… Mas o melhor de tudo é crer em Cristo! Luís Vaz de Camões (c. 1524 — 1580)

domingo, 9 de abril de 2017

DEIXEMOS A VAIDADE DO MUNDO!


Deixemos a vaidade do mundo!

Sermão de Santo António

“E, partindo Jesus dali, foi para as partes de Tiro e de Sídon.” (Mt 15:21, ARC, Pt)


 “Jesus, tendo saído...” etc. A saída de Jesus representa a saída de toda a pessoa humana que se converte e sai da vaidade do mundo. Sobre isto, se lê e se canta na história deste domingo (2º da Quaresma): “Tendo Jacob saído de Berseba partiu para Haram (Gn 28,10). Eis como concordam os dois Testamentos: “Jesus, tendo saído daquele lugar, retirou-se para a região de Tiro e Sidónia”, diz Mateus. “Jacob, tendo saído de Berseba, partiu para Haram”, diz Moisés no Génesis. “Jacob é interpretado como 'suplantador’ e representa o pecador convertido que, sob a planta (do pé) da razão pisa, esmaga a sensualidade da carne. Ele sai de Berseba, que se interpreta `sétimo poço’, indicativo da insaciável cobiça deste mundo que é a raiz de todos os males. Deste poço fala João no seu Evangelho, colocando as palavras da Samaritana na conversa com Jesus: “Senhor! Nem sequer tens uma vasilha e o poço é profundo”. E Jesus responde: “Todos aqueles que beberem desta água, ainda terão sede” (Jo 4,11.13). Ó Samaritana! Disseste com toda razão e verdade que o poço é profundo. Com efeito, a cobiça do mundo é profunda, exactamente porque não tem o fundo da suficiência, da saciedade. Por isso, quem quer que seja que beber da água deste poço, entendida como riquezas e prazeres temporais, terá sede de novo. E é verdade mesmo, devemos repetí-lo, porque até Salomão o diz nas parábolas: “A sanguessuga tem duas filhas que dizem: Quero mais, quero mais” (Pv 30,15). A sanguessuga é o diabo que tem sede da nossa alma e deseja bebê-la. Suas são as duas filhas, isto é, as riquezas e os prazeres que sempre dizem: “Quero mais, quero mais” e nunca “Basta!” Diz também o Apocalipse: “Do poço subiu uma fumaça como a fumaça de uma grande fornalha, de modo que o sol e o ar ficaram escuros por causa da fumaça do poço. E da fumaça se espalharam gafanhotos pela terra” (9,2-3). A fumaça que cega os olhos da razão sobe do poço da cobiça mundana que é a grande fornalha da Babilónia. Por causa dessa fumaça é que se obscureceram o sol e o ar. O sol e o ar simbolizam os religiosos. “Sol”, porque os religiosos devem ser sempre puros, cheios de afeição e lúcidos: puros pela castidade, cheios de afeição pelo amor e lúcidos pela pobreza. “Ar”, porque eles devem ser “aéreos”, quer dizer, contemplativos. Infelizmente, por causa dos nossos pecados, saiu a fumaça do poço da cobiça e já defumou a todos. É por isso que Jeremias deplora nas Lamentações: “Ai! Como se escureceu o ouro, como mudou a sua mais esplêndida cor!” (Lm 4,1). Sol e ouro, ar e cor esplêndida significam a mesma coisa. O esplendor do sol e do ouro se obscureceu, o ar e a cor mudaram. E observe-se bem a exactidão com que Jeremias disse: “escureceu e mudou”. Com efeito, a fumaça da cobiça escurece o esplendor da vida religiosa e obscurece a esplêndida cor da contemplação celeste, na qual o vulto da alma torna-se misticamente invadido por uma esplêndida cor, isto é, torna-se cândido e vermelho: cândido pela encarnação do Senhor, vermelho pela sua paixão, cândido pelo branco marfim da castidade, vermelho pelo ardente desejo do esposo celeste. Lamentavelmente, esta esplêndida cor, hoje em dia, está bastante deteriorada porque foi defumada pela fumaça da cobiça, sobre a qual ainda está escrito: “E da fumaça do poço saíram gafanhotos pela terra”. Os gafanhotos, pelos saltos que dão, representam todos os religiosos, os quais, com ambos os pés da pobreza e da obediência, devem saltar para a altura da vida eterna. Infelizmente, porém, com um salto para trás, da fumaça do poço, eles saíram pela terra e, como se diz no Êxodo, “cobriram a superfície da terra” (10,5). Hoje não se vêem mercados, não se fazem reuniões civis ou eclesiásticas nas quais não se encontrem monges e religiosos. Compram e revendem, “constroem e destroem, tornam redondo o que era quadrado” (Horácio, Epist.), isto é, torcem e retorcem qualquer coisa. Nos processos convocam as partes, brigam diante dos juízes, pagam legistas e advogados, induzem testemunhas a jurarem junto com eles por coisas transitórias, frívolas e vãs. Dizei-me, ó religiosos insensatos, se nos profetas ou nos Evangelhos de Cristo ou nas cartas de Paulo, se na regra de São Bento ou de Santo Agostinho vós encontrastes essas brigas, essas distracções, esses clamores e essas declarações nos processos por coisas efémeras e caducas. Ou pelo contrário, não é o próprio Senhor que diz aos Apóstolos, aos monges, a todos os religiosos e não a modo de conselho, mas de ordem mesmo, já que escolheram o caminho da perfeição: “Mas a vós, que isto ouvis, digo: Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam; Bendizei os que vos maldizem, e orai pelos que vos caluniam. Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra; e ao que te houver tirado a capa, nem a túnica recuses; E dá a qualquer que te pedir; e ao que tomar o que é teu, não lho tornes a pedir. E como vós quereis que os homens vos façam, da mesma maneira lhes fazei vós, também. E se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis? Também os pecadores amam aos que os amam. E se fizerdes bem aos que vos fazem bem, que recompensa tereis? Também os pecadores fazem o mesmo.” (Lc 6:27-33, ARC, Pt) Esta é a regra de Jesus Cristo que deve ser preferida a todas as regras, instituições, tradições, invenções, porque “Na verdade, na verdade vos digo que não é o servo maior do que o seu senhor, nem o enviado maior do que aquele que o enviou.” (Jo 13:16, ARC, Pt) Observai, escutai e vede, ó povos todos, se existe bobice, se existe presunção igual à deles. Em suas regras e constituições está escrito que cada monge ou cónego tenha duas ou três túnicas e dois pares de calçados, de acordo com o Inverno ou o Verão. Se por acaso acontece de não terem essas coisas no tempo e no lugar que querem, dizem que não se está observando o que é mandado e isso vai mesquinhamente contra a regra. Olhai com que escrúpulo querem observar a regra naquilo que é prescrito em vantagem do corpo, mas a regra de Jesus Cristo, sem a qual não podem salvar-se, observam pouco ou nada. E o que direi do clero e dos prelados da Igreja? Se um bispo ou um prelado da Igreja fizer algo contra um decreto do Papa Alexandre, Papa Inocêncio ou de qualquer outro papa, imediatamente é acusado, o acusado é convocado, o convocado é julgado por seu crime e, depois de julgado, é deposto. Ao contrário, se ele cometer algo de grave contra o Evangelho de Jesus Cristo, que ele tem por obrigação de vida observar, não há ninguém que o acuse, ninguém que o repreeenda. “Porque todos buscam o que é seu, e não o que é de Cristo Jesus.” (Fp 2:21 , ARC, Pt) O próprio Cristo, com relação a essas coisas, tanto aos religiosos como ao clero, diz: « E assim invalidastes, pela vossa tradição, o mandamento de Deus. Hipócritas, bem profetizou Isaías a vosso respeito, dizendo: Este povo se aproxima de mim com a sua boca e me honra com os seus lábios, mas o seu coração está longe de mim. Mas, em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens.» (Mt 15:6-9, ARC, Pt) E de novo: “Ai de vós, fariseus, que pagais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as hortaliças, mas deixais de lado a justiça e o amor de Deus! Importava praticar estas coisas sem deixar de lado aquelas. Ai de vós, fariseus, que apreciais o primeiro lugar nas sinagogas e as saudações nas praças públicas... Ai de vós, doutores da lei, que impondes aos homens fardos insuportáveis e vós mesmos não tocais esses fardos com um dedo sequer... Ai de vós, doutores da lei, porque tomastes as chaves da ciência! Vós mesmos não entrastes e impedistes os que queriam entrar!” (Lc 11:42-43,46,52). “Mas ai de vós, fariseus, que dizimais a hortelã, e a arruda, e toda a hortaliça, e desprezais o juízo e o amor de Deus. Importava fazer estas coisas, e não deixar as outras. Ai de vós, fariseus, que amais os primeiros assentos nas sinagogas, e as saudações nas praças.” (Lc 11:42-43, ARC, Pt) “E ele lhe disse: Ai de vós também, doutores da lei, que carregais os homens com cargas difíceis de transportar, e vós mesmos nem ainda com um dos vossos dedos tocais essas cargas. Ai de vós que edificais os sepulcros dos profetas, e vossos pais os mataram. Bem testificais, pois, que consentis nas obras de vossos pais; porque eles os mataram, e vós edificais os seus sepulcros. Por isso diz também a sabedoria de Deus: Profetas e apóstolos lhes mandarei; e eles matarão uns, e perseguirão outros; Para que desta geração seja requerido o sangue de todos os profetas que, desde a fundação do mundo, foi derramado; Desde o sangue de Abel, até ao sangue de Zacarias, que foi morto entre o altar e o templo; assim, vos digo, será requerido desta geração. Ai de vós, doutores da lei, que tirastes a chave da ciência; vós mesmos não entrastes, e impedistes os que entravam.” (Lc 11:46-52, ARC, Pt) Portanto, bem se diz no Apocalipse que “saiu a fumaça do poço como a fumaça de uma grande fornalha que escureceu o sol e o ar e, da fumaça do poço, se espalharam sobre a terra os gafanhotos”. E observe-se ainda que o poço da cobiça humana é chamado “sétimo poço” e isso por dois motivos: ou porque é o `lixo’ e a fossa de sete crimes (pois a cobiça, como diz o Apóstolo, é a raiz de todos os males (Tm.6,10), ou porque a cobiça não tem o fundo da saciedade tal qual se lê no Génesis que o “sétimo dia não teve tarde” (Gn 2,2). É deste infeliz poço, pois, que o pecador arrependido consegue sair. A ele se aplicam as palavras: “Jacob, tendo saído de Berseba, partiu para Haram”. “E, partindo Jesus dali, foi para as partes de Tiro e de Sídon”. Vejamos o que significam esses três nomes: Tiro, Sídon e Haram. Tiro é interpretado como “angústia”, Sídon “caça da tristeza”, Haram “excelsa ou indignação”. A pessoa arrependida, que sai da cobiça do mundo, vai para as regiões de Tiro, isto é, da angústia. Observe-se bem que a pessoa verdadeiramente arrependida tem duas angústias: a primeira é aquela que ela sente pelos pecados cometidos, a segunda é aquela que ela tem que aguentar por causa das três tentações, a do diabo, do mundo e a da carne. Sobre a primeira diz Job: “As coisas que antes a minha alma não queria tocar, agora na minha angústia, tornaram-se o meu alimento” (6:7). Com efeito, para a pessoa arrependida, por causa da angústia do arrependimento que ela sente pelos pecados, quais alimentos saborosos são as vigílias intensas, as lágrimas abundantes, os frequentes jejuns. Tudo isso a alma, isto é, a sua sensualidade saciada de coisas temporais, aborrecia até tocar, antes de voltar à penitência. É por isso que diz Salomão nas Parábolas: “A alma saciada pisa o favo de mel, mas a alma faminta toma até o amargo como se fosse doce” (Pv 27:7). Observe-se como calham bem Tiro e Haram, isto é, a angústia e o excelso, pois quem quiser chegar às coisas excelsas, sublimes, não poderá fazê-lo sem passar pela angústia. Assim também, a pessoa arrependida que quer subir à plenitude da vida eterna, deve antes passar por Tiro. É o próprio Senhor que o diz em Lucas: “Não era necessário que o Cristo sofresse - eis aí Tiro - para entrar assim em sua glória - eis aí Haram - ? (24: 26).


Sermão de Santo António

Frei Geraldo Monteiro, Tradução do latim “Sermões Dominicais e Festivos”,
vol. I, pp.105-109 - Ed. Messaggero - Pádua - 1979.
http://www.omensageiro.org.br/sermoes.htm

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Santo António de Lisboa (português europeu) ou Santo Antônio de Lisboa (português brasileiro), também chamado Santo António de Pádua, OFM (Lisboa, 15 de agosto de 1191-1195? - Pádua, 13 de junho de 1231), de seu nome de baptismo Fernando de Bulhões, foi um Doutor da Igreja que viveu na viragem dos séculos XII e XIII.

Desde o começo se faz necessário um esclarecimento. Os “Sermões” de Santo António quase nada têm a ver com os sermões ou homilias católicas; talvez, poderíamos sim defini-los mais com os sermões evangélicos, como um manual, um prontuário, um tratado, um conglomerado de mensagens bíblicas, para serem assimiladas, ruminadas e para que enfeitassem a espiritualidade do povo.

Os temas centrais são os evangelhos dos domingos e das festas. Para desenvolvê-los, Frei António recorre ao missal e ao breviário. O missal oferece, além do Evangelho, o oremos e a epístola; o breviário lhe oferece os textos do Antigo Testamento. Frei António era um homem metódico, e, utilizando estes textos, podia desencadear uma exposição bíblica de amplo repertório e segura eficácia. O texto sagrado é amiúde explicado segundo os quatro sentidos, que gozavam de grande simpatia entre os escolásticos: o sentido literal, o anagógico (em relação à vida eterna), o alegórico e o moral. Os mais desenvolvidos são o alegórico e o moral. Era a mentalidade da época, à qual Frei António se adaptou muito bem

Frei António tinha o nobre propósito de explicar a Bíblia com a Bíblia. Nada mais justo nem mais proveitoso, porque o melhor intérprete de um texto é outro texto ou o contexto! Este método ajudava muito a iluminar, a ampliar e a aprofundar o texto bíblico.

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Fontes Utilizadas:
Vários “Sítios” e enciclopédias na Internet e ainda algumas obras em papel.
Respigado daqui e dali.

Carlos António da Rocha

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