… Mas o melhor de tudo é crer em Cristo! Luís Vaz de Camões (c. 1524 — 1580)

quarta-feira, 3 de maio de 2017

SOBRE A DIVINDADE DO ESPÍRITO SANTO



ATANÁSIO DE ALEXANDRIA

Sobre A Divindade Do Espírito Santo

Carta de  Atanásio a Serapião [1]




Carta de tua Caridade me foi entregue no deserto. E ainda que fosse cruel a perseguição deflagrada contra nós, pelos que nos querem desgraçar, consolou-nos com a tua carta "o Pai das misericórdias e Deus de toda consolação" [2]. Trazendo-me à lembrança a tua caridade e a dos meus sinceros amigos, parecia-me que estáveis todos juntos a mim. Alegrei-me, sim, vivamente com a receção da tua carta. Mas ao ler o conteúdo senti-me de novo esmorecer pela notícia dos que deliberam dedicar-se a lutar contra a verdade.




Com efeito, prezado amigo, tu escrevias-me afligido também por esses que, apesar de separados dos arianos quanto à blasfémia contra o Filho de Deus [3], fomentam pensamentos hostis contra o Espírito Santo, pretendendo-O não apenas criatura, mas até um dos espíritos servis [4], distinto dos anjos tão-somente por grau. Ora, isto é simples oposição simulada aos arianos, e na verdade, contradiz a santa fé. Da mesma forma que os arianos, negando o Filho, negam o Pai, esses também, desacreditando o Espírito Santo, desacreditam o Filho. São duas fações em que se repartem a insurreição contra a verdade para desembocarem na mesma blasfémia contra a Trindade, atacando uns o Filho, outros o Espírito.



Considerando isto e refletindo muito, senti-me deprimido, pois de novo conseguiu o diabo zombar dos que contrariam a sua loucura. Tinha decidido calar-me em tais circunstâncias; entretanto, coagido pela tua Reverência e por causa da gente, redigi a presente carta, que completes no que talvez falte, a refutação da ímpia heresia.



Quanto aos arianos, inicialmente, tem-se que essa opinião não é estranha a eles. Pois uma vez que negaram o Verbo de Deus, é natural que vociferem também contra o Seu Espírito. Por isto não será preciso dirigi-lhes refutações em acréscimo às feitas precedentemente. [5]



Quanto aos que erram sobre o Espírito, convirá proceder de certo "modo" - como diriam eles mesmos [6] - no propósito de responde-lhes. Poderíamos espantar-nos do seu disparate: não querem que o Filho de Deus seja uma criatura - e nisto pensam corretamente - mas então como suportam ouvir que o Espírito do Filho é uma criatura? Se, em razão da unidade do Verbo com o Pai, não querem que o Filho seja uma das coisas chegadas à existência, mas pensam, com razão, ser Ele o artífice [7] das obras (divinas), por que então o Espírito Santo, que possui com o Filho a mesma unidade que Este com o Pai, chamam criatura? Por que não reconheceram que, se não separando do Pai o Filho, salvaguardam a unidade de Deus, separando do Verbo o Espírito já não salvaguardam mais a única divindade da Trindade, mas a dividem, inserindo-Lhe uma natureza estranha, de outra espécie, e acarretando assim igualdade com as coisas criadas? Além disto, tal conceção não apresenta a Trindade como uma realidade única, mas como constituída de duas diversas naturezas, se difere, conforme pensam, a substância do Espírito. Que ideia de Deus há de ser esta, formada de Criador e criatura? Ou bem já não há Tríade, mas Díade com uma criatura, ou, se há Tríade, como de fato há, por que põem entre as criaturas, que vêm abaixo da Tríade, o Espírito da Tríade? Tal seria, mais uma vez, dividir a Trindade [8].



Funesta a respeito do Espírito Santo, a sua doutrina também não é boa a respeito do Filho, pois se aqui fosse correta, sê-Ia-ia igualmente a respeito do Espírito, que procede do Pai e que, sendo próprio do Filho, vem dado por Este a Seus discípulos e a todos os que creem nEle. Desta forma desgarrados, não poderão enfim ter uma fé sadia a respeito do Pai, porque os que resistem ao Espírito, como dizia o grande mártir Estevão, [9] - negam o Filho, e negando o Filho já não têm o Pai.



Por quê todo esse desvario? Em que lugar das Escrituras acharam a designação de anjo dada ao Espírito? Não é preciso que repita agora o que já disse alhures. Ele foi chamado Consolador, Espírito de filiação, Espírito de Deus, Espírito do Cristo. Em parte alguma, anjo, arcanjo, espírito ministrante - como o são os anjos; ao contrário, é Ele mesmo ministrado por Gabriel, que disse a Maria: "o Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com Sua sombra" [10]. Se as Escrituras não chamam ao Espírito um anjo, que excusa invocam aqueles tais para dizerem tal temeridade? Mesmo Valentim, que lhes inspirou a nefasta ideia, dava distintamente a um o nome de Paráclito e a outros o de anjos, ainda que atribuindo a todos a mesma" idade" [11].



O sentido das palavras divinas refuta absolutamente a linguagem herética dos que desatinam contra o Espírito. Eles porém, sempre hostilizando a verdade, tiram - conforme dizes - não mais das Escrituras, onde nada achariam, mas de seu próprio coração, o que eructam dizendo: se o Espírito não é criatura, nem um dentre os anjos, mas procede do Pai, é então Filho, e neste caso Ele e o Verbo são irmãos. Mas se é irmão, como o Verbo é unigénito? E como não são iguais, pois um é designado após o Pai e outro após o Filho? Se o Espírito provém do Pai, como não é também engendrado, e Filho, mas simplesmente "Espírito Santo"? Enfim, se é o Espírito do Filho, ter-se-á que o Pai é avô do Espírito...



São os gracejos que se permitem os infames, presunçosos no perscrutar as profundezas de Deus, a quem ninguém conhece senão o Espírito de Deus, vilipendiado por eles. Seria preciso não lhes responder, mas sim, conforme o preceito do Apóstolo [12], depois de os ter admoestado com palavras, como as que já escrevemos, recusá-los simplesmente como hereges; ou dirigir-lhes perguntas dignas das que nos põem, exigindo da mesma forma as respostas. Digam-nos se o Pai também provém de outro pai, se um outro foi gerado com ele e se são assim irmãos, qual o seu nome, quem é seu pai, avô, quem seus ancestrais. Alegarão que a coisa não é esta. Pois bem, informem-nos como o Pai existe sem ter sido gerado por outro pai; como teve um filho sem ter sido gerado também como filho. Questão ímpia, por certo, mas os que se permitem tais remoques é justo serem tratados da mesma forma, para que o absurdo e a impiedade da questão os leve a perceber a sua própria insensatez. Pois nada disso é verdade, Deus nos livre! E não se admite a colocação de tais questões sobre a Divindade. Deus não é como o homem para ousarmos pesquisar coisas humanas a seu respeito.



Aquele que não é santificado por outro, nem apenas participante da santificação, mas de cuja santidade participam as criaturas e se tornam santificadas, como seria um dentre as criaturas, da mesma forma como que os que dEle participam? Para afirmá-lo seria preciso dizer que também o Filho, por meio de Quem todas as coisas foram feitas, é uma dessas coisas feitas.



O Espírito é chamado vivificante, pois a Escritura diz: "Aquele que ressuscitou a Jesus Cristo dentre os mortos, vivificará também vossos corpos mortais por meio de Seu Espírito, que habita em vós" [13]. O Senhor é a vida em si e "o autor da vida", conforme Pedro [14]; ora, o mesmo Senhor dizia: "a água que Eu darei ao fiel se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna", e "Ele dizia isto do Espírito, que deveriam receber os que creem nele" [15]. As criaturas são vivificadas pelo Espírito; como então se aparentam a Ele, que não tem a vida por participação, mas é fonte de participação e vivifica as criaturas? Como poderia ser do número das criaturas, vivificadas nEle pelo Verbo?



É também por meio do Espírito que nós participamos de Deus. Por isto diz. Paulo: "não sabeis que sóis o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destrói o templo de Deus, Deus o destruirá; pois o templo de Deus, que sóis vós, é santo [16]. Se o Espírito fosse criatura, nós não teríamos, por meio dEle, participação de Deus, estaríamos sempre associados à criatura, sempre estranhos à natureza divina, não participando dela em nada. Mas, se somos ditos participantes de Cristo e participantes de Deus, tem-se que a unção, o sigilo, que está em nós, não é de natureza criada, é da natureza do Filho, o qual, por meio do Espírito que nele está, nos une ao Pai. Foi o que João ensinou, já o dissemos, ao escrever: "Sabemos que permanecemos em Deus e Ele permanece em nós, pois nos deu do Seu Espírito" [17]. Ora, se pela participação do Espírito nós nos tornamos participantes da natureza divina, insensato será dizer que o Espírito pertence à natureza criada e não à de Deus.



Notas:


[1] Serapião, bispo de Thmuis s, no delta do Nilo, amigo e confidente de Atanásio, faleceu em 370 d.C.


[2 2Co 1:3.


[3] A "blasfémia contra o Filho de Deus" é aqui a negação da Sua divindade, pelos arianos.


[4] cf. Hb 1:14 - "administratorii spiritus..."


[5] Atanásio parece referir-se a seus Discursos contra os Arianos.


[6] Alusão ao processo empregado pelos adversários, que viam nos textos bíblicos "medos" de falar ( “Tropi” ) , donde lhes veio o nome de Trópicos.


[7] “Dimiourgos” = Criador.


[8] “Trias”, a palavra grega empregada, ora traduzimos por Tríade, ora por Trindade, para respeitar os matizes do contexto.


[9] At 7:51.


[10] Lc 1:35.


[11] Conforme o gnóstico Valentim, quando o Paráclito foi enviado, foram enviados também os anjos da mesma idade. Atanásio em passagem anterior desta carta, aqui suprimida, talvez apoiado em Ireneu (Contra Her. I, 4,5).


[12] Tt 3:10


[13] Rm 8:11


[14] At 3,15


[15]  Jo 7:39


[16] 1Co 3:16


[17] lJo 4:13



Fonte:

GOMES, C. Folch, Antologia dos Santos Padres. Ed. Paulinas. São Paulo, 1979
 

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