará de Judá ... até que venha
Silo” (Gen 49.10). “O Senhor teu Deus te suscitará um profeta do meio de
ti, de teus irmãos” (Deut 18.15; At 3.22) etc.
Promessas
dúplices. Reconhecemos que duas espécies de promessas foram reveladas
aos antigos, como também a nós. Algumas eram de coisas presentes ou
terrenas, tais como as promessas da Terra de Canaã e de vitórias, e
como, ainda hoje, as promessas do pão quotidiano. Outras eram naquela
ocasião, e são ainda agora, de coisas celestiais e eternas, como a graça
divina, a remissão de pecados, a vida eterna por meio da fé em Jesus
Cristo.
Os patriarcas tiveram promessas não só carnais, mas
também espirituais. Os antigos não tiveram, em Cristo, apenas promessas
externas ou terrenas, mas também espirituais e celestiais. São Pedro
diz: “Foi a respeito desta salvação que os profetas indagaram e
inquiriram, os quais profetizaram acerca da graça a vós outros
destinada” (I Pe 1.10). Donde também o apóstolo São Paulo diz: “O
Evangelho de Deus... foi... outrora prometido por intermédio dos seus
profetas nas Sagradas Escrituras” (Rom 1.2). Por isso é bem claro que os
antigos não foram inteiramente destituídos de todo o Evangelho.
Que
é propriamente o Evangelho? E, embora nossos pais tivessem dessa
maneira, nos escritos dos profetas, o Evangelho, pelo qual alcançaram a
salvação em Cristo pela fé, contudo, o que se chama propriamente
“Evangelho” são as notícias alegres e felizes pelas quais, primeiro por
João Baptista, depois por Cristo, o Senhor, e depois pelos apóstolos e
seus sucessores, se anunciou aos homens que Deus já realizou o que ele
prometera, desde o princípio do mundo, e nos mandou, ou melhor nos deu o
seu único Filho e nele a reconciliação com o Pai, a remissão dos
pecados, toda a plenitude e a vida eterna. Portanto, a história
apresentada pelos quatro evangelistas, explicando como isso foi
realizado ou cumprido por Cristo, o que Cristo ensinou e praticou, e que
aqueles que crêem nele têm toda a plenitude, e exatamente o que se
chama “Evangelho”. A Pregação e os escritos apostólicos, nos quais os
apóstolos nos expõem como o Filho nos foi dado pelo Pai, e nele tudo o
que diz respeito à vida e à salvação, são também o que se chama
corretamente “doutrina evangélica”, de modo que ainda hoje, se
sinceramente pregada, não perde o direito a tão preclara designação.
Do
espírito e da letra. Essa mesma pregação do Evangelho é também chamada
pelo apóstolo “o espírito” e “o ministério do espírito”, porque pela fé
ela se torna eficaz e viva nos ouvidos, ou melhor, nos corações dos
crentes iluminados pelo Espírito Santo (II Co 3.6). A letra, que se opõe
ao Espírito, significa tudo o que é externo, mas especialmente a
doutrina da Lei, que, sem o Espírito e a fé, produz ira e excita o
pecado nas mentes daqueles que não têm uma fé viva. Por isso o apóstolo
chama a isso "o ministério da morte". Aqui é pertinente a palavra do
apóstolo: “A letra mata, mas o Espírito vivifica”. Falsos apóstolos
também pregavam um Evangelho corrompido, misturando-lhe a Lei, como se
sem a Lei Cristo não pudesse salvar.
As seitas. Assim, afirmavam
os ebionitas, descendentes espirituais do herege Ébion, e os nazaritas,
que anteriormente eram chamados mineus. A todos estes nós condenamos, e
pregamos ao mesmo tempo o puro Evangelho, ensinando que os crentes são
justificados só pelo Espírito, e não pela Lei. Uma exposição mais
detalhada deste assunto virá sob o título de “justificação”.
O
ensino do Evangelho não é novo, mas muito antigo. Embora o ensino do
Evangelho, comparado com o dos fariseus sobre a Lei, tenha parecido ser
uma nova doutrina quando pregado por Cristo a primeira vez, o que também
Jeremias profetizou a respeito do Novo Testamento, contudo, ele, na
realidade não só era como ainda é, uma velha doutrina (que hoje ela é
chamada nova pelos papistas, quando comparada com a doutrina agora
recebida entre eles), mas na verdade é a mais antiga de todas no mundo.
Com efeito Deus predestinou desde a eternidade salvar o mundo por
Cristo, e manifestou ao mundo, através do Evangelho, esta sua
predestinação e o seu conselho eterno (II Tim 2.9 ss). Disso é evidente
que a religião e a doutrina evangélica, entre quantas já existiram,
existem e virão a existir, é a mais antiga de todas. Por isso, afirmamos
que todos os que dizem que a religião e a doutrina evangélica é uma fé
surgida recentemente, e que não tem mais que trinta anos de existência,
erram vergonhosamente e falam coisas indignas do conselho eterno de
Deus. A eles se aplica a palavra de Isaías, o profeta: “Ai dos que ao
mal chamam bem, que fazem da escuridade luz, e da luz escuridade; põem o
amargo por doce, e o doce por amargo!” (Is 5.20).
14. Do arrependimento e da conversão do homem.
A
doutrina do arrependimento está ligada ao Evangelho. Pois assim diz o
Senhor no Evangelho: “Que em seu nome se pregasse arrependimento para
remissão de pecados a todas as nações” (Luc 24.47).
Que é
arrependimento? Por arrependimento entendemos uma volta atrás da mente
no pecador provocado pela Palavra do Evangelho e pelo Espírito Santo, e
recebida pela verdadeira fé, com o que o pecador imediatamente reconhece
a sua corrupção inata e todos os seus pecados denunciados pela Palavra
de Deus; e entristece-se por eles em seu coração, e não apenas os
lamenta e francamente confessa diante de Deus com um sentimento de
vergonha, mas também com indignação os abomina; cuidando agora
zelosamente de emendar-se, num esforço constante em busca da inocência e
da virtude, no qual esforço se exercita santamente em todo o resto de
sua vida.
O arrependimento é verdadeira conversão a Deus. E este é
o verdadeiro arrependimento, uma sincera volta para Deus e para todo o
bem, e uma profunda aversão ao Diabo e a todo o mal.
O
arrependimento é dom de Deus. Dizemos expressamente que este
arrependimento é puro dom de Deus e não uma realização de nossas forças.
O apóstolo ordena a um fiel ministro que diligentemente instrua aqueles
que se opõem à verdade, “na expectativa de que Deus lhes conceda o
arrependimento para conhecerem plenamente a verdade” (II Tim 2.25).
Lamenta os pecados cometidos. Aquela mulher que lavou os pés do Senhor
com suas lágrimas, e São Pedro, que chorou amargamente e lamentou ter
negado o Senhor (Luc 7.38; 22.62) mostram claramente como deve ser o
espírito de um homem arrependido, lamentando seriamente os pecados que
cometeu. Confessa os pecados a Deus. E o filho pródigo e o publicano no
Evangelho, quando comparados com o fariseu, apresentam-nos as fórmulas
mais adequadas de confessar os nossos pecados a Deus. O primeiro disse:
“Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser
chamado teu filho; trata-me como um dos teus trabalhadores” (Luc 15.18
ss). E o segundo, não ousando erguer os olhos ao céu, bate no peito,
dizendo: “Ó Deus, sê propício a mim, pecador!” (cap. 18.13). E não temos
duvida de que foram aceitos em graça por Deus, pois o apóstolo São João
diz: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos
perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça. Se dissermos que
não temos cometido pecado, fazemo-lo mentiroso e a sua palavra não está
em nós” (I João 1.9 ss).
Confissão e absolvição sacerdotais.
Cremos que é suficiente esta sincera confissão feita só a Deus, ou
particularmente entre Deus e o pecador, ou publicamente na Igreja quando
se faz a confissão geral de pecados, e que para se obter perdão de
pecados não é necessário ninguém confessar seus pecados a um sacerdote,
sussurrando-lhe aos ouvidos, para dele ouvir em troca a absolvição, com a
imposição das mãos, porque não existe nenhum mandamento nem exemplo
disso Santas Escrituras. David testifica e diz: “Confessei-te o meu
pecado e a minha iniqüidade não mais ocultei. Disse: Confessarei ao
Senhor as minhas transgressões; e tu perdoaste a iniqüidade do meu
pecado” (Sal 32.5). E o Senhor, ao ensinar-nos a orar e ao mesmo tempo a
confessar nossos pecados, disse: “Pai nosso que estás nos céus...
perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos
devedores” (Mat 6.9 e 12). Portanto, é necessário que confessemos nossos
pecados a Deus, nosso Pai, e nos reconciliemos com nosso próximo, se o
ofendemos. Quanto a esse tipo de confissão, o apóstolo São Tiago diz:
"Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros” (Tiag 5.16). Se,
contudo, alguém se acha acabrunhado pelo peso de seus pecados e por
tentações que o põem perplexo, e procurar conselho, instrução e conforto
individualmente, ou de um ministro da Igreja, ou de um outro irmão
instruído na Lei de Deus, não desaprovamos. Por outro lado, aprovamos
plenamente a confissão de pecados geral e pública, que usualmente se
realiza na Igreja e em reuniões de culto, como notamos acima, tanto mais
que isso está de acordo com a Escritura.
Das chaves do Reino do
Céu. Quanto às chaves do Reino de Deus, que o Senhor entregou aos
apóstolos, muitos tagarelam inúmeras coisas espantosas, e com elas
forjam espadas, lanças, cetros e coroas, e pleno poder sobre os maiores
reinos, e, afinal, sobre almas e corpos. Julgando de modo singelo,
segundo a Palavra do Senhor, dizemos que todos os que são legitimamente
chamados ministros possuem e exercem as chaves, ou o uso das chaves,
quando anunciam o Evangelho; isto é, quando ensinam, exortam, confortam,
repreendem e exercem a disciplina sobre o povo confiado aos seus
cuidados.
Abrir e fechar (o Reino). Desse modo abrem o Reino dos
Céus aos obedientes e o fecham aos desobedientes. O Senhor prometeu
essas chaves aos apóstolos em Mat, cap.16, e as deu em João, cap. 20,
Marcos, cap. 16 e Lucas, cap.24, quando enviou seus discípulos e os
mandou pregar o Evangelho a todo o mundo, e perdoar pecados.
O
ministério da reconciliação. Na carta aos Coríntios diz o apóstolo que o
Senhor deu o ministério da reconciliação aos seus ministros (II Co 5.18
ss). E ele explica qual é ele, dizendo que é a pregação ou o ensino da
reconciliação. E, tornando suas palavras ainda mais claras, acrescenta
que os ministros de Cristo desempenham o ofício de embaixadores em nome
de Cristo, como se Deus mesmo por meio deles exortasse o povo a se
reconciliar com Deus, sem dúvida nenhuma pela fiel obediência. Portanto,
exercem o poder das chaves quando persuadem os homens à fé e ao
arrependimento. Assim, reconciliam os homens com Deus.
Os
ministérios proclamam a remissão de pecados. Assim, eles perdoam
pecados. Abrem, assim, o Reino dos Céus e nele introduzem os crentes:
mui diferentemente daqueles de quem o Senhor fala no Evangelho: “Ai de
vós, intérpretes da lei! porque tomastes a chave da ciência; contudo,
vós mesmos não entrastes e impedistes os que estavam entrando” (Luc
11.52).
Como os ministros absolvem. Os ministros, portanto,
absolvem correta e eficazmente quando pregam o Evangelho de Cristo e
nele a remissão de pecados, que é prometida a todo aquele que crê, assim
como cada um é batizado, e quando testificam que ela pertence a cada um
particularmente. E não julgamos que esta absolvição se torne mais
eficaz por ser murmurada no ouvido de alguém ou individualmente sobre a
cabeça de alguém. Pensamos, contudo, que a remissão de pecados pelo
sangue de Cristo deve ser diligentemente anunciada, e que cada um deve
ser avisado de que o perdão de pecados lhe pertence.
Diligência
na renovação da vida. Ademais os exemplos do Evangelho ensinam-nos quão
vigilantes e diligentes devem ser os arrependidos no esforço de
renovação de vida e na mortificação do homem velho e despertamento do
homem novo. O Senhor disse ao paralítico que ele curara: “Olha que já
estás curado; não peques mais, para que não te suceda cousa pior” (João
5.14). De igual modo, disse à adúltera a quem libertou: “Vai, e não
peques mais” (cap. 8.11). Sem dúvida, por estas palavras ele não quis
dizer que o homem, alguma vez, enquanto ainda vive nesta carne, não
peque; mas recomenda vigilância cuidadosa e diligência para que nos
esforcemos de todos os modos e supliquemos a Deus em nossas orações para
não cairmos nos pecados dos quais como que ressuscitamos, e para não
sermos vencidos pela carne, pelo mundo e pelo Diabo. Zaqueu, o
publicano, recebido pelo Senhor em graça, exclama no Evangelho: “Senhor,
resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma cousa
tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais” (Luc 19.8).
Portanto, do mesmo modo pregamos que restituição e misericórdia, e, até,
esmolas, são necessárias para aqueles que verdadeiramente se
arrependem, e exortamos todos os homens em toda parte com as palavras do
apóstolo: “Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, de
maneira que obedeçais às suas paixões; nem ofereçais cada um os membros
do seu corpo ao pecado como instrumentos de iniqüidade; mas oferecei-vos
a Deus como ressurrectos dentre os mortos, e os vossos membros a Deus
como instrumentos de justiça” (Rom 6.12 ss).
Erros. Por isso,
condenamos todas as afirmações ímpias de alguns que fazem mau uso da
pregação do Evangelho e dizem: “É fácil retornar a Deus; Cristo expiou
todos os pecados: é fácil o perdão dos pecados; portanto, que mal há em
pecar? Nem precisamos estar muito preocupados acerca do arrependimento,
etc.” Não obstante, ensinamos sempre que o acesso a Deus está aberto a
todos os pecadores, e que ele perdoa todos os pecados a todos os que
crêem, exceto o pecado contra o Espírito Santo (Mc 3.29).
As seitas. Eis por que condenamos os antigos e modernos novacianos e os cataristas.
Indulgências
papais. Condenamos, de modo especial, a doutrina lucrativa do Papa
sobre a penitência, e contra a sua simonia e as suas indulgências
simoníacas usamos o julgamento de São Pedro com respeito a Simão: “O teu
dinheiro seja contigo para perdição, pois julgaste adquirir por meio
dele o dom de Deus. Não tens parte nem sorte neste ministério, porque o
teu coração não é reto diante de Deus” (At 8.20 ss).
Satisfações.
Não aprovamos também aqueles que pensam que, pelas suas satisfações,
reparam os pecados cometidos. Ensinamos que só Cristo, pela sua morte ou
paixão, é a satisfação, a propiciação ou a expiação de todos os pecados
(Is. cap. 53; I Co 1.30). Contudo, como já dissemos, não cessamos de
insistir na mortificação da carne. Mas acrescentamos que essa
mortificação não deve ser orgulhosamente exaltada perante Deus como
satisfação pelos pecados, mas deve ser realizada humildemente, de
conformidade com a natureza dos filhos de Deus, como uma nova obediência
resultante da gratidão pelo livramento e pela satisfação plena obtidos
pela morte e satisfação do Filho de Deus.
15. Da verdadeira justificação dos fiéis.
Que
é justificação? Segundo o apóstolo no seu tratamento da justificação,
justificar significa “perdoar pecados”, “absolver de culpa e castigo”,
“receber em graça” e “declarar justo”. Em sua Epístola aos Romanos o
apóstolo diz: “É Deus quem os justifica. Quem os condenará?” (Rom 8.33).
Justificar e condenar são termos opostos. E nos Atos dos Apóstolos o
apóstolo diz: “Tomai, pois, irmãos, conhecimento de que se vos anuncia
remissão de pecados por intermédio deste; e por meio dele todo o que crê
é justificado de todas as cousas das quais vós não pudestes ser
justificados pela lei de Moisés” (At 13.38 ss). Na Lei, assim como nos
Profetas, lemos: “Em havendo contenda entre alguns, e vierem a juízo, os
juizes os julgarão, justificando ao justo e condenando ao culpado”
(Deut 25.1). E em Is. cap. 5: “Ai dos que... por suborno justificam o
perverso”.
Somos justificados por causa de Cristo. É
absolutamente certo que todos nós somos por natureza pecadores e ímpios,
e diante do tribunal de Deus somos acusados de impiedade e réus de
morte, mas, só pela graça de Cristo, sem qualquer mérito nosso ou
consideração por nós, somos justificados, isto é, absolvidos dos pecados
e da morte por Deus, o juiz. Que é, com efeito, mais claro do que o que
disse São Paulo? “Pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo
justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há
em Cristo Jesus” (Rom 3.23 ss).
A justiça imputada. Cristo tomou
sobre si mesmo e carregou os pecados do mundo, e satisfez a justiça
divina. Portanto, é só por causa dos sofrimentos e ressurreição de
Cristo que Deus é propício para com nossos pecados e não no-los imputa,
mas imputa-nos como nossa a justiça de Cristo (II Co 5.19 ss; Rom 4.25),
de modo que agora não só estamos limpos e purificados de pecados ou
somos santos, mas também, sendo-nos dada a justiça de Cristo, e sendo
nós assim absolvidos do pecado, da morte ou da condenação, somos
finalmente justos e herdeiros da vida eterna. Propriamente falando,
portanto, só Deus justifica, e justifica somente por causa de Cristo,
não nos imputando os pecados, mas a sua justiça.
Somos
justificados somente pela fé. E porque recebemos esta justificação, não
por quaisquer obras, mas pela fé na misericórdia de Deus e em Cristo,
por isso ensinamos e cremos, com o apóstolo, que o pecador é justificado
somente pela fé em Cristo e não pela lei ou por quaisquer obras. O
apóstolo diz: “Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé,
independentemente das obras da lei” (Rom 3.28). Também: “Porque se
Abraão foi justificado por obras, tem de que se gloriar, porém não
diante de Deus. Pois, que diz a Escritura? Abraão creu em Deus, e isso
lhe foi imputado para justiça... Mas ao que não trabalha, porém crê
naquele que justifica ao ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça”
(Rom 4.2 ss; Gén 15.6). E outra vez: “Porque pela graça sois salvos,
mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não de obras, para
que ninguém se glorie”, etc. (Ef 2.8 ss). Portanto, porque a fé recebe
Cristo, nossa justiça, e atribui tudo à graça de Deus em Cristo, por
isso a justificação é atribuída à fé, principalmente por causa de
Cristo, e não porque ela seja obra nossa, visto que é dom de Deus.
Recebemos
Cristo pela fé. Além disso, o Senhor mostra sobejamente que recebemos
Cristo pela fé, em João, cap. 6, onde ele usa comer por crer, e crer por
comer. Pois, como é comendo que recebemos o alimento, assim é crendo
que participamos de Cristo. A justificação não é atribuída parcialmente a
Cristo ou à fé, e parcialmente a nós. Por conseguinte, não
compartilhamos do benefício da justificação em parte por causa da graça
de Deus ou de Cristo, e em parte por causa de nós mesmos, de nosso amor,
de nossas obras ou de nosso mérito, mas atribuímo-lo totalmente à graça
de Deus em Cristo pela fé. Mas também nosso amor e nossas obras não
poderiam agradar a Deus, sendo realizados por homens injustos: por isso,
é necessário que sejamos justos antes que possamos amar ou praticar
obras justas. Somos feitos verdadeiramente justos, como dissemos, pela
fé em Cristo, só pela graça de Deus, que não nos imputa os nossos
pecados, mas a justiça de Cristo, e por isso, ele nos imputa a fé em
Cristo como justiça. Ademais, o apóstolo mui claramente deriva da fé o
amor, quando diz: “Ora, o intuito da presente admoestação visa o amor
que procede de coração puro e de consciência boa e de fé sem hipocrisia”
(I Tim 1.5).
Tiago comparado com Paulo. Por isso, aqui falamos,
não de uma fé imaginária, vã e inerte ou morta, mas de uma fé viva e
vivificante, a qual, por apreender a Cristo, que é vida e vivifica, é
viva e se chama “viva” e se mostra viva por obras vivas. E assim São
Tiago não contradiz coisa alguma nesta nossa doutrina. É que ele fala de
uma fé vã e morta, da qual alguns se vangloriavam, mas que não tinham
Cristo vivendo neles pela fé (Tiago 2.14 ss). São Tiago disse que as
obras justificam, contudo sem contradizer o apóstolo (do contrário ele
teria de ser rejeitado), mas mostrando que Abraão provou sua fé viva e
justificadora pelas obras. É isso o que fazem todos os piedosos,
confiados, porém, só em Cristo e não em suas próprias obras. O apóstolo
ainda diz: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse
viver que agora tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me
amou e a si mesmo se entregou por mim. Não anulo a graça de Deus; pois,
se a justiça é mediante a lei, segue-se que morre Cristo em vão”, etc.
(Gal 2.20).
16. Da fé e das boas obras, e da sua recompensa, e do mérito do homem.
Que
é a fé? A fé cristã não é opinião e convicção humana, mas confiança
extremamente firme, e o claro e inabalável assentimento do espírito, e
finalmente a apreensão certíssima da verdade de Deus apresentadas nas
Escrituras e no Credo dos Apóstolos, assim como apreensão do próprio
Deus, o supremo bem, e especialmente da promessa de Deus e de Cristo,
que é o cumprimento de todas as promessas.
A fé é dom de Deus.
Mas esta fé é simplesmente um dom de Deus, que só ele pela sua graça,
segundo a sua medida, concede aos seus eleitos quando, a quem e quanto
ele quer. E ele realiza isso pelo Espírito Santo, pela pregação do
Evangelho e pela oração fiel.
O aumento da fé. Essa fé pode
também ser aumentada por Deus; se assim não fosse, o apóstolo não teria
dito: “Senhor: aumenta-nos a fé” (Luc 17.5). Tudo o que até aqui temos
dito com respeito à fé, os apóstolos ensinaram antes de nós. São Paulo
disse: “Ora, a fé é hypostasis ou a certeza das cousas que se esperam, a
elegchos , isto é, a convicção dos fatos que se não vêem” (Heb 11.1). E
noutro passo ele diz que todas as promessas de Deus são sim por Cristo,
e pelo mesmo Cristo são amém (II Co 1.20). E aos filipenses ele disse
que a eles lhes foi dado crer em Cristo (Fil 1.29). Noutro passo: Deus
concedeu a cada um a medida da fé (Rom 12.3). Noutro ainda: “Nem todos
têm fé” e, “Nem todos obedecem ao Evangelho” (II Tes 3.2; Rom 10.16).
Também Lucas atesta, dizendo: “Creram todos os que haviam sido
destinados para a vida eterna” (At 13.48). Eis porque São Paulo também a
chama “a fé dos eleitos de Deus” (Tit I.1 ), e outra vez: “A fé vem
pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo” (Rom 10.17). Em
outras partes, com freqüência, manda que os homens orem pedindo fé.
Fé
eficaz e ativa. O mesmo apóstolo chama a fé “eficaz” e “que atua pelo
amor” (Gal 5.6). Ela também acalma a consciência e abre um livre acesso
para Deus, de modo que podemos aproximar-nos dele com confiança e dele
conseguir o que é útil e necessário. A mesma (fé) conserva-nos no
serviço que devemos a Deus e ao próximo, fortalece-nos a paciência na
adversidade, molda uma verdadeira confissão e manifesta-a: numa palavra,
produz bons frutos de todas as espécies, e boas obras.
Das boas
obras. Ensinamos que as verdadeiras boas obras nascem de uma fé viva,
pelo Espírito Santo, e são praticadas pelos fiéis segundo a vontade ou a
regra da Palavra de Deus. Ora, o apóstolo São Pedro diz: “Reunindo a
vossa diligência, associai com a vossa fé a virtude; com a virtude, o
conhecimento; com o conhecimento, o domínio próprio”, etc. (II Ped 1.5
ss). Dissemos acima que a Lei de Deus, que é sua vontade, estabelece
para nós o padrão de boas obras. E o apóstolo diz: “Pois esta é a
vontade de Deus, a vossa santificação: que vos abstenhais da
prostituição... e que, nesta matéria, ninguém ofenda nem defraude a seu
irmão” (I Tes 4.3 ss).
Obras de escolha humana. E na verdade,
obras e cultos que escolhemos por nosso arbítrio não são agradáveis a
Deus. A estes São Paulo denomina ethelothreskia (CI 2.23). Desses o
Senhor diz no Evangelho: “Em vão me adoram, ensinando doutrinas que são
preceitos de homens” (Mat 15.9). Portanto, desaprovamos tais obras, mas
aprovamos e estimulamos aquelas que são da vontade e de mandado de Deus.
O
fim das boas obras. Essas mesmas obras não devem ser praticadas para,
por meio delas, ganharmos a vida eterna pois, como diz o apóstolo, a
vida eterna é dom de Deus. Nem devem ser elas praticadas por ostentação,
o que o Senhor rejeita em Mat, cap. 6, nem para lucro, o que também ele
rejeita em Mat, cap. 23, mas para a glória de Deus, para adornar a
nossa vocação, para manifestar gratidão a Deus e para benefício do
próximo. É assim que Nosso Senhor diz no Evangelho: “Assim brilhe também
a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e
glorifiquem a vosso Pai que está nos céus” (Mat S.16). E o apóstolo São
Paulo diz: “Que andeis de modo digno da vocação a que fostes chamados”
(Ef 4.1). Ainda: “E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em acção,
fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai” (Col
3.17); “Não tenha cada um em vista o que é propriamente seu, senão
também cada qual o que é dos outros” (Fil 2.4); “Que aprendam também a
distinguir-se nas boas obras, a favor dos necessitados, para não se
tornarem infrutíferos” (Tit 3.14).
As boas obras não são
rejeitadas. Portanto, embora ensinemos com o apóstolo que o homem é
justificado pela graça pela fé em Cristo e não por quaisquer boas obras,
contudo não menosprezamos nem condenamos as boas obras. Sabemos que o
homem não foi criado ou regenerado pela fé, para viver ocioso, mas antes
para fazer sem cessar o que é bom e útil. No Evangelho o Senhor diz que
uma árvore boa produz bom fruto (Mat 12.33), e que aquele que nele
permanece produz muito fruto (João 15.5). O apóstolo diz: “Pois somos
feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de
antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10). E ainda: “O qual a
si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniqüidade, e
purificar para si mesmo um povo exclusivamente seu, zeloso de boas
obras” (Tit 2.14). Condenamos, portanto, todos os que desprezam as boas
obras e vivem a dizer que não precisamos dar atenção a elas e que elas
são inúteis.
Não somos salvos pelas boas obras. Entretanto, como
foi dito acima, não julgamos que somos salvos pelas boas obras nem que
elas sejam necessárias para a salvação, de modo que sem elas ninguém já
tenha sido salvo. Pois somos salvos somente pela graça e pelo favor de
Cristo. As obras procedem, necessariamente, da fé. A salvação é
impropriamente atribuída a elas; ao passo que é com absoluta propriedade
que ela é atribuída à graça. É bem conhecida a declaração do apóstolo:
“E se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é
graça” (Rom 11.6).
As boas obras agradam a Deus. As obras que
praticamos pela fé são agradáveis a Deus e são por ele aprovadas. Por
causa da fé em Cristo, aqueles que praticam boas obras, que sobretudo
pelo Espírito Santo são praticadas pela graça de Deus, são agradáveis a
Deus. São Pedro diz: “Em qualquer nação, aquele que teme e faz o que é
justo lhe é aceitável” (At 10.35). E São Paulo diz: “Não cessamos de
orar por vós... a fim de viverdes de modo digno do Senhor, para o seu
inteiro agrado, frutificando em toda boa obra” (Col 1.9 ss).
Ensinamos
as verdadeiras virtudes, não as falsas e filosóficas. Assim,
zelosamente ensinamos as verdadeiras virtudes, não as falsas ou
filosóficas, as verdadeiramente boas obras e os genuínos serviços de um
cristão. E tanto quanto podemos, diligente e insistentemente as
inculcamos a todos os homens, censurando ao mesmo tempo a desídia e
hipocrisia dos que com os lábios louvam e professam o Evangelho e o
desonram pelas suas vidas ignominiosas. Nesta questão, pomos diante
deles as terríveis ameaças de Deus, bem como as suas ricas promessas e
generosas recompensas - exortando, consolando e repreendendo.
Deus
recompensa as boas obras. Ensinamos que Deus dá uma rica recompensa aos
que praticam boas obras, segundo a palavra do profeta: “Reprime a tua
voz de choro... porque há recompensa para as tuas obras” (Jer 31.16; Is.
cap. 4). Também o Senhor disse no Evangelho: “Regozijai-vos e exultai,
porque é grande o vosso galardão nos céus” (Mat 5.12), e “Quem der a
beber ainda que seja um copo de água fria, a um destes pequeninos ... em
verdade vos digo que de modo algum perderá o seu galardão” (cap.
10.42). Atribuímos, entretanto, esta recompensa, que o Senhor dá, não ao
mérito do homem que a recebe, mas à bondade ou generosidade e
veracidade de Deus, que a promete e a dá, e que, embora não deva nada a
ninguém, contudo prometeu que dará recompensa a seus fiéis adoradores;
mas ele lhes dá para que eles o adorem. Além disso, mesmo nas obras dos
santos há muitas coisas indignas de Deus e muitas mais que são
imperfeitas. Mas, porque Deus recebe em graça e acolhe os que praticam
obras por amor a Cristo, confere-lhes a prometida recompensa. A assim
que em outro contexto as nossas justiças são comparadas a “trapo de
imundícia” (Is 64.6). Também o Senhor diz no Evangelho: “Vós, depois de
haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis,
porque fizemos apenas o que devíamos fazer” (Luc 17.10).
Os
méritos dos homens são nulos. Portanto, embora ensinemos que Deus
recompensa as nossas boas ações, todavia ensinamos, ao mesmo tempo, com
Santo Agostinho, que Deus não coroa em nós os nossos méritos, mas os
seus dons. Por isso dizemos, que qualquer recompensa que recebemos é
também graça, e é mais graça que recompensa, porque o bem que fazemos,
fazemo-lo mais por Deus do que por nós mesmos, e porque São Paulo diz:
“Que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te
vanglorias, como se o não tiveras recebido?” (I Co 4.7). E isto é o que o
bendito mártir São Cipriano concluiu deste verso: Não devemos
gloriar-nos de coisa alguma em nós, visto que nada é propriamente nosso.
Condenamos, portanto, os que defendem os méritos dos homens, de modo a
esvaziar a graça de Deus.
17. Da Igreja de Deus, santa e católica, e do único Cabeça da Igreja.
A
Igreja sempre existiu e sempre existirá. Visto que Deus desde o
princípio quis salvar os homens e trazê-los ao conhecimento da verdade
(I Tim 2.4), é absolutamente necessário que a Igreja tenha existido no
passado, exista agora e continue até o fim do mundo.
Que é a
Igreja. A Igreja é a assembléia dos fiéis convocada ou reunida do mundo:
é, direi, a comunhão de todos santos, isto é, dos que verdadeiramente
conhecem, adoram corretamente e servem o verdadeiro Deus em Cristo, o
Salvador, pela palavra e pelo Espírito Santo, e que, finalmente,
participam, pela fé, de todos os benefícios gratuitamente oferecidos
mediante Cristo. Cidadãos de uma comunidade. São todos eles cidadãos de
uma só cidade, vivem sob o mesmo Senhor, sob as mesmas leis, e na mesma
participação de todos os benefícios. O apóstolo os chamou “concidadãos
dos santos, e... da família de Deus” (Ef 2.19), denominando “santos” os
fiéis na terra (I Co 4.1), que são santificados pelo sangue do filho de
Deus. Deve ser entendido inteiramente com relação a estes santos o
artigo do Credo: “Creio na santa Igreja Católica, na comunhão dos
santos”.
Uma só Igreja em todos os tempos. E, visto que há sempre
um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus o Messias, e
um só Pastor de todo o rebanho, uma só Cabeça deste corpo, enfim, um só
Espírito, uma só salvação, uma só fé, um só testamento ou aliança,
segue-se, necessariamente, que existe uma só Igreja. A Igreja Católica.
Por isso chamamos “católica” e essa Igreja, porque é universal, e se
espalha por todas as partes do mundo, estende-se por todos os tempos e
não é limitada pelo tempo ou pelo espaço. Condenamos, portanto, os
donatistas, que confinavam a Igreja a não sei que cantos da África, e
não aprovamos o clero romano, que vive a propalar que só a Igreja de
Roma é Católica.
Partes ou formas da Igreja. A Igreja divide-se
em diferentes partes ou formas, não por estar dividida ou rasgada em si
mesma, mas por ser distinta pela diversidade dos seus membros. Militante
e triunfante. Uma é chamada a Igreja Militante e a outra a Igreja
Triunfante. A primeira ainda milita na terra e luta contra a carne, o
mundo e o Diabo, que é o príncipe deste mundo, e contra o pecado e a
morte. A outra, já deu baixa e triunfa no céu depois de ter vencido
esses inimigos, e exulta diante do Senhor. Entretanto, essas duas
igrejas têm comunhão e união uma com a outra.
A Igreja
particular. A Igreja Militante na terra tem tido, sempre, muitas igrejas
particulares. Contudo, todas estas devem ser referidas à unidade da
Igreja católica. Esta Igreja (Militante) foi estabelecida de um modo
antes da Lei, entre os patriarcas, de outro modo diferente sob Moisés,
pela Lei; e de modo diferente por Cristo, por meio do Evangelho.
Os
dois povos. Em geral se mencionam dois povos: os israelitas e os
gentios, ou aqueles que foram congregados de entre judeus e gentios na
Igreja. Há, também, dois Testamentos, o Velho e o Novo. A mesma Igreja
para o velho e o novo povo. No entanto, de todos esses povos foi e ainda
é só uma a comunidade, uma só a salvação num só Messias, em quem, como
membros de um só corpo, sob um só Cabeça, todos estão unidos na mesma
fé, participando também do mesmo alimento e da mesma bebida espiritual.
Aqui, porém, reconhecemos uma diversidade de tempos e uma diversidade
nos sinais do Messias prometido e manifestado; agora, abolidas as
cerimônias, a luz brilha sobre nós de maneira mais clara, e bênçãos nos
são dadas mais abundantemente, e uma liberdade mais completa.
A
Igreja, casa do Deus vivo. Esta santa Igreja de Deus é chamada a casa do
Deus vivo, construída de pedras vivas e espirituais e fundada sobre uma
rocha firme, sobre fundamento que ninguém tem o direito de substituir
por um outro, e é, assim chamada “coluna e baluarte da verdade” (I Tim
3.15). A Igreja não erra. Ela não erra, enquanto se apóia sobre a rocha,
Cristo, e sobre o fundamento dos profetas e apóstolos. E não é de
admirar se ela errar, todas as vezes que abandonar aquele que, só, é a
verdade. A Igreja noiva e virgem. A Igreja é também chamada virgem e a
noiva de Cristo e, em verdade, única e dileta. O apóstolo diz:
“Tenho-vos preparado para vos apresentar como virgem pura a um esposo”
(II Co II.2). A Igreja, rebanho de ovelhas. A Igreja é chamada rebanho
sob um só pastor, Cristo, segundo Ez, cap. 34, e João, cap. 10. A Igreja
corpo de Cristo. É chamada também corpo de Cristo, porque os fiéis são
os membros vivos de Cristo, sob Cristo, o Cabeça.
Cristo o único
cabeça da Igreja. É a cabeça que tem a preeminência no corpo, e dela o
corpo todo recebe vida; pelo seu espírito o corpo é em tudo governado;
dela, ainda, o corpo recebe incremento e crescimento. Mais ainda, há uma
só cabeça do corpo a qual com ele se ajusta. Por isso a Igreja não pode
ter nenhuma outra cabeça além de Cristo. Como a Igreja é um corpo
espiritual, ela precisa ter também uma cabeça espiritual em harmonia
consigo mesma. Não pode ser governada por outro espírito que não seja o
Espírito de Cristo. Por conseguinte, São Paulo diz: “Ele é a cabeça do
corpo, da igreja. Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos,
para em todas as cousas ter a primazia” (Col 1.18). E em outro lugar:
“Cristo é o cabeça da igreja, sendo este mesmo salvador do corpo” (Ef
5.23). E novamente: Ele é “o cabeça sobre todas as cousas, e o deu à
igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em
todas as cousas” (Ef 1.22 ss). Também: “Cresçamos em tudo naquele que é o
cabeça, Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado...
efetua o seu próprio aumento” (Ef 4.15 ss). Por isso não aprovamos a
doutrina do clero romano, que faz do seu Pontífice Romano o pastor
universal, o cabeça supremo da Igreja Militante aqui na terra, e assim o
próprio vigário de Jesus Cristo, que tem, como eles dizem, toda a
plenitude de poder e soberana autoridade na Igreja. Cristo o único
pastor da Igreja. Ensinamos que Cristo, nosso Senhor, é e continua a ser
o único pastor universal e sumo Pontífice diante de Deus seu Pai, e que
na Igreja ele mesmo realiza todas as funções de um pontífice ou pastor,
até o fim do mundo; [VIGÁRIO] e, conseqüentemente, não necessita de
vigário, que é substituto de quem está ausente. Mas Cristo está presente
com sua Igreja e é sua cabeça vivificadora. Nenhum primado na Igreja.
Ele proibiu, com toda a severidade, aos seus apóstolos e sucessores
qualquer veleidade de primado e domínio na Igreja. Portanto, todos os
que resistem, opondo-se a essa verdade transparente, e introduzem outro
governo na Igreja de Cristo devem ser ligados àqueles, a respeito de
quem profetizam os apóstolos de Cristo, São Pedro e São Paulo, em II Ped
cap. 2, e Act 20.2, II Co 11.2, II Tes, cap. 2, assim como em outros
passos.
Nenhuma confusão na Igreja. Contudo, repudiando o cabeça
romano, não introduzimos na Igreja de Cristo nenhuma confusão ou
perturbação, pois ensinamos que o governo da Igreja, estabelecido pelos
apóstolos, nos é suficiente para conservar a Igreja na devida ordem. No
princípio, quando a Igreja não tinha esse chefe romano, que hoje, como
se diz, a conserva em ordem, não estava em confusão ou desordenada. O
chefe romano preserva, na verdade, a sua tirania e a corrupção que foi
introduzido na Igreja; e, ao mesmo tempo, ele impede, resiste e, com
todas as suas forças, arruína a conveniente reforma da Igreja.
Dissentimento
e luta na Igreja. Objetam-nos que tem havido várias lutas e dissenssões
em nossas Igrejas desde que se separaram da Igreja Romana, e que por
isso elas não podem ser igrejas verdadeiras. Como se nunca tivesse
havido seitas na Igreja Romana, nem dissenssões e lutas a respeito de
religião, e na verdade presentes não tanto nas escolas como nos púlpitos
no meio do povo. Sabemos, certamente, que o apóstolo disse: “Deus não é
de confusão; e, sim, de paz” (I Co 14.33). E: “porquanto, havendo entre
vós ciúmes e contendas, não é assim que sois carnais?” Contudo, não
podemos negar que Deus estava na Igreja apostólica e que a Igreja
apostólica era Igreja verdadeira, não obstante a existência de combates e
dissensões nela. O apóstolo São Paulo repreendeu o apóstolo São Pedro
(Gal 2.11 ss), e Barnabé divergiu de Paulo. Grande luta surgiu na Igreja
de Antioquia entre os que pregavam o único Cristo, como Lucas registra
nos Atos dos Apóstolos, cap. 15. E tem havido, em todos os tempos,
graves lutas na Igreja, e os mais eminentes doutores da Igreja
divergiram de opinião entre si acerca de importantes assuntos, sem, no
entanto, a Igreja deixar de ser aquilo que ela era, por causa de tais
contendas. Pois, dessa forma, é do agrado de Deus usar as dissensões que
surgem na Igreja para a glória do seu nome, para elucidar a verdade e
para que os que são aprovados sejam manifestados (I Co 11.19).
Marcas
ou sinais da verdadeira Igreja. Ademais, visto que não reconhecemos
nenhum outro chefe da Igreja a não ser Cristo, de igual modo não
reconhecemos como a verdadeira Igreja qualquer Igreja que se vangloria
de o ser; ensinamos, no entanto, que a verdadeira Igreja é aquela em que
se encontram as marcas ou sinais da verdadeira Igreja, principalmente a
legítima e sincera pregação da palavra de Deus como nos foi deixada nos
escritos dos profetas e apóstolos, que nos conduzem todos nós a Cristo,
que no Evangelho disse: “As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as
conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna... De modo nenhum
seguirão o estranho, antes fugirão dele porque não conhecem a voz dos
estranhos” (João 10.5, 27, 28).
E aqueles que são assim na Igreja
de Deus têm uma fé e um espírito; e por isso adoram o único Deus e só a
ele cultuam em espírito e verdade, só a ele amando de todo o coração e
de todas as suas forças, só a ele orando por meio de Jesus Cristo, o
único Mediador e Intercessor; e não buscam nenhuma justiça e vida fora
de Cristo e da fé nele. Pelo facto de reconhecerem a Cristo como o único
chefe e fundamento de sua Igreja, apoiando-se nele, renovam-se
diariamente pelo arrependimento e, com paciência, carregam a cruz
imposta a eles. Além disso, congregados juntos com todos os membros de
Cristo por um amor não fingido, revelam que são discípulos de Cristo
perseverando no vínculo da paz e da santa unidade. Ao mesmo tempo
participam dos sacramentos instituídos por Cristo e a nós entregues
pelos seus apóstolos, não os usando de nenhuma outra maneira a não ser
como os receberam do próprio Senhor. Aquela palavra do apóstolo São
Paulo é bem conhecida de todos: “Porque eu recebi do Senhor o que também
vos entreguei” (I Co 11.23 ss). Por causa disso, condenamos como
alienadas da verdadeira Igreja de Cristo todas aquelas igrejas que não
são como ouvimos que devem ser, a despeito do muito que se jactam de uma
sucessão de bispos, de unidade e de antiguidade. Além do mais, temos a
advertência dos apóstolos de Cristo, para que fujamos da idolatria e de
Babilônia (I Co 10.14; I João 5.21), e não tenhamos parte com ela se não
queremos ser participantes das pragas de Deus (Apoc 18.4; II Co 6.17).
Fora
da Igreja de Deus não há salvação. Consideramos a comunhão com a
verdadeira Igreja de Cristo coisa tão elevada que negamos que possa
viver perante Deus aqueles que não estiverem em comunhão com a
verdadeira Igreja de Deus, mas dela se separam. Pois, como não havia
salvação fora da arca de Noé, quando o mundo perecia no dilúvio,
igualmente cremos que não há salvação certa e segura fora de Cristo, que
se oferece para o bem dos eleitos na Igreja; e por isso ensinamos que
os que querem viver não podem separar-se da Igreja de Cristo.
A
Igreja não está limitada aos seus sinais. Entretanto, pelos sinais acima
mencionados, não restringimos a Igreja ao ponto de ensinarmos que estão
fora dela todos aqueles que ou não participam dos sacramentos, pelo
menos não voluntariamente ou por desprezo, mas antes, forçados pela
necessidade, involuntariamente se abstêm deles ou deles são privados, ou
em quem a fé algumas vezes falha, embora não seja inteiramente extinta e
não cesse de todo; ou em quem se encontram as imperfeições e erros
devidos à fraqueza. Sabemos que Deus teve alguns amigos no mundo fora da
comunidade de Israel. Sabemos do que aconteceu ao povo de Deus no
cativeiro da Babilônia, onde foram privados dos seus sacrifícios por
setenta anos. Sabemos o que aconteceu a São Pedro, que negou o Mestre, e
o que costuma acontecer diariamente aos eleitos de Deus e às pessoas
fiéis que se desviam e são fracas. Sabemos, mais, que tipo de igrejas
eram as existentes na Galácia e em Corinto nos dias dos apóstolos, nas
quais o apóstolo encontrou muitos e sérios pecados; apesar disso ele as
chama santas igrejas de Cristo (I Co 1.2; Gal 1.2).
A Igreja às
vezes parece estar extinta. Sim, muitas vezes acontece que Deus, em seu
justo juízo, permite que a verdade da sua Palavra, a fé católica e o
culto verdadeiro de Deus sejam de tal forma obscurecidos e deformados,
que a Igreja parece quase extinta e não mais existir, como vemos ter
acontecido nos dias de Elias (I Reis 19.10, 14), e em outras ocasiões.
Não obstante, Deus tem, neste mundo e nestas trevas, os seus verdadeiros
adoradores, que não são poucos, chegando mesmo a sete mil e mais (I
Reis 19.18, Apoc 7.4, 9). Pois o apóstolo exclama: “O firme fundamento
de Deus permanece, tendo este selo, ‘O Senhor conhece os que lhe
pertencem’”, etc. (II Tim 2.19). Vem daí que pode a Igreja de Deus ser
designada invisível; não que os homens dos quais ela é formada sejam
invisíveis, mas porque, estando oculta de nossos olhos e sendo conhecida
só de Deus, ela às vezes secretamente foge ao juízo humano.
Nem
todos os que estão na Igreja são da Igreja. Por outro lado, nem todos os
que são contados no número da Igreja são santos ou membros vivos e
verdadeiros da Igreja. Pois há muitos hipócritas que externamente ouvem a
palavra de Deus e publicamente recebem os sacramentos, e parecem
invocar a Deus somente por meio de Cristo, confessar que Cristo é a sua
única justiça, e adorar a Deus e exercer os deveres de caridade e por
algum tempo suportar com paciência as desgraças. E, não obstante,
interiormente, estão completamente destituídos da verdadeira iluminação
do Espírito, de fé e de sinceridade de coração, e de perseverança até o
fim. Mas finalmente o caráter destes homens, em sua maior parte, será
manifestado. O apóstolo São João diz: “Eles saíram de nosso meio, mas
não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam
permanecido conosco” (I João 2.19). Todavia, conquanto simulem piedade,
não são da Igreja, ainda que sejam considerados estarem na Igreja,
exatamente como os traidores numa república estão incluídos no número de
seus cidadãos, antes que sejam descobertos; e, como o joio e a palha se
encontram no trigo, e como inchaços e tumores se acham no corpo sadio,
quando ao contrário são doenças e deformidades e não genuínos membros do
corpo. E assim a Igreja de Deus é muito adequadamente comparada a uma
rede que retira peixes de todas as espécies, e a um campo no qual se
encontram joio e trigo (Mat 13.24 ss, 47 ss).
Não devemos julgar
irrefletida e prematuramente. Conseqüentemente, devemos ser muito
cuidadosos, não julgando antes da hora, nem tentando excluir e rejeitar
ou separar aqueles aos quais o Senhor não quer excluídos nem rejeitados,
e nem aqueles que não podemos eliminar sem prejuízo para a Igreja. Por
outro lado, devemos estar vigilantes para que, enquanto os piedosos
ressonam, os ímpios não ganhem terreno e causem mal à Igreja.
A
unidade da Igreja não consiste em ritos externos. Além disso,
diligentemente ensinamos que se deve tomar grande cuidado naquilo em que
consistem de modo especial a verdade e a unidade da Igreja, para não
provocarmos nem alimentarmos cismas na Igreja, irrefletidamente. A
unidade não consiste em cerimônias e ritos externos, mas antes na
verdade e unidade da fé católica. A fé católica não nos é transmitida
pelas leis humanas, mas pelas Santas Escrituras, das quais é um resumo o
Credo Apostólico. E, assim, lemos nos escritores antigos que havia
grande diversidade de cerimônias, mas que eram livres e ninguém jamais
pensava que a unidade da Igreja era, desse modo, dissolvida. Assim,
ensinamos que a verdadeira harmonia da Igreja consiste em doutrinas e na
verdadeira e unânime pregação do Evangelho de Cristo, nos ritos que
foram expressamente transmitidos pelo Senhor. E aqui insistimos na
palavra do apóstolo: “Todos, pois, que somos perfeitos, tenhamos este
sentimento; e, se porventura pensais doutro modo, também isto Deus vos
esclarecerá. Todavia, andemos de acordo com o que já alcançamos” (Fil
3.11 ss).
18. Dos ministros da Igreja, sua instituição e deveres.
Deus
usa ministros na edificação da Igreja. Deus sempre usou ministros para
reunir ou estabelecer para si a Igreja, e para o governo e preservação
da mesma; e ainda os usa e sempre os usará, enquanto a Igreja permanecer
na terra. Portanto, a origem, a instituição e o ofício de ministros é
uma ordenação muito antiga de Deus mesmo e não inovação de homens.
Instituição e origem de ministros. É verdade que Deus poderia, pelo seu
poder, sem qualquer meio, congregar para si mesmo uma Igreja de entre os
homens; mas ele preferiu tratar com os homens pelo ministério de
homens. Por isso os ministros devem ser considerados não como ministros
apenas por si mesmos, mas como ministros de Deus, visto que por meio
deles Deus realiza a salvação de homens.
O ministério não deve
ser depreciado. Por essa razão, chamamos a atenção dos homens para que
tomem cuidado para não atribuirmos o que diz respeito à nossa conversão e
instrução ao poder secreto do Espírito Santo, fazendo pouco do
ministério eclesiástico. Pois convém termos sempre em mente as palavras
do apóstolo: “Como, porém, invocarão aquele em que não creram? e como
crerão naquele de quem nada ouviram? e como ouvirão, se não há quem
pregue? ... E assim, a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de
Cristo” (Rom 10.14, 17). E também o que o Senhor disse no Evangelho:
“Em verdade, em verdade vos digo: Quem recebe aquele que eu enviar, a
mim me recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou” (João
13.20). De igual modo, um homem da Macedônia, que apareceu numa visão a
São Paulo, enquanto este se encontrava na Ásia, secretamente o admoestou
dizendo: “Passa à Macedônia, e ajuda-nos” (At 16.9). E em outro lugar o
mesmo apóstolo diz: “Porque de Deus somos cooperadores; lavoura de
Deus, edifício de Deus sois vós” (I Co 3.9).
Por outro lado, no
entanto, devemos precaver-nos para não atribuirmos demasiado aos
ministros e ao ministério; aqui também lembrando-nos das palavras de
nosso Senhor no Evangelho: “Ninguém pode vir a mim se o Pai que me
enviou não o trouxer” (João 6.44), e as palavras do apóstolo: “Quem é
Apolo? e quem é Paulo? Servos por meio de quem crestes, e isto conforme o
Senhor concedeu a cada um ... Eu plantei, Apolo regou; mas o
crescimento veio de Deus. De modo que nem o que planta é alguma cousa,
nem o que rega, mas Deus que dá o crescimento” (I Co 3. 5, 7). Deus move
os corações dos homens. Então, creiamos que Deus nos ensina pela sua
palavra, externamente por meio dos seus ministros e internamente move os
corações dos seus eleitos à fé pelo seu Espírito Santo; e que,
portanto, devemos atribuir a Deus toda a glória de todo este benefício.
Mas deste assunto já tratamos no primeiro capítulo desta Explanação.
Quem
são os ministros e de que sorte são os que Deus deu ao mundo. E em
verdade desde o princípio do mundo Deus usou os mais eminentes homens no
mundo inteiro (ainda que muitos deles fossem simples na sabedoria
terrena ou na filosofia, no entanto na verdadeira teologia eram
excelentes), a saber, os patriarcas, com os quais ele falou
freqüentemente pelos anjos. Pois os patriarcas eram os profetas e
mestres dos seus dias, aos quais, por essa razão, quis Deus que vivessem
por vários séculos, para que fossem, por assim dizer pais e luzes do
mundo. Foram seguidos por Moisés e os profetas famosos pelo mundo
inteiro.
Cristo o mestre. Depois destes o Pai celestial enviou o
seu Filho unigênito, o mais perfeito mestre do mundo, em quem está
escondida a sabedoria de Deus, a qual veio até nós através da mais
santa, simples e perfeita de todas as doutrinas. Ele escolheu discípulos
para si mesmo, aos quais fez apóstolos. Estes saíram por todo o mundo e
em toda parte congregaram igrejas pela pregação do Evangelho, e depois
ordenaram pastores ou mestres (doutores) em todas as igrejas do mundo,
segundo o mandamento de Cristo; mediante seus sucessores ele ensinou e
governou a Igreja até hoje. Portanto, como Deus deu ao seu povo antigo
os patriarcas, juntamente com Moisés e os profetas, assim também ao seu
povo do Novo Testamento ele enviou seu Filho unigênito e, com ele, os
apóstolos e doutores da Igreja.
Ministros do Novo Testamento.
Além disso, os ministros do novo povo são designados por diversos nomes.
São chamados apóstolos, Profetas, evangelistas, bispos, anciãos,
pastores e mestres (I Co 12.28; Ef 4.11). Os apóstolos. Os apóstolos não
permaneciam num lugar determinado, mas por todo o mundo iam congregando
diversas igrejas. Uma vez estas estabelecidos, deixou de haver
apóstolos, e, em seu lugar, apareceram pastores, cada um em sua igreja.
Profetas. Nos primeiros tempos eram videntes, conhecendo o futuro; mas
também interpretavam as Escrituras. Tais homens são encontrados também
hoje. Evangelistas. Os escritores da história evangélica eram chamados
Evangelistas; mas eram também arautos do Evangelho de Cristo; como o
apóstolo São Paulo ordena a Timóteo: “Faze o trabalho de evangelista”
(II Tim 4.5). Bispos. Bispos são os supervisores e vigias da Igreja, que
administram o alimento e outras necessidades da vida da Igreja.
Presbíteros. Os presbíteros são os anciãos e, por assim dizer, os
senadores e pais da Igreja, governando-a com sadio conselho. Pastores.
Os pastores não só guardam o rebanho do Senhor, como também providenciam
as coisas necessárias a ele. Mestres. Os mestres instruem e ensinam a
verdadeira fé e piedade. Portanto, os ministros da Igreja podem, agora,
ser chamados bispos, anciãos, pastores e mestres.
Ordens dos
papistas. Com o passar o tempo, muitas outras designações de ministros
na Igreja foram introduzidas na Igreja de Deus. Alguns foram ordenados
patriarcas, outros arcebispos, outros sufragâneos; também
metropolitanos, arquidiáconos, diáconos, subdiáconos, acólitos,
exorcismas, cantores, porteiros e não sei quantos outros, como cardeais,
reitores e priores; abades maiores e menores; ordens mais elevadas e
inferiores. Não estamos preocupados, porém, acerca de todas estas, de
como foram uma vez e são agora. Basta-nos a doutrina apostólica no que
concerne aos ministros.
A respeito dos monges. Como sabemos com
certeza que os monges e as ordens, ou seitas de monges, não são
instituídas nem por Cristo, nem pelos apóstolos, ensinamos que elas nada
valem para a Igreja de Deus; antes são perniciosas. Pois, embora
anteriormente fossem toleráveis - quando eram solitários, ganhando a
vida com suas próprias mãos, e não eram carga para ninguém e, como os
leigos, eram por toda parte obedientes aos pastores das igrejas - agora,
porém, o mundo todo vê e sabe a que são semelhantes. Eles formulam não
sei que votos; mas levam vida totalmente contrária aos seus votos, de
modo que os melhores deles merecem ser incluídos entre aqueles de quem o
apóstolo fala: “Estamos informados de que entre vós há pessoas que
andam desordenadamente, não trabalhando” etc. (II Tes 3.11 ). Portanto,
não temos tais pessoas em nossas igrejas, nem ensinamos que devem
existir nas igrejas de Cristo.
Os ministros devem ser chamados e
eleitos. Ninguém deve usurpar a honra do ministério eclesiástico; isto
é, apoderar-se dele por suborno ou quaisquer enganos, ou por sua própria
escolha. Que os ministros da Igreja sejam chamados e eleitos por
eleição legal e eclesiástica; isto é, que sejam eleitos escrupulosamente
pela Igreja ou por aqueles que dela receberam delegação para tal fim,
na devida ordem, sem qualquer tumulto, divisões ou rivalidade. Não se
eleja qualquer um, mas homens idôneos, que se distingam por suficiente
cultura sagrada, piedosa eloqüência, sabedoria simples, e por fim, pela
moderação e reputação honrada, segundo a regra apostólica fixada pelo
apóstolo em I Tim, cap. 3, e Tit, cap. 1.
Ordenação. E os que
foram eleitos sejam ordenados pelos anciãos com orações públicas e
imposição das mãos. Aqui condenamos todos quantos concorrem por conta
própria, não sendo nem escolhidos, nem enviados, nem ordenados (Jer.
cap. 23). Condenamos os ministros ineptos e os desprovidos dos dons
necessários a um pastor.
Ao mesmo tempo, reconhecemos que a
inocente simplicidade de certos pastores na Igreja Antiga por vezes
aproveitou mais à Igreja do que a erudição multiforme, refinada e
elegante mas demasiado infatuada de outros. Por esse motivo não
rejeitamos, nem mesmo hoje, a simplicidade honesta de alguns, que não é,
porém, de modo algum ignorante.
O sacerdócio de todos os
crentes. Sem dúvida, os apóstolos de Cristo designam todos os que crêem
em Cristo como “sacerdotes”, não por causa de qualquer ofício, mas
porque, por Cristo, todos os fiéis, feitos reis e sacerdotes, podemos
oferecer sacrifícios espirituais a Deus (Êx 19.6; I Ped 2.9; Apoc 1.6).
Portanto, o sacerdócio e o ministério são bem diferentes um do outro. O
sacerdócio, como acabamos de dizer, é comum a todos os cristãos; o mesmo
não acontece com o ministério. Nem abolimos o ministério da Igreja pelo
facto de termos repudiado o sacerdócio papístico da Igreja de Cristo.
Sacerdotes
e sacerdócio. Sem dúvida nenhuma, na nova aliança de Cristo não existe
mais essa forma de sacerdócio como existia entre o povo antigo; o qual
incluía unção externa, roupagens santas e inúmeras cerimônias que eram
tipos de Cristo, que aboliu tudo isso pela sua vinda e cumprimento
desses tipos. Mas ele mesmo permanece o único sacerdote para sempre e
para não subtrairmos qualquer coisa dele, não chamamos sacerdote a
nenhum dos ministros. Pois o próprio Senhor nosso não nomeou nenhum
sacerdote na Igreja do Novo Testamento, que, tendo recebido autoridade
do sufragâneo, ofereçam sacrifício diariamente, isto é, a própria carne e
sangue do Senhor, pelos vivos e mortos, mas ministros que ensinem e
administrem os sacramentos.
A natureza dos ministros do Novo
Testamento. São Paulo expõe de modo simples e conciso o que devemos
pensar dos ministros do Novo Testamento ou da Igreja Cristã, e o que
devemos atribuir-lhes: “Assim, pois, importa que os homens nos
considerem como ministros de Cristo, e despenseiros dos mistérios de
Deus” (I Co 4.1). Por isso, o apóstolo quer que estimemos os ministros
como ministros. Ora, o apóstolo os chamou hyperétas , “remadores”, que
têm os olhos fixos unicamente no timoneiro, e são, assim, homens que não
vivem para si mesmos ou segundo sua própria vontade, mas para os outros
- a saber, para os seus senhores, de cujas ordens dependem
inteiramente. Pois em todos os seus deveres todo ministro da Igreja
recebe ordens, não de satisfazer a sua vontade, mas de executar apenas o
que está nos mandamentos recebidos do seu Senhor. E neste caso
declarasse, expressamente, quem é o Senhor, isto é, Cristo, a quem os
ministros estão sujeitos em todas as questões do ministério.
Os
ministros, despenseiros dos mistérios de Deus. Contudo, para explicar
mais completamente o ministério, o apóstolo acrescenta que os ministros
da Igreja são ecónomos ou despenseiros dos mistérios de Deus. Ora, em
muitas passagens, especialmente em Efésios, cap. 3, São Paulo chamou
“mistérios de Deus” ao Evangelho de Cristo. E os escritores antigos
também chamaram “mistérios” aos sacramentos de Cristo. Assim, é para
isto que os ministros da Igreja são vocacionados - para pregarem o
Evangelho de Cristo aos fiéis e para administrarem os sacramentos.
Lemos, ainda, em outro lugar do Evangelho, a respeito do “mordomo fiel e
prudente” a quem “o senhor confiará os seus conservas para dar-lhes o
sustento a seu tempo” (Luc 12.42). Além disso, em outra passagem do
Evangelho, um homem parte de viagem para um pais estrangeiro e, deixando
sua casa, passa os seus bens e a sua autoridade nesta a seus servos,
dando a cada um a sua tarefa.
Do poder dos ministros da Igreja.
Agora, pois, convém falarmos algo também acerca do poder e do dever dos
ministros da Igreja. Sobre esse poder alguns têm discutido
diligentemente, e a ele sujeitaram tudo o que há de supremo valor na
terra, e o fizeram contrariamente ao mandamento do Senhor, que proibiu
aos seus discípulos o domínio e recomendou com insistência a humildade
(Luc 22. 24 ss; Mat 18.3 ss; 20.25 ss). Há, na verdade, outro poder que é
simples e absoluto, chamado o poder do direito. Segundo esse poder,
todas as coisas do mundo inteiro estão sujeitas a Cristo, o Senhor, como
ele mesmo declarou, dizendo: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na
terra” (Mat 28.18). E ainda: “Eu sou o primeiro e o último, e aquele
que vive; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos
séculos, e tenho as chaves da morte e do inferno” (Apoc 1.18).
Igualmente: “... aquele que tem a chave de David, que abre e ninguém
fechará, e que fecha e ninguém abre” (Apoc 3.7).
O Senhor reserva
para si o verdadeiro poder. Esse poder o Senhor o reserva para si, e
não o transfere a nenhum outro, ficando ao lado ocioso, como espectador,
enquanto os seus ministros trabalham. É Isaías que diz: “Porei sobre o
seu ombro a chave da casa de David” (Is 22.22). E outra vez: “O governo
está sobre os seus ombros” (Is 9.6). Ele não lança o governo sobre os
ombros de outros homens, mas ainda conserva e usa o seu próprio poder,
governando todas as coisas.
O poder do ofício e o ministerial.
Entretanto, há outro poder, o do oficio, ou poder ministerial, limitado
por aquele que usa do poder pleno. E este é mais semelhante a um
ministério do que a um império. As chaves. Um senhor concede poder ao
seu mordomo e para isso dá-lhes as chaves, com as quais ele introduz na
casa ou dela exclui quem o seu senhor gostaria de introduzir ou excluir.
Em virtude desse poder o ministro, pelo seu oficio, realiza aquilo que o
Senhor ordenou que ele fizesse, e o Senhor confirma aquilo que ele faz e
deseja que o que o seu servo fez seja considerado e reconhecido como se
ele mesmo o tivesse feito.
Indubitavelmente, é a isto que se
referem estas sentenças evangélicas: “Dar-te-ei as chaves do reino dos
céus: o que ligares na terra, terá sido ligado nos céus; e o que
desligares na terra, terá sido desligado nos céus” (Mat 16.19). Ainda:
“Se de alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se lhos
retiverdes, são retidos” (João 20.23). Mas, se o ministro não agir em
todas as coisas como o Senhor lhe ordenou, mas transgredir os limites da
fé, então o Senhor certamente invalida aquilo que ele fez. Eis por que o
poder eclesiástico dos ministros da Igreja é aquela função pela qual
eles de facto governam a Igreja de Deus, mas fazem todas as coisas na
Igreja como o Senhor as ordenou em sua Palavra. Quando essas coisas são
feitas, os fiéis as consideram como feitas pelo próprio Senhor. Quanto
às chaves, delas já se fez acima uma menção.
O poder dos
ministros é um e o mesmo em todos. Ora, o mesmo e igual poder ou função é
concedido a todos os ministros na Igreja. Certamente, no princípio os
bispos ou presbíteros governavam a Igreja em comum; nenhum homem se
elevava acima de qualquer outro, ninguém usurpava maior poder ou
autoridade sobre seus co-epíscopos . Lembrados das palavras do Senhor
“Aquele que dirige seja como o que serve” (Luc 22.26) conservavam-se em
humildade, e pelo serviço mútuo ajudavam-se no governo e na preservação
da Igreja.
A ordem a ser preservada. Entretanto, por causa da
preservação da ordem, algum dos ministros convocava reunião da
assembléia, e perante ela propunha assuntos a serem apresentados, reunia
as opiniões dos demais e, enfim, o quanto estava nele, providenciava
para que não surgisse confusão. Assim procedeu São Pedro, segundo lemos
nos Atos dos Apóstolos, o qual contudo não era, por essa razão,
preferido pelos demais, nem revestido de maior autoridade que os outros.
Mui acertadamente disse o Mártir São Cipriano, no seu De Simplicitate
Clericorum: “Os outros apóstolos eram, seguramente, o que era Pedro,
dotados de semelhante associação de honra e poder; mas, [seu] primado
procede da unidade para que a Igreja seja manifesta como sendo uma”.
Como
e quando um foi colocado diante dos outros. Também São Jerônimo, em seu
Comentário à Epístola de Paulo a Tito, diz algo não muito diferente
disto: “Antes que começasse a ligação a pessoas em religião, pela
instigação do diabo, as igrejas eram governadas pelo conselho comum dos
anciãos; mas, depois que cada um passou a pensar que aqueles que ele
havia batizado eram seus e não de Cristo, decretou-se que um dos anciãos
fosse escolhido e colocado sobre os demais, em quem recairia o cuidado
de toda a Igreja, e que se removessem todas as sementes de cismas”.
Contudo, São Jerônimo não recomenda este decreto como divino; pois ele
logo acrescenta: “Assim como os anciãos sabem pelo costume da Igreja que
se acham sujeitos ao que foi posto sobre eles, assim saibam os bispos,
que se acham sobre os anciãos mais pelo costume do que pela verdade de
uma disposição do Senhor, e que devem governar a Igreja em comum com
eles”. Até aqui São Jerônimo. Por conseguinte, ninguém tem o direito de
proibir o retorno à antiga constituição da Igreja de Deus, e recorrer a
isso com apoio no costume humano.
Os deveres do ministro. São
vários os deveres dos ministros, no entanto, em geral se restringem a
dois, nos quais todos os outros estão incluídos: o ensino evangélico de
Cristo e a legítima administração dos sacramentos. É dever dos ministros
reunir a assembléia sagrada e nela expor a Palavra de Deus, e aplicar
toda a doutrina à razão e ao uso da Igreja, de modo que o que for
ensinado seja útil aos ouvintes e edifique os fiéis. É dever dos
ministros, afirmo, ensinar os ignorantes e exortar; e estimular os
indecisos ou ainda os que caminham lentamente à avançar no caminho do
Senhor, consolar e confirmar os pusilânimes, e armá-los contra as
multiformes tentações de Satanás; corrigir os que pecam; reconduzir ao
caminho os transviados; levantar os caídos; convencer os contradizentes;
expulsar do rebanho do Senhor os lobos; repreender, prudente e
severamente os crimes e os criminosos; não serem coniventes nem se
calarem perante o crime. Mas, além de tudo isso, é seu dever administrar
os sacramentos, recomendar o uso justo deles e, pela sã doutrina,
preparar todos para recebê-los; conservar também os fiéis numa santa
unidade; e impedir os cismas, enfim catequizar os ignorantes, recomendar
à Igreja as necessidades dos pobres, visitar, instruir e conservar no
caminho da vida os enfermos e os afligidos por várias tentações. Além
disso, devem cuidar das orações públicas ou das súplicas em ocasiões de
necessidade, juntamente com o jejum, isto é, procurar uma santa
abstinência; e cuidar o mais diligentemente possível de tudo o que diz
respeito à tranqüilidade, à paz e à salvação das igrejas.
E para
que o ministro possa realizar todas estas coisas da melhor maneira e
mais facilmente, requer-se especialmente dele que tema a Deus, seja
constante na oração, entregue-se à leitura sagrada e, em todas as coisas
e em todas as ocasiões, seja vigilante, e pela pureza de vida deixe sua
luz brilhar diante de todos os homens.
Disciplina. E, visto que a
disciplina é absolutamente necessária na Igreja, e que a excomunhão foi
outrora usada, entre os antigos, e havia, entre o povo de Deus
julgamentos eclesiásticos, nos quais esta disciplina era exercida por
homens sábios e piedosos, será também dever dos ministros regular essa
disciplina para edificação, de acordo com as circunstâncias dos tempos,
do estado público e com a necessidade. Todas as vezes que se deve
observar a regra, tudo se deve fazer para edificação, decente e
honestamente, sem tirania e divisão. Pois o apóstolo atesta que lhe foi
outorgada pelo Senhor autoridade na Igreja “para edificação, e não para
destruição” (II Co 10.8). E o Senhor mesmo proibiu arrancar o joio no
campo do Senhor, porque haveria o perigo de ser arrancado o trigo
juntamente com ele (Mat 13.29 ss).
Mesmo os maus ministros devem
ser ouvidos. Ademais, detestamos energicamente o erro dos donatistas,
que consideram a doutrina e a administração dos sacramentos eficazes ou
ineficazes, segundo a vida boa ou má dos ministros. Porquanto sabemos
que a voz de Cristo deve ser ouvida, mesmo dos lábios de maus ministros;
porque o Senhor mesmo disse: “Fazei e guardai, pois, tudo quanto eles
vos disserem, porém, não os imiteis nas suas obras” (Mat 23.3). Sabemos
que os sacramentos são santificados pela instituição e pela palavra de
Cristo, e que são válidos para o fiel, embora administrados por
ministros indignos. Sobre este assunto Santo Agostinho, o bem-aventurado
servo de Deus, muitas vezes argumentou com base nas Escrituras, contra
os donatistas.
Sínodos. Apesar disso, deve haver disciplina
adequada entre os ministros. Nos Sínodos a doutrina e a vida dos
ministros devem ser cuidadosamente examinadas. Os que pecam devem ser
repreendidos pelos anciãos e reconduzidos ao caminho certo, se forem
curáveis; e, se forem incuráveis, devem ser depostos, e, como lobos,
expulsos do rebanho do Senhor pelos verdadeiros pastores. Se são falsos
mestres, não podem ser de modo algum tolerados. Nem desaprovamos os
concílios ecumênicos, se convocados segundo o exemplo dos apóstolos,
para a salvação da Igreja e não para sua destruição.
O obreiro é
digno do seu salário. Todos os ministros fiéis, como bons obreiros, são
também dignos do seu salário e não pecam quando recebem estipêndios e
todas as coisas necessárias a eles mesmos e suas famílias. O apóstolo
mostra em I Co, cap. 9 e em I Tim, cap. 5, bem como em outras passagens,
que tais coisas são, de direito, dadas pela Igreja e recebidas pelos
ministros. Os anabaptistas, que condenam e difamam os ministros que
vivem do seu ministério, são também refutados pelo ensino apostólico.
19. Dos sacramentos e da Igreja de Cristo.
Os
sacramentos (são) adicionais à Palavra e o que são eles. Deus, desde o
princípio, acrescentou à pregação da Palavra em sua Igreja os
sacramentos ou sinais sacramentais. É o que a Sagrada Escritura
claramente testifica. Sacramentos são símbolos místicos, ou ritos
santos, ou atos sagrados instituídos pelo próprio Deus, consistindo
segundo a sua Palavra, de sinais e de coisas significadas, por meio das
quais ele, na Igreja, conserva a memória dos grandes benefícios por ele
concedidos ao homem - renovando-a freqüentemente - por meio dos quais,
também, ele sela as suas promessas e, externamente as representa e, como
que nos põe diante dos olhos aquelas coisas que internamente ele nos
concede, e assim fortalece e aumenta a nossa fé pela operação do
Espírito de Deus em nossos corações. Finalmente, por meio deles, ele nos
separa de todos os outros povos e religiões, e nos consagra e nos liga a
si só, e nos dá a entender o que ele requer de nós.
Alguns são
sacramentos do Velho, outros do Novo Testamento. Alguns sacramentos são
do velho povo, outros do novo. Os sacramentos do velho povo eram a
Circuncisão e o Cordeiro Pascal, que era imolado; por essa razão, ele se
relaciona com os sacrifícios celebrados desde o princípio do mundo.
O
número dos sacramentos do novo povo. Os sacramentos do novo povo são o
Batismo e a Ceia do Senhor. Alguns há que reconhecem sete sacramentos do
novo povo. Destes, reconhecemos que o arrependimento, a ordenação de
ministros - não a ordenação papista, mas a apostólica - e o matrimônio
são instituições úteis de Deus, não porém sacramentos. A confirmação e a
extrema unção são simples invenções dos homens, que a Igreja pode
dispensar sem nenhum prejuízo. Na verdade, não as temos em nossas
igrejas, pois elas contêm certas coisas que de modo nenhum podemos
aprovar. Acima de tudo, detestamos todo o comércio que exercem os
romanistas na dispensação dos sacramentos.
O autor dos
sacramentos. O autor de todos os sacramentos não é nenhum homem, mas
Deus somente. Os homens não podem instituir sacramentos. Estes fazem
parte do culto de Deus. E não é da competência do homem estabelecer e
prescrever o culto de Deus, mas receber e preservar o que por Deus foi
entregue. Além disso, os símbolos têm juntas as promessas que requerem
fé. E a fé se apóia exclusivamente na Palavra de Deus; e a Palavra de
Deus assemelha-se a escritos ou cartas, e os sacramentos a selos, que
somente Deus coloca nas cartas.
Cristo ainda opera nos
sacramentos. E sendo Deus o autor dos sacramentos, assim ele
continuamente opera na Igreja, em que os sacramentos são devidamente
celebrados; de modo que os fiéis, quando recebem dos ministros os
sacramentos, reconhecem que Deus opera em sua própria instituição, e
portanto, recebem os sacramentos como da mão do próprio Deus; e os
defeitos do ministro (ainda que sejam muito grandes) não podem
prejudicá-lo, se eles reconhecem que a integridade dos sacramentos
depende da instituição do Senhor.
Deve-se distinguir entre o
autor e o ministro dos sacramentos. Por conseguinte, na administração
dos sacramentos distinguem eles, também claramente, entre o Senhor mesmo
e o ministro do Senhor, confessando que a substância dos sacramentos
lhes é dada pelo próprio Senhor e os símbolos pelos ministros do Senhor.
A
essência ou coisa principal nos sacramentos. Mas, a coisa principal que
Deus propõe em todos os sacramentos e para a qual todos os piedosos de
todos os tempos voltam a atenção que outros chamam substância e matéria
nos sacramentos é Cristo o Salvador, o sacrifício único, o Cordeiro de
Deus morto desde a fundação do mundo, a rocha, também, da qual todos os
nossos pais beberam, por quem todos os eleitos são circuncidados não por
mãos, pelo Espírito Santo, e são lavados de todos os seus pecados e
alimentados com o próprio corpo e sangue de Cristo para a vida eterna.
Semelhança
e diferença dos sacramentos do velho e do novo povo de Deus. Com
respeito ao que é o principal e a própria matéria, os sacramentos de
ambos os povos são iguais. Pois Cristo, o único Salvador e Mediador dos
fiéis, é o principal elemento e a própria substância dos sacramentos em
ambos; porquanto o mesmo Deus é o autor dos dois sacramentos.
Eles
foram dados aos dois povos como sinais e selos da graça e das promessas
de Deus, para que tragam à mente e renovem a lembrança dos grandíssimos
benefícios de Deus e para que distinguissem os fiéis de todas as outras
religiões do mundo; finalmente, para que fossem recebidos
espiritualmente pela fé e ligassem à Igreja os participantes, e os
lembrassem dos seus deveres. Nesses e em outros pontos semelhantes digo
que os sacramentos de ambos os povos não são diferentes como parecem,
embora exteriormente o sejam. E, na verdade. no que diz respeito aos
sinais, fazemos uma maior distinção. Os nossos são mais firmes e mais
duradouros, visto que nunca serão mudados até o fim do mundo. Mais
ainda, os nossos testificam que tanto a substância como a promessa foram
cumpridas ou consumadas em Cristo; os anteriores significavam o que
estava para ser cumprido. Os nossos são também, mais simples e menos
complicados, menos pomposos e menos envolvidos com cerimônias. E ainda
mais, pertencem a um povo mais numeroso, disperso por toda a face da
terra. E, porque são mais excelentes e pelo Espírito Santo despertam
maior fé, resultam ainda, em maior abundância do Espírito.
Nossos
sacramentos sucedem aos antigos, que foram abolidos. Certamente, visto
que Cristo, o verdadeiro Messias, nos é apresentado e a abundância da
graça é derramada sobre o povo do Novo Testamento, os sacramentos do
velho povo de Deus foram abolidos e cessaram; e em seu lugar
colocaram-se os símbolos do Novo Testamento - o Batismo em lugar da
Circuncisão, a Ceia do Senhor em lugar do Cordeiro Pascal e dos
sacrifícios.
Em que consistem os sacramentos. E como outrora os
sacramentos consistiam da palavra, do sinal e da coisa significada,
assim também agora eles se compõem, por assim dizer, dessas mesmas
partes. Pois, a Palavra de Deus os faz sacramentos, o que antes não
eram. A consagração dos sacramentos. São consagrados pela Palavra e
declarados santificados por aquele que os instituiu. Santificar ou
consagrar uma coisa a Deus é dedicá-la a usos sagrados isto é, retirá-la
do uso comum ou profano e destiná-la a uso sagrado, pois, os sinais nos
sacramentos se derivam do uso comum, de coisas externas e visíveis. No
Batismo, o sinal externo é o elemento da água e a ablução visível, feita
pelo ministro; a coisa significada é a regeneração e purificação de
pecados. Na Ceia do Senhor, o sinal externo é o pão e o vinho, tomados
do uso comum do comer e do beber; a coisa significado é o corpo do
Senhor que foi entregue, e seu sangue vertido por nós, ou a comunhão do
corpo e do sangue do Senhor. Por isso, a água, o pão, o vinho, segundo
sua natureza e à parte da instituição divina e do uso sagrado, são
somente aquilo que são chamados, e que experimentamos. Mas, quando a
Palavra do Senhor lhes é acrescentada, com a invocação do nome divino e a
renovação de sua primeira instituição e santificação, então esses
sinais são consagrados e se mostram santificados por Cristo. A primeira
instituição de Cristo e a consagração dos sacramentos permanece sempre
eficaz na Igreja de Deus, de tal modo que aqueles que celebram os
sacramentos, não de modo diferente daquele que o Senhor mesmo
estabeleceu desde o princípio, ainda hoje desfrutam daquela primeira e
sobre-excelente consagração. E por isso, na celebração dos sacramentos,
são repetidas as próprias palavras de Cristo.
Os sinais recebem o
nome das coisas significadas. Porque aprendemos da Palavra de Deus que
estes sinais foram instituídos para outro fim, diverso do uso comum,
ensinamos que eles agora, em seu santo uso, assumem em si os nomes das
coisas significados e não são mais chamados apenas água, pão ou vinho,
mas também, regeneração ou o lavar com água e o corpo e sangue do
Senhor, ou símbolos e sacramentos do corpo e sangue do Senhor. Não que
os símbolos se transformem nas coisas significados ou cessem de ser o
que são por sua natureza. Pois de outro modo não poderiam ser
sacramentos. Se fossem apenas a coisa significado, não seriam sinais.
A
união sacramental. Portanto, os sinais adquirem os nomes das coisas,
porque são símbolos místicos de coisas sagradas, e porque os sinais e as
coisas significados estão sacramentalmente ligados; ligam-se, digo, ou
unem-se pela significação mística e pela vontade e conselho daquele que
instituiu os sacramentos. A água, o pão e o vinho não são sinais comuns,
mas sagrados. E aquele que instituiu a água no batismo não a instituiu
com a vontade e intenção de que os fiéis apenas fossem aspergidos pela
água do batismo; e aquele que mandou comer o pão e beber o vinho na ceia
não queria que os fiéis recebessem apenas pão e vinho sem qualquer
mistério, da maneira como comem pão em suas casas, mas, que
participassem espiritualmente das coisas significados, sendo pela fé
verdadeiramente lavados de seus pecados e participantes de Cristo.
As
seitas. Portanto, não podemos absolutamente aprovar os que atribuem a
santificação dos sacramentos a não sei que propriedades e fórmulas ou ao
poder de palavras pronunciadas por alguém que é consagrado e o que tem a
intenção de consagrar, ou por outros acidentes quaisquer, que nem
Cristo nem os apóstolos nos entregaram por palavras ou exemplo. Nem
aprovamos tampouco a doutrina daqueles que falam dos sacramentos apenas
como sinais comuns, não santificados nem eficazes. Nem aprovamos os que
desprezam o aspecto visível dos sacramentos por causa do invisível, e
assim crêem que os sinais são supérfluos porque pensam que já gozam as
próprias coisas significados, como dizem que os messalianos sustentavam.
A
coisa significada não está incluída nos sacramentos nem a eles ligada.
Não aprovamos a doutrina daqueles que ensinam que a graça e as coisas
significadas estão de tal modo ligadas aos sinais e neles incluídas que,
todos aqueles que participarem externamente dos sinais, não importando
que espécie de pessoas sejam, são também interiormente participantes da
graça e das coisas significados.
No entanto, como não julgamos o
valor dos sacramentos pela dignidade ou indignidade dos ministros, assim
também não os avaliamos pela condição daqueles que os recebem. Pois,
sabemos que o valor dos sacramentos depende da fé e da veracidade e
exclusiva bondade de Deus. Assim como a Palavra de Deus permanece a
verdadeira Palavra de Deus que, em sendo pregada, não são meras palavras
repetidas, mas ao mesmo tempo, as coisas significadas ou anunciadas em
palavras são oferecidas por Deus, embora os ímpios e incrédulos as ouçam
e compreendam, contudo não aproveitam as coisas significadas, porque
não as recebem pela verdadeira fé, assim os sacramentos, que pela
Palavra consistem de sinais e de coisas significadas, continuam sendo
sacramentos verdadeiros e invioláveis, significando não somente coisas
sagradas mas, pelo oferecimento de Deus, as próprias coisas
significadas, embora os incrédulos não percebam as coisas oferecidas.
Neste caso, a culpa não é de Deus que as dá e as oferece, mas dos homens
que as recebem sem fé e de modo ilegítimo, cuja incredulidade, porém,
não invalida a fidelidade de Deus (Rom 3.3 ss).
O fim para o qual
os sacramentos foram instituídos. Desde que o fim para o qual os
sacramentos foram instituídos foi também explanado, de passagem, quando
logo no começo de nossa exposição se mostrou o que eles são, não há
necessidade de se fazer a repetição molesta daquilo que já foi dito.
Conseqüentemente, portanto, falaremos agora, separadamente, dos
sacramentos do novo povo.
20. Do santo batismo.
A
instituição do batismo. O batismo foi instituído e consagrado por Deus.
Primeiro João batizou, tendo imergido Cristo na água do Jordão. Dele
passou para os apóstolos, que também batizavam com água. Ordenou-lhes
expressamente o Senhor que pregassem o Evangelho e batizassem “em nome
do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mat 28.19). E nos Atos disse São
Pedro aos judeus que perguntaram o que deviam fazer: “... e cada um de
vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos
pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo” (At 2.38). Em
conseqüência disso, o batismo é chamado por alguns, sinal de iniciação
para o povo de Deus, visto que por ele os eleitos de Deus são
consagrados a Deus.
Um só batismo. Há um só batismo na Igreja de
Deus; e é suficiente ser uma só vez batizado ou consagrado a Deus. Pois o
batismo, uma vez recebido, continua por toda a vida; e é o selo
perpétuo de nossa adoção.
O que significa ser batizado. Ser
batizado em nome de Cristo é ser arrolado, incluído e recebido na
aliança e na família, e assim na herança dos filhos de Deus; sim, e
nesta vida ser chamado segundo o nome de Deus, isto é, ser chamado filho
de Deus; ser purificado também da impureza dos pecados, e receber a
multiforme graça de Deus para uma vida nova e inocente. O batismo,
portanto, retém na memória e renova o grande benefício que Deus
dispensou à raça dos mortais. Pois todos nascemos na impureza do pecado e
somos filhos da ira. Mas Deus, que é rico em misericórdia, nos purifica
gratuitamente dos nossos pecados pelo sangue de seu Filho, e, nele nos
adota como seus filhos, e por uma santa aliança nos une a si mesmo e nos
enriquece com inúmeros dons, para podermos viver uma nova vida. Todas
estas coisas são consignadas pelo batismo. Internamente, somos
regenerados, purificados e renovados por Deus mediante o Espírito Santo;
e exteriormente recebemos o selo dos maiores dons na água, pela qual
são também representados os maiores benefícios, e como que colocados
diante dos nossos olhos para serem observados.
Somos batizados
com água. Por isso, somo batizados, isto é, lavados ou aspergidos com a
água visível. Pois a água lava as impurezas, resfria e refresca os
corpos quentes e cansados. E a graça de Deus realiza estas coisas para
as almas, e o faz de modo invisível ou espiritual.
A obrigação do
batismo. Deus também nos separa de todas as religiões e povos estranhos
pelo símbolo do batismo, e nos consagra a si mesmo como sua
propriedade. Confessamos, portanto, nossa fé quando somos batizados, e
sujeitamo-nos a Deus pela obediência, mortificação da carne e novidade
de vida, e, com isso, alistamo-nos na santa milícia de Cristo para
lutarmos durante toda a nossa vida contra o mundo, Satanás e nossa
própria carne. Ademais, somos batizados no corpo da Igreja para, com
todos os seus membros, podermos de modo distinto, participar de uma só e
da mesma religião e dos serviços mútuos.
A forma do batismo.
Cremos que a mais perfeita forma de batismo é aquela pela qual Cristo
foi batizado e pela qual os apóstolos batizaram. Aquilo, portanto, que
pelo expediente do homem foi acrescentado posteriormente, e usado na
Igreja, não consideramos necessário à perfeição do batismo. Por exemplo,
o exorcismo, o uso de velas acesas, óleo, sal, cuspo e outras coisas
semelhantes como a idéia de que o batismo deve ser administrado duas
vezes por ano com um grande número de cerimônias. Cremos que um só
batismo da Igreja foi santificado na primeira instituição realizada por
Deus, e que ele é consagrado pela Palavra, e é também eficaz ainda hoje,
em virtude da primeira bênção de Deus.
O ministro do batismo.
Ensinamos que o batismo não deve ser administrado na Igreja por mulheres
ou por parteiras. São Paulo vetou à mulher os ofícios eclesiásticos. E o
batismo pertence aos ofícios eclesiásticos.
Anabatistas.
Condenamos os anabatistas, que negam que as criancinhas recém-nascidas
dos fiéis devam ser batizadas. Mas, segundo o ensino evangélico, “dos
tais é o Reino de Deus”, e as mesmas se encontram na aliança de Deus.
Por que, então, não deve o sinal da aliança de Deus ser conferido a
elas? Por que não devem aqueles que são propriedade de Deus e estão na
sua Igreja ser iniciados pelo santo batismo? Condenamos os anabatistas
em outras das suas doutrinas peculiares, que eles sustentam em oposição à
Palavra de Deus. Não somos, portanto, anabatistas e nada temos em comum
com eles.
21. Da santa Ceia do Senhor.
A Ceia do Senhor. A
Ceia do Senhor - também chamada Mesa do Senhor e Eucaristia, isto é,
Ação de Graças - é em geral chamada ceia porque foi instituída por
Cristo em sua última ceia, e ainda a representa, e porque nela os fiéis
são espiritualmente alimentados e dessedentados.
O autor e
consagrador da Ceia. O autor da Ceia do Senhor não é nenhum anjo ou
homem, mas o próprio Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, que
primeiro a consagrou para sua Igreja. Essa consagração ou bênção ainda
permanece entre todos quantos celebram não outra ceia, mas aquela mesma,
que o Senhor instituiu e na qual eles recitam as palavras da Ceia do
Senhor, e em tudo voltam o olhar com verdadeira fé para o único Cristo, e
recebem, como de suas mãos, aquilo que recebem pelo ministério dos
ministros da Igreja.
Um memorial das bênçãos de Deus. Por este
rito sagrado o Senhor deseja manter em viva lembrança a maior bênção que
concedeu aos mortais, a saber, que pelo dom do seu corpo e pelo
derramamento do seu sangue ele perdoou todos os nossos pecados e nos
redimiu da morte eterna e do poder do Diabo, e agora nos alimenta com a
sua carne e nos dá a beber o seu sangue, os quais, recebidos
espiritualmente com verdadeira fé, nos alimentam para a vida eterna. E
essa bênção tão grande se renova tantas vezes quantas é celebrada a Ceia
do Senhor. Eis o que disse o Senhor: “Fazei isto em memória de mim”.
Esta santa Ceia sela, também, para nós, que o próprio corpo de Cristo
foi verdadeiramente entregue por nós, e seu sangue vertido para remissão
dos nossos pecados, a fim de que em nada a nossa fé venha a vacilar.
O
sinal e a coisa significada. E isto é visivelmente representado de modo
exterior por este sacramento pelo ministrante e, como que exposto aos
olhos para ser contemplado, aquilo que pelo Espírito Santo é concedido
interiormente na alma de maneira invisível. O pão é exteriormente
oferecido pelo ministro, e ouvem-se as palavras do Senhor: “Tomai,
comei; este é o meu corpo”; e “Recebei e reparti entre vós. Bebei dele
todos; porque isto é o meu sangue”. Portanto, os fiéis recebem o que é
dado pelo ministro do Senhor, e comem o pão do Senhor e bebem do cálice
do Senhor. Ao mesmo tempo, pela obra de Cristo por meio do Espírito
Santo, interiormente recebem também a carne e o sangue do Senhor e deles
se alimentam para a vida eterna. Pois a carne e o sangue de Cristo são o
verdadeiro alimento e a verdadeira bebida para a vida eterna; e Cristo
mesmo, desde que foi entregue por nós e é nosso Salvador, é o principal
elemento na Ceia, e não permitimos que nenhuma outra coisa seja colocada
em seu lugar.
Mas, para que se compreenda mais retamente e com
clareza corno a carne e o sangue de Cristo são o alimento e a bebida dos
fiéis, e são recebidos pelos fiéis para a vida eterna, acrescentaríamos
estas poucas coisas. Há mais de uma espécie de comer. Há o comer
corporal, pelo qual o alimento é posto pelo homem na boca, mastigado com
os dentes e deglutido para o estômago. No passado, os cafarnauenses
acharam que a carne do Senhor devia ser comida desse modo, mas são
refutados pelo próprio Senhor, em João, cap. 6. Desde que a carne de
Cristo não pode ser comida corporalmente, sem infâmia e selvageria,
assim ela não é alimento para o estômago. Todos os homens são obrigados a
admitir isso. Desaprovamos, portanto, o cânon nos decretos do papa, Ego
Berengariust (De Consecrat ., Dist . 2). Nem a piedosa antiguidade
cria, nem cremos nós que o corpo de Cristo possa ser corporalmente e
essencialmente comido pela boca.
O comer o Senhor
espiritualmente. Há também um comer espiritual do corpo de Cristo; não
que pensemos que, por isso, o próprio alimento se mude em espírito, mas o
corpo e o sangue do Senhor, embora permanecendo em sua própria essência
e propriedade, nos são espiritualmente comunicados, certamente não de
modo corporal, mas espiritual, pelo Espírito Santo, que aplica em nós e
nos confere estas coisas que nos foram preparadas pelo sacrifício do
corpo e do sangue do Senhor por nós, a saber, a remissão de pecados, o
livramento e a vida eterna; de tal modo que Cristo vive em nós e nós
vivemos nele, sendo que ele nos possibilita recebê-lo pela verdadeira fé
para que possa tornar-se, para nós, esse alimento e bebida espirituais,
isto é, nossa vida.
Cristo como nosso alimento sustenta-nos a
vida. Assim como o alimento e a bebida corporal não só refazem e
fortalecem nossos corpos, mas também os conservam vivos, também a carne
de Cristo, entregue por nós e seu sangue vertido por nós não só refazem e
fortalecem nossas almas, mas também as conservam vivas, não na medida
em que sejam corporalmente comidos e bebidos, mas na medida em que nos
são comunicados espiritualmente pelo Espírito de Deus, como diz o
Senhor: “O pão que darei pela vida do mundo, é a minha carne” (João
6.51), e “a carne” (sem dúvida, corporalmente comida) “para nada
aproveita; o espírito é o que vivifica” (v. 63). E mais: “As palavras
que eu vos tenho dito, são espírito e são vida”.
Cristo recebido
pela fé. E como devemos, pelo comer, receber alimento em nossos corpos
para que ele atue em nós e prove a sua eficácia em nós - visto que ele
não é de comum proveito quando retido fora de nós - assim é necessário
que recebamos Cristo pela fé, para que ele se torne nosso e viva em nós e
nós nele. Pois, ele diz: “Eu sou o pão da vida; o que vem a mim, jamais
terá fome; e o que crê em mim, jamais terá sede” (João 6.35); e também:
“Quem de mim se alimenta, por mim viverá... permanece em mim e eu nele”
(vs. 57, 56).
Alimento espiritual. De tudo isto, fica claro que
por alimento espiritual não queremos dizer algum alimento imaginário que
não se sabe bem o que seja mas o próprio corpo do Senhor dado por nós,
que entretanto é recebido pelos fiéis não corpórea, mas espiritualmente
pela fé. Nesta questão seguimos o ensino do próprio Salvador, Cristo o
Senhor, segundo João, cap. 6.
O comer é necessário à salvação. E
este comer da carne e beber do sangue do Senhor é tão necessário à
salvação, que sem ele, nenhum homem pode ser salvo. Mas este comer e
beber, espiritualmente, ocorrem também à parte da Ceia do Senhor, sempre
e onde quer que o homem creia em Cristo. A isto talvez se aplique a
frase de Santo Agostinho: “Por que preparas os dentes e o estômago? Crê e
terás comido”.
O comer sacramental do Senhor. Além do comer
altamente espiritual há também o comer sacramental do corpo do Senhor,
pelo qual o crente participa não só espiritual e interiormente do
verdadeiro corpo e sangue do Senhor, mas também, pela aproximação à Mesa
do Senhor, recebe externamente o sacramento visível do corpo e do
sangue do Senhor. Sem dúvida alguma, já antes, quando creu, recebeu o
crente o alimento que lhe dá a vida, e ainda o usufrui. Portanto, quando
ele agora recebe o sacramento não é que não receba algo. Pois ele
progride na comunicação contínua do corpo e do sangue do Senhor, e assim
sua fé se aviva e se desenvolve mais e mais, sendo revigorada pelo
alimento espiritual. Enquanto vivemos, nossa fé aumenta continuamente.
Ora, aquele que, externamente, recebe o sacramento com verdadeira fé,
não recebe apenas o sinal, mas também, como dissemos, desfruta a própria
realidade. Além disso, obedece ele à instituição e ao mandamento do
Senhor, e com mente alegre rende graças pela própria redenção e a da
humanidade toda, realizando uma fiel comemoração da morte do Senhor,
dando testemunho diante da Igreja, de cujo corpo é membro. Assegura-se
também, aos que recebem o sacramento que o corpo do Senhor foi dado e
seu sangue derramado, não apenas pelos homens em geral, mas,
particularmente por todo fiel comungante, para quem ele é alimento e
bebida para a vida eterna.
Os incrédulos recebem o sacramento
para seu julgamento. Mas, aquele que se aproxima da sagrada Mesa do
Senhor sem fé, participa somente do sacramento e não recebe a essência
do sacramento, de onde provém vida e salvação; e tais pessoas participam
indignamente da Mesa do Senhor. Ora, os que comem o pão e bebem o
cálice do Senhor de modo não digno, tornam-se culpados do corpo e do
sangue do Senhor comendo e bebendo para si mesmo condenação (I Co
11.26-29). Não se aproximando com verdadeira fé, desonram a morte de
Cristo e, conseqüentemente, comem e bebem condenação para si mesmos.
A
presença de Cristo na Ceia. Nós, pois, não identificamos o corpo do
Senhor e seu sangue com o pão e o vinho a ponto de dizer que o próprio
pão é o corpo de Cristo, exceto no sentido sacramental; ou que o corpo
de Cristo está oculto corporeamente sob o pão, de modo que deve ser
adorado sob a forma de pão; ou ainda que, quem quer que receba o sinal,
recebe também a própria realidade. O corpo de Cristo está nos céus, à
mão direita do Pai; e, portanto, nossos corações devem elevar-se para o
alto e não se fixarem no pão, nem deve o Senhor ser adorado no pão.
Contudo, o Senhor não está ausente de sua Igreja, quando esta celebra a
Ceia. O sol, que está afastado de nós, nos céus, encontra-se,
entretanto, efetivamente presente em nosso meio. Quanto mais o Sol da
justiça, Cristo, embora estando ausente de nós nos céus, pelo seu corpo,
não estará presente conosco, não corporal, mas, espiritualmente, pela
sua operação vivificadora, como ele mesmo declarou, por ocasião da
última Ceia, que haveria de estar presente conosco (João, caps. 14, 15 e
16). Decorre dai que não temos uma Ceia sem Cristo, mas uma Ceia
incruenta e mística, como foi universalmente chamada pela antiguidade.
Outros
propósitos da Ceia do Senhor. Além do mais, na celebração da Ceia do
Senhor, somos admoestados a estarmos conscientes de cujo corpo nos
tornamos membros, e portanto, a sermos uma só mente com todos os irmãos;
a viver uma vida santa e a não nos corrompermos com a iniqüidade e com
religiões estranhas; mas, perseverando na verdadeira fé até o fim da
vida, esforçarmo-nos para alcançar a excelência da santidade de vida.
Preparação
para a Ceia. Convém, portanto, que tendo de participar da Ceia,
primeiro examinemo-nos a nós mesmos, segundo o mandamento do apóstolo,
especialmente quanto à fé que temos, se cremos que Cristo veio para
salvar os pecadores e chamá-los ao arrependimento, e se cremos que
pertencemos ao número dos que foram libertados e salvos por Cristo; e se
estamos resolvidos a mudar nossa vida ímpia, a fim de levarmos uma vida
santa e, com o auxílio do Senhor, a perseverar na verdadeira religião e
na harmonia com os irmãos, e a render graças devidas a Deus pelo seu
livramento.
A observância da Ceia com pão e vinho. Julgamos que o
rito, a maneira ou forma da Ceia mais simples e excelente seja aquela
que mais se aproxime da primeira instituição do Senhor e da doutrina dos
apóstolos. Consiste na proclamação da Palavra de Deus, em orações
piedosas, na ação do Senhor mesmo, e em sua repetição, comendo do corpo
do Senhor, e bebendo de seu sangue; relembrando a morte do Senhor e ele
fiel ação de graças; e numa santa participação na união do corpo da
Igreja.
Desaprovamos, pois, os que privaram os fiéis de um dos
elementos do sacramento, a saber, do cálice do Senhor. Estes pecam
seriamente contra a ordem do Senhor, que diz: “Bebei dele todos”; o que
ele não disse de modo tão expresso a respeito do pão.
Não estamos
discutindo, agora, que espécie de missa existiu outrora entre os
antigos, se deve ser tolerada ou não. Mas, dizemos isto abertamente: a
missa agora usada em toda a Igreja Romana foi abolida em nossas igrejas
por muitas e boas razões, as quais, para sermos breve, não enumeramos
agora em pormenores. Não poderíamos aprovar a mudança de uma ação
salutar em um espetáculo inútil, e num meio de alcançar mérito, e
celebrado por um preço. Nem poderíamos aprovar a afirmação de que na
mesma, o sacerdote efetua o próprio corpo do Senhor, e realmente o
oferece pela remissão dos pecados dos vivos e dos mortos, e ainda para a
honra, veneração e lembrança dos santos no céu, etc.
22. Do culto e das reuniões na Igreja.
Como
deve ser o culto. Embora se permita a todos os homens lerem as
Escrituras particularmente em casa, pela instrução edificando-se
mutuamente na verdadeira religião, no entanto, para que a Palavra de
Deus seja anunciada convenientemente ao povo, e se façam publicamente
orações e súplicas, bem como sejam os sacramentos administrados de modo
próprio, e se levantem ofertas para os pobres e para o pagamento de
todas as despesas da Igreja, e para a conservação das relações sociais, é
muito necessário que se mantenham as reuniões de culto ou da Igreja.
Pois, é certo que na Igreja apostólica e primitiva, havia tais
assembléias, freqüentadas por todos os piedosos.
As reuniões para
culto não devem ser negligenciadas. Todos quantos negligenciam as
reuniões de culto, delas ficando ausentes, desprezam a verdadeira
religião, devendo ser exortados pelos pastores e magistrados piedosos
para não continuarem ausentes dos cultos.
As reuniões devem ser
públicas. As reuniões da Igreja não devem ser ocultas ou às escondidas,
mas públicas e bem freqüentadas, a não ser que a perseguição movida
pelos inimigos de Cristo e da Igreja não permita que sejam públicas.
Pois, sabemos como sob a tirania dos imperadores romanos, as reuniões da
Igreja Primitiva realizavam-se em lugares secretos.
Lugares
decentes de reunião. Além disso, os lugares onde os fiéis se congregam
devem ser decentes, e em tudo próprios para a Igreja de Deus. Portanto,
devem-se escolher prédios com bastante espaço ou templos, mas expurgados
de tudo o que não seja adequado a uma Igreja. E tudo deve concorrer
para o decoro, a necessidade e a piedosa decência, a fim de que nada
fique faltando, nada que seja indispensável ao culto e às obras
necessárias da Igreja.
Nas reuniões, devem-se observar a modéstia
e a humildade. E como cremos que Deus não habita em templos feitos por
mãos, também sabemos que, por causa da Palavra de Deus e do uso sagrado,
os lugares dedicados a Deus e ao seu culto não são profanos, mas
sagrados, e os que neles estão presentes devem conduzir-se com
reverência e com modéstia, reconhecendo que se encontram em lugar
sagrado, na presença de Deus e de seus santos anjos.
A verdadeira
ornamentação dos santuários. Portanto, todo aparato, orgulho e tudo o
que seja impróprio à humildade, à disciplina e à modéstia cristãs, deve
ser banido dos santuários e lugares de oração dos cristãos. Pois, a
verdadeira ornamentação das igrejas não consiste em marfim, ouro e
pedras preciosas, mas na frugalidade, na piedade e nas virtudes daqueles
que estão na Igreja. Que todas as coisas sejam feitas com decência e
ordem na igreja e, finalmente, que todas as coisas concorram para a
edificação.
Culto na linguagem comum. Calem-se, pois, todas as
línguas estranhas nas reuniões de culto, e sejam todas as coisas
expressas na língua do povo, compreendida por todas as pessoas
presentes.
23. Das orações da Igreja, do cântico e das horas canônicas.
Vernáculo.
Certo é que se permite a quem quer que seja orar em particular em
qualquer língua que entenda, mas as orações públicas nas reuniões de
culto devem ser feitas em vernáculo, a língua conhecida do povo. Oração.
Que todas as orações dos fiéis sejam dirigidas somente a Deus, pela
mediação única de Cristo, procedentes da fé e do amor. O sacerdócio de
Cristo, o Senhor, e a verdadeira religião proíbem invocar os santos no
céu, ou usá-los como intercessores. Devem-se fazer orações pelos
magistrados, pelos reis e por todos quantos estão investidos de
autoridade, pelos ministros da Igreja e por todas as necessidades das
igrejas. Em calamidades, especialmente em se tratando da Igreja, deve-se
orar sem cessar, tanto em particular como publicamente.
Oração
livre. Ademais, deve a oração ser voluntária, sem constrangimento e não
buscar recompensa. Não convém mesmo que se limite, supersticiosamente a
oração a um lugar, como se não fosse permitido orar em qualquer lugar,
exceto num templo. Nem é necessário que as orações públicas sejam as
mesmas quanto à forma e ao tempo, em todas as igrejas. Que cada igreja
use de liberdade neste sentido. Diz Sócrates, em sua história: “Em todas
as regiões do mundo não encontrareis duas igrejas, que concordem
inteiramente quanto à oração” (Hist. ecclesiast . V. 22,57). Os autores
de tais diferenças - é de supor-se - foram aqueles, que se encontravam à
frente das igrejas em certas ocasiões. No entanto, se concordam,
recomenda-se com insistência que o exemplo seja imitado por outras.
O
método para as orações públicas. Como em todas as coisas, também nas
orações públicas deve haver um padrão, a fim de que não se tornem longas
demais e cansativas. A maior parte das reuniões de culto deve,
portanto, destinar-se ao ensino evangélico, tomando-se o cuidado para
que a congregação não se aborreça com as orações muito longas, de forma
que ao chegar a hora de ouvir a pregação do Evangelho, os presentes, já
exaustos, deixem a reunião ou queiram suprimi-la. Para tais pessoas o
sermão parece muito longo, quando de outra forma, seria breve. Convém
pois, que os pregadores saibam manter a medida.
Cântico. De igual
forma, deve o cântico ser usado com moderação no culto. O Cântico
chamado Gregoriano encerra muitas coisas tolas; daí com justa razão ser
ele rejeitado por muitas de nossas igrejas. Não se deve condenar as
igrejas, que embora tendo bom sermão não têm um bom cântico. Nem todas
podem contar com a vantagem de ter boa música. Sabemos pelo testemunho
da antiguidade que se o hábito de cantar é muito velho nas Igrejas
Orientais, só tardiamente foi aceito no Ocidente.
Horas
canônicas. A antiguidade nada conhecia das horas canônicas, isto é, das
orações preparadas para certas horas do dia, cantadas ou recitadas pelos
papistas, o que se comprova pelos seus breviários e por outras fontes.
Há nelas não poucos absurdos, dos quais nada direi mais; são elas, com
razão, omitidas pelas igrejas que colocaram em seu lugar coisas
benéficas para toda a Igreja de Deus.
24. Dos dias santos, dos jejuns e da escolha dos alimentos.
O
tempo necessário para o culto. Embora não esteja a religião limitada
pelo tempo, contudo não pode ser cultivada ou praticada sem distribuição
e arranjo próprio do tempo. Toda igreja, portanto, escolhe determinado
horário para as orações públicas, a pregação do Evangelho e a celebração
dos sacramentos, não sendo permitido a ninguém transtornar esse horário
da igreja a seu bel prazer. Pois, a não ser que algum tempo livre seja
reservado ao exercício da religião, sem dúvida os homens absorvidos
pelos seus negócios, estariam afastados dela.
O Dia do Senhor.
Por isso vemos que nas igrejas antigas não havia apenas certas horas da
semana destinadas às reuniões, mas que também o Dia do Senhor, desde o
tempo dos apóstolos, fora separado para as mesmas, e para o santo
repouso, prática essa, acertadamente preservada por nossas igrejas para
fins de culto e serviço de amor.
Superstição. Neste ponto,
entretanto, não cedemos às observâncias dos judeus e às superstições.
Pois, não cremos que um dia seja mais santo do que outro, nem pensamos
que o repouso em si mesmo seja aceitável a Deus. Além disso, guardamos o
Dia do Senhor, e não o sábado como livre observância.
As festas
de Cristo e dos santos. Ademais, se na liberdade cristã, as igrejas
celebram de modo religioso a lembrança do nascimento do Senhor, a
circuncisão, a paixão, a ressurreição e sua ascensão ao céu, bem como o
envio do Espírito Santo sobre os discípulos, damos-lhes plena aprovação.
Não aprovamos, contudo, as festas instituídas em honra de homens ou dos
santos. Os dias santificados têm a ver com a primeira Tábua da Lei e só
a Deus pertencem. Finalmente, os dias santificados, instituídos em
honra dos santos, os quais abolimos, têm muito de absurdo e inútil, e
não devem ser tolerados. Entretanto, confessamos que a lembrança dos
santos, em hora e lugar apropriados, pode ser recomendada de modo
aproveitável ao povo em sermões, e os seus santos exemplos, apresentados
como dignos de serem imitados por todos.
Jejum. Ora, quanto mais
seriamente a Igreja de Cristo condena a gula, a embriaguez e toda a
espécie de lascívia e intemperança, tanto mais e com insistência,
recomenda-nos o jejum cristão. Pois, jejuar nada mais é do que a
abstinência e moderação dos piedosos e uma disciplina, cuidado e castigo
de nossa carne, exercitados segundo a necessidade do momento, pelos
quais nos humilhamos diante de Deus, privando nossa carne de seu
combustível, de modo que possa mais espontânea e facilmente obedecer ao
Espírito. Portanto, aqueles que não dão atenção a tais coisas não
jejuam, mas imaginam que o fazem se abarrotam o estômago uma vez por dia
e a certa hora ou em horário prescrito abstêm-se de certos alimentos,
pensando que, pelo facto de terem praticado essa obra agradam a Deus e
estão fazendo algo de bom. O jejum vem a ser um auxílio para as orações
dos santos e para todas as virtudes. Mas, como se vê nos livros dos
profetas, o jejum dos judeus, que se abstinham de alimento, não porém da
iniqüidade, não agradava a Deus.
Jejum público e particular. Há
jejum público e pessoal. Nos tempos antigos celebravam-se jejuns
públicos, em tempos de calamidade ou em situações difíceis da Igreja.
Abstendo-se totalmente de alimento até o anoitecer, dedicavam-se todo o
tempo a santas orações, ao culto a Deus e ao arrependimento. Eles
diferiam pouco do luto, havendo freqüente menção do mesmo nos Profetas,
especialmente em Joel, cap. 2. Tal jejum deve ser observado ainda hoje,
sempre que a Igreja se encontre em situação difícil. Os jejuns
particulares podem ser praticados por qualquer um de nós, quando se
sente afastado do Espírito. Pois, dessa maneira, priva-se a carne de seu
combustível.
Características do jejum. Todo jejum deve partir de
um espírito livre, espontâneo e realmente humilde, e não simulado, só
para conquistar o aplauso ou favor dos homens, e muito menos para que
por meio dele pretenda o homem ser merecedor de justiça. Mas, que cada
um jejue para este fim - não dar lugar aos desejos da carne e servir a
Deus mais fervorosamente.
Quaresma. O jejum da Quaresma tem o
testemunho dos antigos, mas não dos escritos apostólicos, pelo que não
deve e não pode ser imposto aos fiéis. É certo que no princípio havia
várias formas ou costumes de jejum. Por isso, diz Irineu, escritor muito
antigo: “Uns pensam que se deve observar o jejum somente um dia,
outros, dois dias, outros mais dias, e alguns, quarenta dias. Tal
diversidade na observância do jejum não começou em nossos tempos, porém,
muito antes de nós por aqueles, suponho, que não se apegavam
simplesmente ao que lhes havia sido entregue desde o princípio, mas
passaram a outro costume por negligência ou ignorância” (Fragm. 3 , ed.
Stieren, I, 824 s). Além disso, Sócrates, o historiador, diz: “Visto que
não se encontra nenhum texto antigo acerca deste assunto, penso que os
apóstolos o deixaram à opinião de cada pessoa, de modo que cada qual
pudesse fazer o que é bom, sem temor ou constrangimento” (Hist.
ecclesiast , V. 22,40).
A escolha dos alimentos. Quanto à escolha
dos alimentos, julgamos que no jejum se deve negar à carne tudo o que
possa torná-la mais arrogante e deleitá-la mais, aguçando-lhe o desejo
de peixe, ou carne, ou condimentos, ou de guloseimas e bons vinhos. Além
do mais, sabemos que todas as criaturas de Deus foram feitas para o uso
e serviço dos homens. Tudo o que Deus fez é bom, devendo ser usado no
temor de Deus e com moderação (Gen 2.15 s). Diz o apóstolo: “Todas as
coisas são puras para os puros” (Tit I.15), e mais: “Comei de tudo o que
se vende no mercado, sem nada perguntardes por motivo de consciência”
(I Co 10.25). O mesmo apóstolo chama a doutrina daqueles que ensinam
abstenção de carnes “doutrina de demônios”; pois “... alimentos, que
Deus criou para serem recebidos, com ações de graças, pelos fiéis, e por
quantos conhecem plenamente a verdade; pois, tudo o que Deus criou é
bom e, recebido com ações de graça, nada é recusável” (I Tim 4.1 ss).
Seitas.
Portanto, condenamos inteiramente os tacianos e os encratitas, bem como
todos os discípulos de Eustátio, contra quem foi convocado o Sinodo
Gangrense.
25. Da catequese, do conforto e das visitas aos doentes.
A
juventude deve ser instruída na piedade. O Senhor ordenou ao seu povo
antigo que tivesse o maior cuidado no sentido de que a mocidade, desde a
infância, fosse devidamente instruída, e mais do que isso,
expressamente ordenou em sua Lei, que a ensinasse e lhe interpretasse os
mistérios dos sacramentos. Sabe-se pelos escritos dos evangelistas bem
como dos apóstolos que não é menor o interesse de Deus hoje, pela
juventude do povo da nova aliança, pois claramente nos dá testemunho
disso, dizendo: “Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraces,
porque dos tais é o reino de Deus” (Mc 10.14). Por isso, os pastores das
igrejas agem de maneira a mais sábia, quando desde cedo e com cuidado,
catequizam a juventude, transmitindo-lhe os primeiros fundamentos da fé,
fielmente ensinando-lhe os rudimentos da nossa religião pela explicação
dos Dez Mandamentos, do Credo Apostólico, da Oração Dominicial e da
doutrina dos sacramentos, com outros princípios semelhantes e tópicos
principais da nossa religião. Que a Igreja mostre a sua fé e diligência
trazendo as crianças para serem catequizadas, desejosa e feliz de ter
seus filhos bem instruídos.
A visitação dos doentes. Visto que os
homens nunca estão mais expostos às mais penosas tentações do que
quando enfraquecidos por enfermidades do espírito ou do corpo, sendo
afligidos por elas, não há dúvida de que nada é mais próprio aos
pastores das igrejas do que zelar com o maior cuidado pelo bem-estar do
rebanho, em doenças ou fraquezas. Portanto, que visitem os enfermos,
prontamente, e que sejam chamados em tempo pelos doentes, se as
circunstâncias assim o exigirem. Que os confortem e confirmem na
verdadeira fé, ajudando-os a lutar contra as perniciosas sugestões de
Satanás. Devem também orar pelos doentes no lar, e se necessário, orar
por eles também no culto público; e cuidem para que sintam felizes ao
partir desta vida. Dissemos anteriormente, que não aprovamos a visitação
papista ao doente com a extrema unção, por ser absurda, não tendo a
aprovação das Escrituras canônicas.
26. Do sepultamento dos fiéis e do cuidado que se deve ter com os mortos; do purgatório e da aparição de espíritos.
O
sepultamento dos corpos. Sendo os corpos dos fiéis o templo do Espírito
Santo, que seguramente cremos hão de ser ressuscitados no último dia,
as Escrituras mandam que sejam entregues à terra, honrosamente e sem
superstição, e também que se façam referências honrosas aos santos, que
dormiram no Senhor, bem como se cumpram todos os deveres de piedade
familiar para com suas viúvas e órfãos. Não ensinamos que se tenha
qualquer outro cuidado com os mortos. Portanto, damos ênfase ao facto de
que desaprovamos os cínicos, que negligenciavam os corpos dos mortos e
descuidada e desdenhosamente os lançavam à terra, nunca pronunciando uma
boa palavra acerca do falecido, ou se preocupando com os seus que
ficaram.
O cuidado pelos mortos. Por outro lado, não aprovamos
aqueles que se preocupam excessiva e indevidamente com os mortos; que, à
semelhança dos pagãos, lamentam os seus mortos (embora não censuremos o
luto moderado, que o apóstolo permite em I Tes 4.13, julgando até
desumano não entristecer-se alguém de modo nenhum); e que oferecem
sacrifícios pelos mortos, murmuram certas orações, não sem paramento,
com o fim de, por meio de tais cerimônias, libertar os entes queridos
dos tormentos em que foram imersos pela morte, e pensam serem capazes
assim de libertá-los por meio de tal magia.
O estado da alma que
deixou o corpo. Cremos que os fiéis, depois da morte do corpo, vão
directamente para Cristo e, portanto, não há necessidade de sufrágios e
orações dos vivos pelos mortos, nem de seus ofícios. Igualmente, cremos
que os incrédulos são imediatamente lançados no inferno, do qual não há
saída possível para os ímpios por quaisquer ofícios dos vivos.
Purgatório.
O que alguns ensinam a respeito do fogo do purgatório se opõe à fé
cristã, a saber, “creio no perdão de pecados e na vida eterna”, e à
perfeita purificação mediante Cristo, bem como a estas palavras de
Cristo, nosso Senhor: “Em verdade, em verdade vos digo: Quem ouve a
minha palavra e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, não entra
em juízo, mas passou da morte para a vida” (João 5.24). E estas: “Quem
já se banhou não necessita de lavar senão os pés; quanto ao mais está
todo limpo” (João 13.10).
A aparição de espíritos. No tocante aos
espíritos, ou às almas dos mortos, que algumas vezes aparecem aos vivos
e pedem a estes certos trabalhos, pelos quais possam ser libertados,
incluímos tais aparições entre os ludíbrios, as artimanhas e os enganos
do Diabo, que, como pode transformar-se em anjo de luz, assim se esforça
para, ou transtornar a verdadeira fé, ou lançar dúvida sobre a mesma.
No Velho Testamento, o Senhor proibiu a busca da verdade com os mortos e
toda espécie de contacto com os espíritos (Deut 18.11). Ao rico glutão,
que estava em tormentos, como narra a verdade evangélica, se negou a
faculdade de voltar a seus irmãos. Assim diz o divino oráculo: “Eles têm
Moisés e os profetas; ouçam-nos. Se não ouvem a Moisés e aos profetas,
tampouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os
mortos” (Luc 16.29 ss).
27. Dos ritos, cerimônias e coisas indiferentes.
Cerimônias
e ritos. Ao povo do Velho Testamento foram dadas no passado, certas
cerimônias, como uma espécie de instrução para os que estavam sob a Lei,
como sob um pedagogo ou tutor. Mas, quando veio Cristo, o Libertador, e
a Lei foi abolida, nós os fiéis, não estamos mais debaixo da Lei (Rom
6.14), e as cerimônias desapareceram; por isso os apóstolos não quiseram
conservá-las ou restaurá-las na Igreja de Cristo, a tal ponto que,
abertamente declararam não desejarem pôr nenhuma carga sobre a Igreja.
Portanto, pareceria estarmos introduzindo e restaurando o Judaísmo, se
multiplicássemos as cerimônias e os ritos na Igreja de Cristo, segundo o
costume da Igreja antiga. Por isso, de nenhum modo aprovamos a opinião
daqueles que pensaram que a Igreja de Cristo deve ser regulamentada por
diferentes ritos, como uma espécie de treinamento. Pois, se os apóstolos
não quiseram impor ao povo cristão cerimônias ou ritos, que foram
indicados por Deus, quem, pergunto eu, em perfeito juízo haveria de
impor-lhes invenções imaginadas pelo homem? Quanto mais aumenta o volume
de ritos na Igreja, tanto mais ela se despoja da liberdade cristã, de
Cristo, e de sua fé nele, enquanto o povo busca nos ritos aquilo que
deveria buscar somente pela fé no Filho de Deus, Jesus Cristo. Por
conseguinte, basta aos crentes, alguns ritos moderados e simples, que
não sejam contrários à Palavra de Deus.
Diversidade de ritos. Se
nas igrejas se encontram ritos diferentes, ninguém deve pensar que por
isso estejam as mesmas em desacordo. Diz Sócrates: “Seria impossível
colocar junto no papel todos os ritos das igrejas, em todas as cidades e
países. Nenhuma religião observa os mesmos ritos, ainda que reconheça a
mesma doutrina a respeito deles. Pois, os que pertencem à mesma fé
discordam entre si mesmos acerca dos ritos” (Hist. ecclesiast . V. 22,
30, 62). Isto é o que diz Sócrates. E nós, hoje, tendo em nossas igrejas
diferentes ritos na celebração da Ceia do Senhor e em algumas outras
coisas, contudo não discordamos na doutrina e na fé; nem é, por esse
facto, rasgada em pedaços a unidade e a comunidade de nossas igrejas.
Sempre tiveram as igrejas sua liberdade em tais ritos, como sendo coisas
indiferentes. O mesmo fazemos nós hoje.
Coisas indiferentes.
Mas, ao mesmo tempo as admoestamos a se manterem em guarda, a fim de não
considerarem indiferentes coisas que de facto não o são, como querem
alguns em relação à missa e ao uso das imagens em lugares de culto.
“Indiferente”, escreveu São Jerônimo a Santo Agostinho, “é aquilo que
não é bom nem mau, de modo que, se você o fizer ou não fizer, não é
justo nem injusto”. Portanto, quando para dar validade às coisas
indiferentes se torce a confissão de fé, deixam as mesmas de ser
indiferentes. São Paulo mostra que está certo o homem comer carne, desde
que alguém não o informe de que foi oferecida aos ídolos; pois, de
outra forma estaria errado, visto que comendo, parece aprovar a
idolatria (I Co 8.9 ss; 10.25 ss).
28. Dos bens da Igreja.
Os
bens da Igreja e seu justo uso. A Igreja de Cristo conta com recursos
provindos da generosidade de príncipes e da liberalidade dos fiéis, que
doaram seus bens à Igreja. Necessita a Igreja de tais recursos, e desde
os tempos antigos têm-nos tido para a manutenção de tudo o que lhe é
necessário. Ora, o verdadeiro uso dos bens da Igreja era outrora, e
ainda o é, o de manter o ensino nas escolas e nas reuniões religiosas,
bem como o culto, ritos e edifícios sagrados; manter mestres, discípulos
e ministros, juntamente com outras coisas necessárias, e especialmente
ajudar a alimentar os pobres. Administração. Além disso, homens sábios e
tementes a Deus, destacados na administração dos negócios devem ser
escolhidos para administrar legitimamente os bens da Igreja.
O
mau uso dos bens da Igreja. Mas, se por uma calamidade ou por causa da
ousadia, ignorância ou avareza de alguns, os bens da Igreja forem
malbaratados, devem ser restaurados para o uso sagrado por homens fiéis e
sábios. Pois, não se pode ser conivente com o abuso, o que seria o
maior sacrilégio. Portanto, ensinamos que as escolas e instituições, que
se tenham corrompido na doutrina, no culto e na moral, devem ser
reformadas, e que o serviço aos pobres deve ser organizado de uma forma
responsável, prudente e de boa fé.
29. Do celibato, casamento e administração dos negócios domésticos.
Pessoas
solteiras. Os que têm do céu o dom do celibato, de modo que, de coração
ou de toda a alma podem ser puros e continentes e não são levados pelos
ardores do sexo, sirvam ao Senhor nessa vocação, enquanto se sentirem
dotados do dom divino. E não se julguem melhores do que os outros, mas
sirvam o Senhor continuamente em simplicidade e humildade (I Co 7.7 ss).
Estes estão mais aptos a lidar com as coisas divinas do que aqueles que
se distraem com os interesses particulares de uma família. Mas, no caso
de ser-lhes retirado o dom, e sentirem um durável ardor, lembrem-se das
palavras do apóstolo: “É melhor casar do que viver abrasado” (I Co
7.9).
Casamento. O casamento (que é o remédio da incontinência e é
a própria continência) foi instituído pelo Senhor Deus mesmo, que o
abençoou da maneira mais generosa, e que desejou que o homem e a mulher
se unissem um ao outro inseparavelmente e vivessem juntos em completo
amor e concórdia (Mat 19.4 ss). Sobre isso sabemos o que disse o
apóstolo: “Digno de honra entre todos seja o matrimônio, bem como o
leito sem mácula” (Heb 13,4). E outra vez: “Se a virgem se casar, por
isso não peca” (I Co 7.28).
As seitas. Condenamos, portanto, a poligamia e os que condenam o segundo casamento.
Como
deve ser contraído o casamento. Ensinamos que o casamento deve ser
contraído legalmente no temor do Senhor, e não contra as leis, que
proíbem certos graus de consangüinidade, a fim de que o casamento não
seja incestuoso. O casamento deve ser feito com o consentimento dos
pais, ou dos que estão em lugar dos pais, e acima de tudo para o fim
para o qual o Senhor instituiu o casamento. Além disso, devem
conservar-se santos, com a máxima fidelidade, piedade, amor e pureza dos
que se uniram. Portanto, evitem-se as discussões, as dissenções, a
lascívia e o adultério.
Fórum matrimonial. Devem estabelecer-se
cortes legais na Igreja, tendo juizes santos, que possam cuidar dos
casamentos, reprimir a impureza e a imprudência, diante dos quais se
resolvam os conflitos matrimoniais.
A criação dos filhos. Devem
os filhos ser criados pelos pais, no temor do Senhor; e devem os pais
prover o sustento dos seus filhos, lembrando-se do que disse o apóstolo:
“Ora, se alguém não tem cuidado dos seus e especialmente dos de sua
própria casa, tem negado a fé, e é pior do que o descrente” (I Tm 5.8).
Mas, devem principalmente ensinar a seus filhos para terem uma carreira
ou profissões honestas com que possam manter-se a si mesmos. Devem
conservá-los afastados da ociosidade, e em tudo inculcar neles a
verdadeira fé em Deus, a fim de que, pela falta de confiança ou
demasiada segurança ou pela feia avareza venham a tornar-se dissolutos, e
a fracassar na vida.
Aliás, é muito certo que as obras
praticadas pelos pais com verdadeira fé, mediante os deveres domésticos e
administração de sua casa, são, aos olhos de Deus, santas e
verdadeiramente boas obras. Não são menos agradáveis a Deus do que as
orações, os jejuns e as obras de beneficência. Pois, assim ensinou o
apóstolo em suas epístolas, especialmente nas dirigidas a Timóteo e a
Tito. E com o mesmo apóstolo incluímos entre os ensinos de demônios a
doutrina dos que proíbem o casamento e abertamente o criticam ou
indiretamente o desacreditam, como se não fosse santo e puro.
Execramos
também, a vida impura dos solteiros, a lascívia secreta ou às claras, e
a fornicação dos hipócritas, que simulam continência, sendo os mais
incontinentes de todos. A todos estes julgará Deus. Não desaprovamos as
riquezas dos que as possuem, quando são piedosos e fazem bom uso delas.
Mas, rejeitamos a seita dos Apostólicos, etc.
30. Da magistratura.
A
magistratura vem de Deus. A magistratura em todas as suas formas foi
instituída por Deus mesmo para a paz e a tranquilidade do género humano,
devendo pois, ter o lugar mais importante no mundo. Se o magistrado for
inimigo da Igreja poderá entravar a sua ação e perturbá-la muito; mas
sendo amigo ou membro da Igreja, torna-se o mais útil e excelente entre
os seus membros, podendo ajudá-la muito e dar-lhe assistência melhor do
que todos os demais.
O dever do magistrado. O principal dever do
magistrado é garantir e preservar a paz e a tranquilidade pública.
Indubitavelmente, ele nunca realizará isso com tanto sucesso como quando
é de facto temente a Deus e religioso. Quer isso dizer, quando segundo o
exemplo dos mais santos reis e príncipes do povo do Senhor, promove o
magistrado a pregação da verdade e a fé sincera, extirpa as mentiras e
toda a superstição, juntamente com toda impiedade e idolatria e defende a
Igreja de Deus. Certamente, ensinamos que o cuidado da religião
pertence especialmente ao santo magistrado.
Tenha ele, pois, em
suas mãos a Palavra de Deus, tomando cuidado de que não se ensine nada
contrário à mesma. Governe também o povo, que lhe foi confiado por Deus,
por meio de boas leis, elaboradas segundo a Palavra de Deus,
conservando-o na disciplina, no dever e na obediência. Exerça o seu
ofício de magistrado, julgando com justiça. Não faça acepção de pessoas,
nem aceite subornos. Proteja as viúvas, os órfãos e os aflitos. Use sua
autoridade para punir os criminosos e até bani-los, bem como aos
impostores e bárbaros. Pois, não é sem motivo que ele traz a espada.
(Rom 13.4).
Portanto, desembainhe a espada de Deus contra todos
os malfeitores, sediciosos, ladrões, homicidas, opressores,
blasfemadores, perjuros, e contra todos aqueles, a quem Deus lhe ordenou
punir e mesmo executar. Reprima os hereges incorrigíveis
(verdadeiramente heréticos), que não cessam de blasfemar contra a
majestade de Deus, e de perturbar e mesmo pôr em perigo a Igreja de
Deus.
Guerra. E, se for necessário preservar pela guerra a
segurança do povo, que o magistrado declare guerra em nome de Deus,
desde que tenha primeiramente procurado por todos os meios possíveis
fazer a paz, não podendo pois, salvar seu povo a não ser pela guerra.
Quando, pela fé pratica o magistrado estas coisas, serve a Deus por
aquelas obras, que são verdadeiramente boas, e recebe a bênção do
Senhor.
Condenamos os Anabaptistas que, ao negarem possa o
cristão exercer o ofício de magistrado, negam também que o homem possa
ser, com justiça, condenado à morte pelo magistrado, ou que este possa
declarar guerra, ou que se prestem juramentos ao magistrado, e coisas
semelhantes.
O dever dos súbditos. Como Deus efectua a segurança
do povo através do magistrado, a quem deu ao mundo para ser como uma
espécie de pai, assim ordena a todos os súbditos que reconheçam este
favor de Deus no magistrado. Que os súbditos, pois, honrem e respeitem o
magistrado como ministro de Deus; que o estimem, colaborem com ele,
orem por ele como por um pai, e obedeçam às suas decisões justas e
legítimas. Finalmente, paguem fiel e prontamente todos os impostos e
taxas e todos os demais direitos. E se a segurança pública do país e a
justiça o exigirem, e vir-se o magistrado obrigado a empreender uma
guerra, dêem até suas vidas e derramem o seu sangue pela segurança
pública e pela do magistrado. E o façam em nome de Deus,
espontaneamente, com bravura e alegria. Pois, quem se opõe ao magistrado
provoca contra si mesmo a severa ira de Deus.
Seitas e sedições.
Condenamos, portanto, todos quantos desprezam o magistrado - os
rebeldes, os inimigos do estado, os vilões sediciosos, enfim, todos os
que aberta ou astuciosamente se recusam a cumprir qualquer das
obrigações, que lhes competem. Oramos a Deus, nosso mui misericordioso
Pai do Céu, para que abençoe os governantes, a nós e a todo o seu povo,
mediante Jesus Cristo, nosso único Senhor e Salvador, a quem seja o
louvor e a glória, e as ações de graças, para todo o sempre. Ámen.
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