… Mas o melhor de tudo é crer em Cristo! Luís Vaz de Camões (c. 1524 — 1580)

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Necessário nos é nascer de novo


Martinho Lutero
Necessário nos é Nascer de Novo

Sermão para o domingo da Santíssima Trindade.
 Data: 11 de junho de 1536.

Texto: João 3:1-16 (ARC, Pt). “E HAVIA entre os fariseus um homem, chamado Nicodemos, príncipe dos judeus. Este foi ter de noite com Jesus, e disse-lhe: Rabi, bem sabemos que és Mestre, vindo de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais, que tu fazes, se Deus não for com ele. Jesus respondeu, e disse-lhe: Na verdade, na verdade, te digo que aquele que não nascer de novo não pode ver o reino de Deus. Disse-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer, sendo velho? Porventura pode tornar a entrar no ventre da sua mãe, e nascer? Jesus respondeu: Na verdade, na verdade, te digo que aquele que não nascer da água e do Espírito não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito. Não te maravilhes de te ter dito: Necessário vos é nascer de novo. O vento assopra onde quer, e ouves a sua voz; não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito. Nicodemos respondeu, e disse-lhe: Como pode ser isso? Jesus respondeu, e disse-lhe: Tu és mestre de Israel, e não sabes isto? Na verdade, na verdade te digo que nós dizemos o que sabemos, e testificamos o que vimos, e não aceitais o nosso testemunho. Se vos falei de coisas terrestres, e não crestes, como crereis se vos falar das celestiais? Ora, ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do homem, que está no céu. E, como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado; Para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.”

Como alcançar a salvação, a pergunta capital da humanidade

Hoje ainda não vos foi explicado o Evangelho. Escreve o evangelista São João que certo fariseu de nome Nicodemos foi ter de noite com o Senhor e teve com Ele uma conversa, e Cristo, por sua vez, pregou-lhe um sermão, com o qual aquele homem piedoso realmente não sabia o que fazer: quanto mais ouvia, menos entendia.

Sobre esta história prega-se em cada ano. Mas, como hoje lhe toca o turno novamente, falaremos uma vez mais acerca dela. Desde que o mundo existe, os sábios que há nele perguntam-se: "De que maneira se pode alcançar a justiça e a bem-aventurança?" Esta questão discutiu-se desde que há homens na terra, e continuar-se-á discutindo até que o mundo chegue ao seu fim. Até nos nossos dias atuais podeis ver com quanto ardor debatemos este assunto. Todos crêm estar em condições de emitir um juízo; mas com o seu julgamento revelam também a sua ignorância. Esta mesma questão, como nos informa o Evangelho para o dia de hoje, Cristo tratou-a com um homem que, falando em termos da lei judaica, era uma pessoa corretíssima e muito instruída.

Aquele homem quer discutir acerca do que devemos fazer e como devemos viver para ser salvos, e espera que Cristo lhe dê uma resposta. "Porque Tu", diz-lhe ele, "és um Mestre vindo de Deus; pois os sinais que Tu fazes ultrapassam a capacidade de qualquer ser humano. Nós, os fariseus, ensinamos, no campo do espiritual, a lei do Moisés. Opinas que há algo de melhor que se possa recomendar às pessoas?" Surge assim na discussão entre ambos a pergunta acerca das obras, ou seja, a vida perfeita — a pergunta que inquieta os homens de todas as gerações.

1. Aquele que tenta chegar à salvação pelo caminho das obras, não a alcançará.

Já os antigos romanos refletiram com muita seriedade acerca de qual era o caminho reto a seguir, acerca de como, por exemplo, se devia dirigir corretamente o lar e a família. O seu interesse dirigia-se acima de tudo à determinação exata do que exige a "justiça". Mas, com isto meteram-se num problema que não tem solução, como o tiveram que admitir eles mesmo: "Excesso de justiça, excesso de injustiça". Por que motivou? Porque a "justiça" no sentido estrito da palavra está fora do nosso alcance. Por isso há que procurar o caminho do meio e adaptar-se às circunstâncias. Neste sentido costuma-se dizer também: "Acertou como os atiradores quando dão no alvo", quer dizer, não graças à sua pontaria, mas graças a um impacto fortuito. Pois bom atirador, e até ganhador eventual, é também aquele cujo tiro, sem dar diretamente no alvo, é o que chegou mais perto dele. Assim o reconhecem até os juristas. Têm de dar-se por satisfeitos com o seu governo e com a sua administração da coisa pública os que conseguem que ninguém inflija a outro com injustiças demasiado grosseiras, mesmo que se torne impossível acertar, e aplicar rigidamente, a justiça na sua forma pura. Mas quando chega ao poder um desses iludidos deslocados, só causa alvoroço, distúrbios e dissensões. Assim, toda autoridade secular tem de aterse ao que é factível. Não obstante, a razão queria chegar à salvação ou a uma ordem política perfeita pela via da justiça. Mas tal coisa é impossível. O que fazer então? Diria-se que quase acontece como com aquele que queria cruzar uma alta montanha, e ao não poder fazê-lo, exclamou: "Pois bem, ficarei aqui". Entretanto, Cristo diz-nos: "Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus." (Mateus 5:20 ARC). Ali, no sermão do monte, o Senhor explica o que é o verdadeiro cumprimento da lei, e o que significa acertar no alvo: Não irar-se, nem mesmo no recôndito do coração; não cobiçar nem em pensamentos a mulher ou os bens de nosso próximo. Aí nos coloca perante os olhos a justiça na sua forma mais perfeita. E apesar de tudo, os homens crêem poder alcançá-la mediante o cumprimento da lei. "Não queremos nem pretendemos", dizem, "acertar tão exatamente no alvo"; se o conseguirem com certa aproximação, têm-se por desculpados. Nós, porém, atenemo-nos ao que nos ensina Cristo: "Ninguém pode ver o reino de Deus a menos que tenha acertado no alvo". E no Apocalipse lemos: "Neste tabernáculo não entrará nenhum imundo". O que temos de fazer, pois? Exclamaremos também nós: "Teremos de ficar aqui em baixo, não podemos cruzar a montanha"?

Tampouco Nicodemos sabe outra coisa que isto: "Eu sou uma pessoa correta, vivo piedosamente conforme a lei, e transito pela senda que conduz ao céu". E agora quer que este Mestre lhe expresse a Sua aprovação ou desaprovação — embora não queira pensar nesta última situação, antes espera que o Senhor lhe responda: "Sim, Nicodemos: tu és perfeito, mais ainda: tu já és bem-aventurado, e os outros também entrariam no reino dos céus se fizessem como tu." Porém, ocorre precisamente o contrário: Cristo expulsa-o a pontapés do reino dos céus: "Por certo, és um bom homem. Mas se não nasceres de novo, a tua justiça não te servirá de nada." O "nascer de novo": esta é a justiça na qual insistimos tanto na nossa pregação. Ou seja: Cristo não tem a intenção de rechaçar a lei; mas antes, quer que ele seja cumprida. "Mas", diz, "a forma como vós a cumpris, não tem validez; cumpris a lei só na vossa imaginação, mas não de verdade. Os 10 Mandamentos são irrepreensíveis, e quero que os cumpram. Quem quiser entrar no céu, tem de cumpri-los. Mas com o vosso conceito de “direito” e com a vossa justiça não os estais cumprindo." Não temos outra justiça melhor que a que resultaria do meu cumprimento de tudo o que é mandado nas duas tábuas da lei do Moisés, então seríamos "justos" — mas justos só conforme a justiça dos fariseus, não conforme à justiça exigida pela lei.

2. Só a regeneração nos dá parte na salvação eterna.

É-nos dito, pois: "Necessário te é nascer pela segunda vez." A Nicodemos, isto pareceu-lhe chocante. Ele pensava em outras leis, posteriores ao marco das leis mosaicas, como as achamos no papado e no judaísmo farisaico; esperava que Cristo estabeleça artigos novos, leis novas, todo um código novo. Mas nada disto: Cristo não diz uma palavra quanto a novas leis e estatutos. "Pois o que tendes em matéria de leis, já é mais do que podeis cumprir. Eu, por outro lado, prego-vos assim: Vós, vós mesmos tendes de chegar a ser outra gente. Eu não falo de fazer ou não fazer, mas de vir a ser. Tu tens de vir a ser outro homem, tens de nascer de novo. Isto será então a justiça que dá no alvo, a justiça sem mancha nem ruga, a justiça que conseguirá entrar no céu." Ao ouvir a Jesus falar desta maneira, vêm a Nicodemos certas dúvidas. Isto são palavras novas para ele. "Entrar, eu, pela segunda vez, no ventre de minha mãe? Tolices!" Mas a estas tolices, Cristo acrescenta outras piores: "Não te digo que tenhas de nascer de novo de pai e mãe humanos, mas da água e do Espírito Santo." Agora, Nicodemos fica confundido de todo: "Que homem e mulher são estes: água e Espírito?" E, como se ainda não fora suficiente, Cristo pergunta: "És tu mestre em Israel, e não sabes isto?", o que soa a manifesta brincadeira. E, entretanto, Cristo tem de falar assim, porque o tema é para o Nicodemos completamente novo. Para o esclarecer Cristo recorre a uma ilustração, como querendo dizer a Nicodemos: "Queres que faça um desnho para que o entendas? Digo-te porém: se não podes captar isto com a razão, capta-o com a fé. Pois se não crês se te tenho dito coisas terrestres, como crerás se te disser as coisas celestiais? Nós falamos o que sabemos, e o que sabemos é a verdade; e vós não credes. E então: se alguém não quer crer, largue-se!" A nossa pregação, iniciada naquele tempo por Cristo, estriba-se exclusivamente na fé. Só com a fé podes compreender isto da "regeneração pela água e o Espírito Santo". O Espírito é o varão, a água é a mulher. O que isto implica, não o podes medir com a tua razão. Daí que o nosso tema que pregamos, seja o artigo das boas obras e da fé. E já os papistas aprenderam algo de nós ao dizerem que com a fé e a graça começa a vida verdadeiramente cristã. Antes só se falava da missa privada e da invocação dos santos; agora, por outro lado, dizem que a fé, com efeito, salva, mas não a fé sozinha, mas a fé em cooperação com as nossas obras; essa cooperação, sustentam, é imprescindível. E a nós criticam-nos duramente afirmando que proibimos as obras e induzimos os homens à desídia. Ainda lhes falta bastante para ser tão piedosos e estar tão perto da verdade como Nicodemos. Nós nunca proibimos as boas obras; mais ainda: se dissermos algo a respeito de boas obras, a nossa própria gente perde as estribeiras, o que é um claro sinal de que realmente pregamos sobre este tema. E apesar disso, os papistas continuam blasfemando de nós. Eles ensinam: “As boas obras têm de vir em ajuda da fé" — vãs palavras que demonstram que esses mestres não têm noção do que é a fé, as boas obras, o nascer do Espírito, o nascer de Deus. É, portanto, muito necessário que estudemos com cuidado o nosso presente versículo (João 3:5) e outros similares. Aqui fala-se de "nascer de novo", não de "fazer algo novo". Primeiro deves plantar a árvore, logo terás, também, frutos. Conforme seja a árvore, boa ou má, também os frutos serão bons ou maus. O mesmo acontece aqui. Nós a isso chamamos um novo nascimento, quer dizer, uma nova maneira de ser, uma nova pessoa, não somente um novo vestido ou novas obras. Quando eu era monge, a minha vestimenta era distinta, e as minhas obras também o eram; as sete horas para as orações, a missa, a crisma, o celibato — todas estas eram outras obras, muito disímiles das minhas obras anteriores. Mas a simples mudança das obras não é o que vale; que mude a pessoa, que mudem os pensamentos e o ânimo: este é o novo nascimento. Portanto, não se podem justapor as obras à fé. Com o que contribui um menino que seja engendrado e dado à luz? Isto é obra dos pais; o menino não faz nada para que as suas perninhas e todos os seus membros cresçam; não é parte ativa neste processo de crescimento mas parte meramente passiva. Qual foi, neste sentido, o nosso contributo? Onde estão as obras cooperantes? Queria saber então a razão porque vem essa insistência em que se devem adicionar também as obras, e desde logo as nossas próprias obras!

É verdade: a mãe leva a criatura nas suas entranhas e dá-lhe o calor materno; entretanto, não é obra desta criatura que ela se origine. De igual maneira, aqueles que pregamos e batizamos somos nós; e, entretanto, a palavra e o batismo não são nossos; só pomos a nossa boca e as nossas mãos à disposição. Na verdade, o batismo e a palavra são de Deus, e não obstante, nós somos chamados colaboradores de Deus (1 Corintios 3:9). É, por certo, uma colaboração bastante modesta a nossa; não que contribuamos com a obra ou a palavra; o que únicamente contribui ao pregar e batizar é a voz, são os dedos, a boca. Assim, no engendramento de uma criatura, o pai e a mãe só contribuem com a sua carne e sangue, como fatores deles; a criatura, por outro lado, não contribui com absolutamente nada, mas que “deixa criar” por Deus todos os membros, e a mãe a leva no seu seio. Há alguma razão, então, para que eu tire a Deus a honra e diga que eu mesmo me engendrei, e que o meu próprio atuar contribuiu para que eu nascesse? Não significaria isto ofender a Deus? Acaso não somos chamados Seus filhos, obra de Suas mãos? Se é verdade que as obras colaboram na regeneração, vejo-me obrigado também a dizer que eu colaborei com Deus — e isto é uma blasfêmia contra Deus. Mas se é verdade que eu sou nascido de novo, como diz Cristo, não tenho de colaborar com nada, mas tenho de permanecer quieto e passivo para que Aquele que é meu Pai e Criador me faça nascer de novo como Seu filho. Neste sentido declara o apóstolo Paulo que "nós somos uma nova criação, criados em Cristo para as boas obras". Como se vê, Paulo não esquece as boas obras. Mas menciona-as não porque tenham contribuído com algo, não porque elas sejam as que produzem a nova criação, mas "para que andássemos nelas". Se é certo que as minhas próprias obras contribuem para que eu seja uma nova criação, bem me posso gloriar de ser o meu próprio Deus; porque o criar é obra de Deus exclusivamente. Se colaboro, então Deus não é meu único Deus, mas que eu também o sou. Por outro lado, se Ele é o único, não o posso ser eu também, como se afirma muito claramente no Salmo: "Foi Ele, e não nós, que nos fez povo Seu e ovelhas do Seu pasto". E, não obstante, certa gente incorre na tremenda tolice de sustentar que a fé engendra homens novos, mas com ajuda das obras. Mas carece de toda lógica dizer que eu me crio a mim mesmo e sou Deus junto com Deus, de modo que Ele me tem a Seu lado como um Deus adjunto. Assim como eu não me formei a mim mesmo no corpo de minha mãe, mas foi Deus quem me formou valendo-se dos membros e do calor de minha mãe, assim tampouco na regeneração somos gerados mediante as nossas próprias forças e obras, mas unicamente pelas mãos e pelo Espírito de Deus. Em consequência, é ilícito acrescentar obras à fé; em caso contrário, não é Deus só o que me cria, mas que eu sou, simultaneamente com Ele, o meu próprio criador. Para o fogo do Inferno um criador que se cria a si mesmo! A Escritura chama-me uma nova criação de Deus, e não obstante, eu, então, ter-me-ia de atribuir a nova criação a mim mesmo? Desse modo, eu seria criação e criador, obra e obreiro, numa mesma pessoa. Claramente, estes são pensamentos diabólicos e ensinos de homens enceguecidos. Devemos ater-nos, por assim dizer, estritamente ao que aqui nos ensina o evangelista São João. Também Paulo nos chama "novas criaturas". Da mesma maneira, pois, como eu não faço nenhum contribuição para o meu nascimento corporal e engendramento, mas que sou parte meramente passiva e 'faço-me' engendrar e criar, desta mesma maneira tampouco as obras fazem contribuição alguma para que o homem seja regenerado. Não sendo assim, Deus já não será só Ele Deus, mas nós seremos Deus junto com Ele, e seremos nossos próprios progenitores. Mas quando a criatura já está engendrada, e quando o bebé já está formado no seio materno com todos os seus membros, a mãe diz: “Sinto que o bebé faz as obras que em seu estado pode fazer." Mas só o já criado dá estes sinais da sua existência, e só quando tenha sido dado à luz mexe os seus membros, e se fica com vida, aprende a caminhar e a cantar. Mas se não tivesse sido criado previamente, agora não se mexeria.

3. O regenerado-se manifesta como crente mediante a execução de boas obras.

A nossa prédica quanto à nova criação é, pois, que uma vez que tenhamos sido regenerados, devemos andar nas boas obras. Neste sentido fazemos algo: pregamos; porém, aqueles, que são convertidos, não fazem nada para chegar a sê-lo, já que somos criação e obra de Deus, "criados para que andássemos nas boas obras" (Efésios 2:10). Estas palavras falam-nos com inteira claridade. A similitude com uma criatura humana é evidente. A criatura deve separar-se do corpo materno; antes de estar completamente formada, não contribui com nada para este fato. Então por que Deus a proveu de membros? Para mexer-se; uma vez nascida, deve caminhar, parar, comer, beber, trabalhar, mandar, porque para isto nasceu. Se não fizesse nada, seria um tronco ou uma pedra. Mas deve fazer algo, para isto foi criada. A isto se refere Cristo ao dizer ao fariseu Nicodemos: "Todos vós quereis ser os vossos próprios criadores. Tendes a lei de Moisés, e esforçai-vos por a cumprir. Mas não o conseguireis, posto que ainda não haveis nascido. Ainda não são o que deveis ser, porque ainda não fostes recreados nem nascestes de novo; não tendes o Espírito Santo. Por conseguinte, todas as vossas obras são obras do velho homem. Podeis, por exemplo, construir uma casa ou fabricar um sapato; mas tais obras não têm nada que ver com o céu. Não são obras que conferem justiça a quem as faz. Também os gentios são capazes de as fazer. Além disso trazeis oferendas, circuncidais os vossos filhos, usais as vestimentas sagradas — também isto está ao alcance de qualquer pagão. Por isso digo que são obras do homem velho, nascido uma só vez, ou seja, do seio de sua mãe. Mas se quereis fazer obras que sejam de valor perante Deus e tragam proveito ao próximo, tendes de nascer de novo. Vós, por outro lado, credes que com isso de fazer obras que são boas no seu aspecto exterior, já tendes assegurada, a entrada no céu, mesmo que o coração não se ache no estado devido. Mas não façais as coisas às avessas, não comeceis pelas obras!"

Também os papistas são da opinião de que podem merecer o céu com as suas obras que acompanham a graça. É um erro. As boas obras não nos podem ajudar de nenhuma forma, nem como obras que precedem a graça, nem como obras que correm paralelas a ela, nem tampouco como obras que se seguem à graça, mas que tudo tem de provir do Espírito e da água. "Em lugar de pai e mãe vos darei água e Espírito Santo", reza a pregação de Cristo. Porque isto é assim, posso dizer: "As minhas próprias obras não me criarão, nem me engendrarão como nova criação, nem tampouco poderão fazê-lo, posto que já fui criado e engendrado da água e do Espírito." Também resulta agora fácil provar e julgar os espíritos fanáticos. Pois o que nasceu, o que já foi feito e criado, não tem necessidade de ser feito e criado. Como podem dizer então que as obras subsequentes à graça engendram e criam? Fazer boas obras é necessário; correto — mas não para chegar a ser por meio delas uma nova criação. Portanto há que diferenciar entre fé e obras; assim nos ensina isso aqui o Senhor. As obras feitas antes de que exista a fé, são condenadas como pecado. Por outro lado, as obras feitas pelo que já tem fé, são obras preciosas e boas. Entretanto, tampouco estas servem para nos converter em homens justos, mas para louvar e glorificar o nosso Pai que está nos céus (Mateus 5:16) e para causar alegria nos anjos. Pois quem por meio de boas obras e de uma pregação frutífera honra ao Pai, receberá também dEle a recompensa correspondente. Se não andas nas boas obras, tampouco nasceste ainda para elas (Efésios 2:10). Onde se ensina e se vive desta maneira a verdade ensinada aqui por Cristo permanece em vigência em toda a sua pureza. Cristo diz que temos de nascer, Paulo sublinha que temos de ser criados por Deus. Falando em termos da comparação com uma criatura: a criatura não se engendra nem se faz nascer a si mesma, mas depois de ter sido criada, por sua vez, pode fazer obras. Analogamente, a árvore frutífera, depois de plantado, dá frutos. Não se diz: "Se não houvesse pêras na árvore, esta não seria uma árvore", mas ao contrário. Para isto cresce a pereira, para que dê pêras, para glória e honra de Deus, o Criador, e para que nós as comamos. Assim, a obra de Deus é a que precede, e a nossa obra é a que se segue. Igualmente: se não houvesse ferreiro, não haveria machado; pois para que o machado corte, previamente tem de ter sido fabricado. Só um perfeito idiota poderia dizer: "Façam-me um machado que colabore na sua fabricação, de sorte que mediante o seu próprio estilhaçar e cortar se torne num machado". Primeiro há que fabricar o machado, e só então o podemos empregar nos trabalhos para os quais se costuma destinar.

Sobre este tema se discute de forma muito obstinda desde os começos da humanidade. E este é o nosso ensino no qual insistimos com toda a energia, a fim de que conserve o lugar que lhe corresponde na igreja, e para evitar que penetrem na igreja pessoas que atribuem um efeito também às obras precedentes ou concomitantes. Primeiro deve estar a criação, o nascimento; logo pode seguir-se a obra. Nicodemos não o pôde compreender, porque ele vivia na crença equivocada de que conseguirá entrar no céu graças às suas obras precedentes. Cristo opõe-lhe um NÃO rotundo: "Aquele que não nascer de novo não pode ver o reino de Deus". Todos os que ensinam algo que contrarie este artigo, são mestres falsos. Nós porém criámo-lo, e demos graças a Deus pelo facto de que por fim foi trazido à luz e posto como conhecimento à disposição de todos, o qual é o verdadeiro caminho para a vida: "Faz com que eu seja regenerado sem colaboração de nenhuma obra minha, quer dizer, só pela palavra e a fé." Se tal é o caso, sou filho de Deus, tenho livre acesso à casa de meu Pai, e tudo que faço, é bom e aceite perante os Seus olhos. Se o meu pé escorrega, Ele açoita-me. Se sou uma árvore boa, produzo frutos bons. Se a árvore é invadida por vermes nocivos, o Pai extermina-os. Se sou um bom machado, sirvo para cortar; se no machado se produz uma fenda, também este mal poderá ser remediado pelo Pai. Por isso vós os fariseus estais muito longe do alvo com as vossas obras precedentes; porque destas resultam em não mais do que uma justiça válida perante os olhos do mundo, e para ela rege o que acabo de dizer quanto ao atirador. A justiça proveniente da fé dá no alvo: aponta ao próprio centro, e penetra até à vida eterna — não pelos nossos próprios meios, mas em união com aquele que é o Mediador, do qual se fala na parte final do Evangelho (João 3:14 e sigs.). Fomos criados por Ele, e somos recreados por Ele; por meio dEle somos uma criação perfeita, apesar de que ainda não estamos livres de faltas e debilidades.

A isto se chama falar de forma cristã acerca da regeneração, da qual os papistas, os turcos e os judeus não têm o menor conhecimento. Estou certo, portanto, de que no Concílio os papistas rechaçarão este artigo, já que a norma deles é julgar a obra de Deus conforme a entendem eles mesmos. Cristo, porém, sustenta invariavelmente: "Aquele que não nascer de novo não pode ver o reino de Deus". É preciso, pois, pôr de lado os pensamentos próprios, a sabedoria própria, as opiniões próprias, e prestar ouvidos somente à palavra por meio da qual é criado em ti um coração novo sem a tua colaboração, como o novo ser no corpo da mãe. Este texto soluciona a questão que se vem debatendo no mundo inteiro acerca de como é possível uma vida bem-aventurada e feliz. Não há outro meio que a justiça efetuada pela regeneração: esta acerta no alvo.

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Fontes Utilizadas:
Vários “Sítios” e enciclopédias na Internet e ainda algumas obras em papel.
Respigado daqui e dali.

Carlos António da Rocha

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