ATANÁSIO
DE ALEXANDRIA
Sobre A
Divindade Do Espírito Santo
Carta
de Atanásio a Serapião [1]
Carta de tua Caridade me foi entregue no deserto. E ainda
que fosse cruel a perseguição deflagrada contra nós, pelos que nos querem
desgraçar, consolou-nos com a tua carta "o Pai das misericórdias e Deus de
toda consolação" [2]. Trazendo-me à lembrança a tua caridade e a dos meus
sinceros amigos, parecia-me que estáveis todos juntos a mim. Alegrei-me, sim,
vivamente com a receção da tua carta. Mas ao ler o conteúdo senti-me de novo
esmorecer pela notícia dos que deliberam dedicar-se a lutar contra a verdade.
Com efeito, prezado amigo, tu escrevias-me afligido também
por esses que, apesar de separados dos arianos quanto à blasfémia contra o
Filho de Deus [3], fomentam pensamentos hostis contra o Espírito Santo,
pretendendo-O não apenas criatura, mas até um dos espíritos servis [4],
distinto dos anjos tão-somente por grau. Ora, isto é simples oposição simulada
aos arianos, e na verdade, contradiz a santa fé. Da mesma forma que os arianos,
negando o Filho, negam o Pai, esses também, desacreditando o Espírito Santo,
desacreditam o Filho. São duas fações em que se repartem a insurreição contra a
verdade para desembocarem na mesma blasfémia contra a Trindade, atacando uns o
Filho, outros o Espírito.
Considerando isto e refletindo muito, senti-me deprimido,
pois de novo conseguiu o diabo zombar dos que contrariam a sua loucura. Tinha
decidido calar-me em tais circunstâncias; entretanto, coagido pela tua
Reverência e por causa da gente, redigi a presente carta, que completes no que
talvez falte, a refutação da ímpia heresia.
Quanto aos arianos, inicialmente, tem-se que essa opinião
não é estranha a eles. Pois uma vez que negaram o Verbo de Deus, é natural que
vociferem também contra o Seu Espírito. Por isto não será preciso dirigi-lhes
refutações em acréscimo às feitas precedentemente. [5]
Quanto aos que erram sobre o Espírito, convirá proceder de
certo "modo" - como diriam eles mesmos [6] - no propósito de
responde-lhes. Poderíamos espantar-nos do seu disparate: não querem que o Filho
de Deus seja uma criatura - e nisto pensam corretamente - mas então como
suportam ouvir que o Espírito do Filho é uma criatura? Se, em razão da unidade
do Verbo com o Pai, não querem que o Filho seja uma das coisas chegadas à
existência, mas pensam, com razão, ser Ele o artífice [7] das obras (divinas),
por que então o Espírito Santo, que possui com o Filho a mesma unidade que Este
com o Pai, chamam criatura? Por que não reconheceram que, se não separando do
Pai o Filho, salvaguardam a unidade de Deus, separando do Verbo o Espírito já não
salvaguardam mais a única divindade da Trindade, mas a dividem, inserindo-Lhe
uma natureza estranha, de outra espécie, e acarretando assim igualdade com as
coisas criadas? Além disto, tal conceção não apresenta a Trindade como uma
realidade única, mas como constituída de duas diversas naturezas, se difere,
conforme pensam, a substância do Espírito. Que ideia de Deus há de ser esta,
formada de Criador e criatura? Ou bem já não há Tríade, mas Díade com uma
criatura, ou, se há Tríade, como de fato há, por que põem entre as criaturas,
que vêm abaixo da Tríade, o Espírito da Tríade? Tal seria, mais uma vez,
dividir a Trindade [8].
Funesta a respeito do Espírito Santo, a sua doutrina também
não é boa a respeito do Filho, pois se aqui fosse correta, sê-Ia-ia igualmente
a respeito do Espírito, que procede do Pai e que, sendo próprio do Filho, vem
dado por Este a Seus discípulos e a todos os que creem nEle. Desta forma
desgarrados, não poderão enfim ter uma fé sadia a respeito do Pai, porque os
que resistem ao Espírito, como dizia o grande mártir Estevão, [9] - negam o
Filho, e negando o Filho já não têm o Pai.
Por quê todo esse desvario? Em que lugar das Escrituras
acharam a designação de anjo dada ao Espírito? Não é preciso que repita agora o
que já disse alhures. Ele foi chamado Consolador, Espírito de filiação,
Espírito de Deus, Espírito do Cristo. Em parte alguma, anjo, arcanjo, espírito
ministrante - como o são os anjos; ao contrário, é Ele mesmo ministrado por
Gabriel, que disse a Maria: "o Espírito Santo virá sobre ti e a força do
Altíssimo te cobrirá com Sua sombra" [10]. Se as Escrituras não chamam ao
Espírito um anjo, que excusa invocam aqueles tais para dizerem tal temeridade?
Mesmo Valentim, que lhes inspirou a nefasta ideia, dava distintamente a um o nome
de Paráclito e a outros o de anjos, ainda que atribuindo a todos a mesma"
idade" [11].
O sentido das palavras divinas refuta absolutamente a
linguagem herética dos que desatinam contra o Espírito. Eles porém, sempre
hostilizando a verdade, tiram - conforme dizes - não mais das Escrituras, onde
nada achariam, mas de seu próprio coração, o que eructam dizendo: se o Espírito
não é criatura, nem um dentre os anjos, mas procede do Pai, é então Filho, e
neste caso Ele e o Verbo são irmãos. Mas se é irmão, como o Verbo é unigénito?
E como não são iguais, pois um é designado após o Pai e outro após o Filho? Se
o Espírito provém do Pai, como não é também engendrado, e Filho, mas
simplesmente "Espírito Santo"? Enfim, se é o Espírito do Filho,
ter-se-á que o Pai é avô do Espírito...
São os gracejos que se permitem os infames, presunçosos no
perscrutar as profundezas de Deus, a quem ninguém conhece senão o Espírito de
Deus, vilipendiado por eles. Seria preciso não lhes responder, mas sim,
conforme o preceito do Apóstolo [12], depois de os ter admoestado com palavras,
como as que já escrevemos, recusá-los simplesmente como hereges; ou
dirigir-lhes perguntas dignas das que nos põem, exigindo da mesma forma as
respostas. Digam-nos se o Pai também provém de outro pai, se um outro foi
gerado com ele e se são assim irmãos, qual o seu nome, quem é seu pai, avô,
quem seus ancestrais. Alegarão que a coisa não é esta. Pois bem, informem-nos
como o Pai existe sem ter sido gerado por outro pai; como teve um filho sem ter
sido gerado também como filho. Questão ímpia, por certo, mas os que se permitem
tais remoques é justo serem tratados da mesma forma, para que o absurdo e a
impiedade da questão os leve a perceber a sua própria insensatez. Pois nada
disso é verdade, Deus nos livre! E não se admite a colocação de tais questões
sobre a Divindade. Deus não é como o homem para ousarmos pesquisar coisas
humanas a seu respeito.
Aquele que não é santificado por outro, nem apenas
participante da santificação, mas de cuja santidade participam as criaturas e
se tornam santificadas, como seria um dentre as criaturas, da mesma forma como
que os que dEle participam? Para afirmá-lo seria preciso dizer que também o
Filho, por meio de Quem todas as coisas foram feitas, é uma dessas coisas
feitas.
O Espírito é chamado vivificante, pois a Escritura diz:
"Aquele que ressuscitou a Jesus Cristo dentre os mortos, vivificará também
vossos corpos mortais por meio de Seu Espírito, que habita em vós" [13]. O
Senhor é a vida em si e "o autor da vida", conforme Pedro [14]; ora,
o mesmo Senhor dizia: "a água que Eu darei ao fiel se tornará nele uma
fonte de água que jorra para a vida eterna", e "Ele dizia isto do
Espírito, que deveriam receber os que creem nele" [15]. As criaturas são
vivificadas pelo Espírito; como então se aparentam a Ele, que não tem a vida
por participação, mas é fonte de participação e vivifica as criaturas? Como
poderia ser do número das criaturas, vivificadas nEle pelo Verbo?
É também por meio do Espírito que nós participamos de Deus.
Por isto diz. Paulo: "não sabeis que sóis o templo de Deus e que o
Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destrói o templo de Deus, Deus o
destruirá; pois o templo de Deus, que sóis vós, é santo [16]. Se o Espírito
fosse criatura, nós não teríamos, por meio dEle, participação de Deus,
estaríamos sempre associados à criatura, sempre estranhos à natureza divina,
não participando dela em nada. Mas, se somos ditos participantes de Cristo e
participantes de Deus, tem-se que a unção, o sigilo, que está em nós, não é de
natureza criada, é da natureza do Filho, o qual, por meio do Espírito que nele
está, nos une ao Pai. Foi o que João ensinou, já o dissemos, ao escrever:
"Sabemos que permanecemos em Deus e Ele permanece em nós, pois nos deu do
Seu Espírito" [17]. Ora, se pela participação do Espírito nós nos tornamos
participantes da natureza divina, insensato será dizer que o Espírito pertence
à natureza criada e não à de Deus.
Notas:
[1] Serapião, bispo de Thmuis s, no delta do Nilo, amigo e
confidente de Atanásio, faleceu em 370 d.C.
[2 2Co 1:3.
[3] A "blasfémia contra o Filho de Deus" é aqui a
negação da Sua divindade, pelos arianos.
[4] cf. Hb 1:14 - "administratorii spiritus..."
[5] Atanásio parece referir-se a seus Discursos contra os
Arianos.
[6] Alusão ao processo empregado pelos adversários, que viam
nos textos bíblicos "medos" de falar ( “Tropi” ) , donde lhes veio o
nome de Trópicos.
[7] “Dimiourgos” = Criador.
[8] “Trias”, a palavra grega empregada, ora traduzimos por
Tríade, ora por Trindade, para respeitar os matizes do contexto.
[9] At 7:51.
[10] Lc 1:35.
[11] Conforme o gnóstico Valentim, quando o Paráclito foi
enviado, foram enviados também os anjos da mesma idade. Atanásio em passagem
anterior desta carta, aqui suprimida, talvez apoiado em Ireneu (Contra Her. I, 4,5).
[12] Tt
3:10
[13] Rm
8:11
[14] At
3,15
[15] Jo 7:39
[16] 1Co
3:16
[17] lJo 4:13
Fonte:
GOMES, C. Folch, Antologia dos Santos Padres. Ed. Paulinas.
São Paulo, 1979
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